Há privilégios que precisam ser extintos no funcionalismo, mas prerrogativas, que de privilégio nada têm, precisam subsistir
No Brasil de hoje, quando se fala em serviço público, nos deparamos com
um verdadeiro festival de barbaridades. Se, num dia, assistimos
boquiabertos a um procurador de Justiça esbravejar contra o seu “miserê”
de 24 mil mensais, noutro, os salvadores da pátria de plantão não
deixam o nosso espanto esmorecer: o funcionalismo público é parasitário,
proclama-se em alto e bom som. Essas duas manifestações representam bem
o embate no qual o Brasil está imerso. De um lado, os funcionários
públicos, esses marajás que ganham muito e trabalham pouco — vociferam
alguns; de outro, uma parcela significativa da sociedade que, debaixo de
discursos como o da eficiência, escondem um ódio capaz de fazer quem o
sente perder as estribeiras. É justamente a origem desse ódio que
pretendo investigar nas próximas linhas.
Antes de prosseguir, diga-se o óbvio: no meio do funcionalismo,
realmente, há privilégios que precisam ser extintos, como também, por
outro lado, há prerrogativas institucionais que de privilégio não têm
nada, e que, portanto, precisam subsistir. Contudo, não é objetivo deste
artigo analisar se isso ou aquilo deve ser mantido ou não. Foquemos,
pois, no que interessa.
Eis o meu argumento: a Constituição de 88, na medida em que exigiu
concurso para o provimento de cargos públicos, constituiu para grande
parcela da sociedade brasileira uma brusca ruptura, já que abalou a
tradição brasileira de ver no Estado uma extensão da família. A
propósito, veja-se que, já no Império, Joaquim Nabuco via no
funcionalismo o asilo das antigas famílias ricas e fidalgas.
Com a República, a ocupação do espaço público por apadrinhados, ao
contrário do que se poderia supor, não diminuiu, bastando tomar como
exemplo as famílias que, por gerações e gerações, tiravam suas fortunas
de cartórios, os quais lhes eram, não raro, presenteados pelos políticos
da ocasião. Porém, com a Constituição de 88, a farra acabou,
passando-se a exigir concurso público para o exercício da atividade
cartorária.
O ódio, pois, com relação ao funcionalismo público nasce, em grande
parte, de uma perda de espaço, isto é, cargos outrora ocupados por quem
achava que a eles tinha direito por uma questão de sangue passaram a ser
ocupados por “estrangeiros”, pessoas que, criadas em famílias sem
contatos no “andar de cima”, dependiam única e exclusivamente de seu
suor para conquistar o que almejavam.
No ponto, escutemos Freud, para quem, nas massas, a impressão do passado
permanece conservada no inconsciente. O esquecido, assim, não é
apagado, mas apenas recalcado, o qual, diante de certas circunstâncias,
vem à tona com uma força avassaladora. Aplicando-se a teoria à nossa
realidade, temos que o ódio ao funcionalismo público, em estado de
latência desde que a Constituição de 88 democratizou o acesso aos cargos
públicos, encontrou sua válvula de escape na reforma administrativa do
governo Bolsonaro.
Nesse sentido, declarações como a do ministro Paulo Guedes de que, além
de parasitas, os funcionários públicos filiados a partidos políticos não
deveriam ter estabilidade, pelo absurdo de seu teor, as colocam na
categoria de ato falho. Nessa condição, elas põem a nu o que de fato
anima o ministro Guedes na sua cruzada contra o funcionalismo: a
produção de funcionários públicos nos moldes do “Amanuense Belmiro”, de
Cyro dos Anjos, isto é, cabisbaixos, inofensivos, domesticáveis e,
obviamente, sem dinheiro para ir à Disney. É preciso resistir.