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sábado, 26 de dezembro de 2020

O Grande Circo Brasil não tem tempo para preocupar-se com crianças - Augusto Nunes

Revista Oeste

O picadeiro e a pandemia

Como circo, não era lá essas coisas. No diminuto comboio de trailers viajavam o dono (e apresentador do espetáculo), dois trapezistas, um mágico com sua ajudante, um palhaço, dois ou três funcionários e um homem com cara de galã mexicano — o bigode fino e perfeitamente aparado combinava com o topete besuntado de brilhantina, cada fio de cabelo em seu lugar. Não havia globo da morte, jaulas com feras que faziam tudo o que mandava o domador, saltos sem rede embaixo, nenhum desses requintes de circo com nome estrangeiro. Mas uma atração adicional compensava quaisquer carências: na segunda parte da noitada era apresentada uma peça de teatro. Isso fazia a diferença e justificava o nome nas placas com luzes vermelhas penduradas sobre a entrada: Circo Teatro Irmãos Nogueira.

No começo da década de 1960, a trupe — que não incluía nenhum Nogueira, muito menos dois — andou ancorando em Taquaritinga uma vez por semestre, para temporadas de três semanas. Numa noite de 1961, com pouco mais de 10 anos, fui apresentado aos subúrbios do mundo de Shakespeare. Sentado no camarote do prefeito, vi ao lado do meu pai “Maconha, a Erva Maldita”, um drama com apenas três atores mas capaz de fazer chorar até o dentista mais temido da cidade. O protagonista era o homem com jeito de galã, no papel do filho viciado que infernizava a vida do pai (um dos trapezistas) e da mãe (a ajudante do mágico).

A procissão de horrores consumia quase integralmente os 30 minutos do enredo. E a indignação reinava entre os homens, e a choradeira banhava o rosto das mulheres na arquibancada. A cada tragada no cigarrinho maligno, lá vinham bofetadas na mãe, socos e pontapés no pai e outras brutalidades, anabolizadas por insultos, ofensas e blasfêmias. Em vão, os espectadores tentavam deter o moço enlouquecido berrando medonhas promessas de revide. Alheio aos protestos, ele continuava barbarizando em cena até o desfecho inesperado. Depois de um ligeiro sumiço por trás da cortina, o carrasco doméstico reaparecia enfim liberto do vício hediondo. Abraçados ao filho risonho e vestido com mais apuro, os pais festejavam o final feliz. Só então acabava o sofrimento da caipirada na plateia, que aplaudia enquanto enxugava cataratas de lágrimas.

(..........)

Recordo aquelas noites no circo e penso no pesadelo imposto às crianças pelo Brasil do coronavírus. Muitos milhares têm a idade que eu tinha quando achei que aquilo era teatro. A garotada guardará na memória e na alma o que viu, ouviu e teve de fazer no ano mais estranho. Há dez meses, essas crianças souberam que uma doença difícil de explicar exigia a troca da sala de aulas pelo computador instalado numa sala da casa. Que deveriam pedir a ajuda dos pais em vez de recorrerem aos professores. Que deixariam de brincar com os amigos e teriam de conformar-se com a companhia de irmãos (ou com a solidão). Que as visitas aos avós estavam suspensas até sabe Deus quando. Devem estar achando que um país é assim mesmo, que muitos pais e professores são assim mesmo, que todos os que mandam são assim mesmo.

Mas não deveria ser assim, descobrirão quando souberem o que efetivamente aconteceu em 2020. Então a Geração Covid entenderá que teve inutilmente confiscado um ano inteiro de vida. Para que o crime se consumasse, conjugaram-se uma boa parcela de professores orientados pela ideologia da preguiça, de diretores e donos de escolas movidos pela política do lucro, de pais e mães infectados pela epidemia de pusilanimidade estrábica, a soberba de jaleco e governantes que se dividem em duas tribos infames: a dos irremediavelmente incapazes e a dos capazes de tudo. Ambas só aceitam gente que não sabe o que são afetos reais. É compreensível que nenhum dos envolvidos na conjura perca o sono com as violências infligidas às crianças do Brasil.

A quarentena escolar brasileira é a mais extensa e intensa do mundo. Não foi a primeira geração de crianças traídas. Mas nenhuma foi tão cruelmente atraiçoada por tantos traidores.

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste  

 

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