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sábado, 3 de setembro de 2022

Alexandria, 2026 - Revista Oeste

Rodrigo Constantino

Numa operação comandada pelo Xerife Xerxes Xande, a antiga Polícia Federal fechou o cerco a empresários golpistas que foram vistos num vestiário da academia falando mal do governo

Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

O imperador Saltitante acordou de mau humor, e, com sua voz fina e metálica, berrou: “Gleice, venha já aqui!”. Sua secretária saiu correndo do aposento ao lado e perguntou o que seu mestre desejava. “Traga-me já um copo de água com açúcar, mulher imprestável! Preciso me acalmar após ler essa notícia absurda!” Saltitante se referia a uma manchete da Revista Leste, a única sobrevivente no país após a revolução democrática de 2022. Ela dizia: “Último foco da militância fascista consegue escapar da polícia”.

Numa operação comandada pelo Xerife Xerxes Xande, também conhecido como XXX, a antiga Polícia Federal fechou o cerco a empresários golpistas que foram vistos num vestiário da academia falando mal do governo. Pela nova Lei de Liberdade de Expressão, criada por decreto pela Junta Democrática do Foro de SP, estava terminantemente proibido criticar o governo, em especial o Imperador Saltitante e o Xerife Xerxes.

A mudança que permitiu isso veio por emenda constitucional e havia retirado uma única letra no texto de 1988: Todo o poder emana do Ovo, e não mais do Povo
Ovo era o apelido carinhoso de Xerxes, devido à sua cabeça careca e reluzente. 
Era ele quem dava as ordens na prática, enquanto o Imperador Saltitante se portava como uma espécie de Rainha da Inglaterra — e ele adorava a parte das vestimentas inspiradas em Elizabeth.
 
Desde quando aquele fascista cujo nome não mais pode ser mencionado venceu as eleições em 2022, apesar de todo o esforço democrático da oposição, houve uma união apoiada pelo Exército Chinês para restabelecer a democracia no país. 
Xerxes demitiu os demais dez ministros e passou a representar, sozinho, a Corte Constitucional. 
O então senador Saltitante foi proclamado imperador do Brazinil, e todos os apoiadores do fascista eleito foram perseguidos, muitos deles presos ou expulsos do país.
 
O respeitado jurista Miguel Retalho Junior, após a prisão de seu colega Ives Grande Martinho, foi às emissoras de televisão atestar a legalidade do ato, já que para derrotar a ameaça fascista tudo era aceitável e desejável. 
Brazinil mudou até de nome e passou a se chamar Alexandria, em homenagem ao Xerife que tanto fez para impedir o golpe. Agora havia pouquíssimos focos de resistência, já que a Polícia Unificada de Todos os Amigos (PUTA) tinha lançado uma implacável busca pelos golpistas, com auxílio de soldados democratas enviados por Cuba e Venezuela.

Naquela manhã quente de janeiro de 2026, Saltitante se deparou com a notícia da Revista Leste sobre a fuga dos empresários fascistas. Isso despertou sua revolta: “Duvido que algo assim acontecesse na democrática Coreia do Norte, ou com nossos companheiros da Nicarágua! Lá todos os fascistas cristãos foram devidamente presos!”, esbravejava.

Tensa com a situação, e com medo das broncas, Gleice decidiu ligar para o verdadeiro chefe da coisa toda: “Luísque, acho melhor você abandonar Atibaia rapidinho só para vir aqui colocar um pouco de ordem na bagunça”. Já bêbado após a quinta taça de Petrus, Luísque rebateu: “Não enche o saco, Gleice. Eu fiz meu papel em 2022 e desde então quero só aproveitar minha vida de longe, com meus milhões e minha mulher, Granja. Vocês que são democratas que se entendam!”.

Esse que vos escreve só teve condições de relatar essa história toda pois morava fora de Brazinil na época da revolução democrática

Claramente decepcionada, Gleice convocou então Miguel Tremer, o único capaz de acalmar Xerxes, o que por sua vez acalmava Saltitante, que no fundo estava apavorado com o provável esporro do chefe. 
Tremer ligou para Xerxes, falou amenidades antes, lembrou quem o indicou ao Supremo, e com jeitinho deu o recado: “Meu ilustre Ovo, vossa excelência não acha que já fizemos o suficiente para impedir golpes fascistas? Talvez possamos deixar passar um ou outro empresário conspirador, pois são inofensivos hoje…”.

Xerxes ficou vermelho de raiva, e, com o olhar vidrado, rebateu: “Cala a boca, seu Mordomo inútil! Alexandria não terá um só crítico do governo, e não vou descansar até punir pessoalmente um a um desses miseráveis! Você nunca teve a garra de um Luísque, por isso conspirou contra ele! Não podemos permitir um só fio desencapado, pois de 1 centímetro pode surgir um curto-circuito e produzir um grande incêndio. Para ser uma democracia de verdade, como nossos companheiros conseguiram fazer na Venezuela e na Nicarágua, é fundamental ser intransigente com qualquer deslize ou malfeito. Não me liga mais, seu pusilânime de uma figa!”.

Tremer, com o perdão do trocadilho, passou a tremer de medo, e se lembrou de velhas máximas: quem planta vento colhe tempestade; quem alimenta corvos tem seus olhos arrancados; quem dá comida para o Gizmo depois da meia-noite precisa enfrentar os Gremlins — ok, isso não é bem uma máxima, mas uma lição com base num filme que entrega a idade do autor.

E assim a vida seguiu em Alexandria. Esse que vos escreve só teve condições de relatar essa história toda pois morava fora de Brazinil na época da revolução democrática. 
Havia inclusive um prêmio por minha cabeça, mas fui prudente e nem arrisquei uma visita sequer. 
Criado em ambiente fascista, e vivendo em local ainda mais fascista como Miami, confesso com toda a humildade do mundo que nunca fui talhado para viver em uma democracia tão alexandrina assim!

Leia também “Não existe Estado de Direito no Brasil”

Rodrigo Constantino, colunista - Revista Oeste 

 

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Encosta abaixo - Nas entrelinhas

“Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros”


Autor da grande trilogia Era das revoluções (1789-1948), A era do capital (1848-1875) e A era dos impérios (1875-1914) —, Eric John Hobsbawm fez a cabeça da esquerda brasileira sobre o mundo atual, com A era dos extremos: o breve século XX. O historiador nasceu em Alexandria, Egito, quando o país se encontrava sob domínio britânico, passou a infância entre Viena e Berlim e migrou para Londres aos 14 anos. Quando jovem, ingressou no Partido Comunista britânico; durante a II Guerra Mundial, cavou trincheiras no litoral do Canal da Mancha e fez parte da inteligência do Exército britânico.

Após a guerra, Hobsbawm voltou para Cambridge, onde se tornou um expoente da historiografia mundial, ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward Palmer Thompson. Sua Era dos extremos é o livro mais lido sobre a história recente da humanidade, e Tempos interessantes, de 2002, recebeu o Prêmio Balzan para a História da Europa. Membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciência, lecionou na Universidade de Londres e na New School for Social Research, de Nova Iorque. Morreu em Londres, em 2012.

Nascido em 1948, o londrino Tony Judt era neto de russos e rabinos lituanos. Aos 15 , aderiu ao sionismo e quis emigrar para Israel, contra a vontade dos pais. Em 1966, foi passar o verão num kibbutz machanaim e acabou servindo como motorista e tradutor no Exército de Israel, na Guerra dos Seis Dias. No fim da guerra, porém, voltou para Inglaterra. Judt graduou-se em história na Universidade de Cambridge (1969), mas realizou suas primeiras pesquisas em Paris, na École Normale Supérieure, onde completou seu Ph.D., em 1972.

Em outubro de 2003, publicou um artigo na New York Review of Books, no qual recriminou Israel por se tornar um Estado étnico “beligerante, intolerante, orientado pela fé [fé na proteção dos Estados Unidos aos seus ator arbitrários, agredindo civis desarmados - basta os Estados Unidos retirarem proteção e o Estado judei  acaba.] e defendeu a transformação do Estado judeu num estado binacional, que deveria incluir toda a atual área de Israel, mais a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. Nesse novo Estado, segundo sua proposta, haveria direitos iguais para todos os judeus e árabes residentes em Israel e nos territórios palestinos. Seu artigo causou um terremoto na comunidade judaica e lhe valeu a expulsão do conselho editorial da revista.

Judt lecionou na Universidade de Nova York, na cadeira de Estudos Europeus. Seu livro Pós-guerra — uma história da Europa desde 1945 é monumental. Em março de 2008, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Um ano depois, estava tetraplégico; faleceu em 2010, depois de um calvário no qual escreveu três livros: O mal ronda a Terra, O chalé da memória e Pensando o século XX, baseado em conversações com Timothy Snyder. Judt fez parte do que chamou de “geração Hobsbawm”, homens e mulheres que começaram a se ocupar do estudo do passado em algum momento da “longa década de 1960” (entre 1959 e 1975), cujo interesse “foi marcado de forma indelével pelos escritos de Eric Hobsbawm, por mais que eles agora discordem de muitas de suas conclusões”.

Autocrítica
No ensaio Encosta abaixo até o final (Quando os fatos mudam, editora Objetiva, publicado no New York Review of Books, em maio de 1995, como uma resenha de A era dos extremos: O breve século XX, 1914-1991, de Eric Hobsbawm), Judt criticou duramente o seu mestre: “Ainda que escreva sem nenhuma ilusão a propósito da antiga União Soviética, ele se mostra relutante em admitir que ela não tinha aspectos que a redimissem (inclusive o de desempenhar o papel de manter ou impor a estabilidade no mapa da Europa)”. Judt também critica Hobsbawm por justificar o terror stalinista e as coletivizações forçadas com o esforço de guerra.


Segundo Judt, era difícil para Hobsbawm fazer autocrítica da própria fé: “Contudo, há duas ou três mudanças cruciais que tiveram lugar no mundo — a morte do comunismo, por exemplo, ou a relacionada perda de fé na história e nas funções terapêuticas do Estado a respeito da qual o autor nem sempre se mostra satisfeito. Isso é uma pena, já que forma e, às vezes, deforma seu relato de maneiras que podem diminuir seu impacto sobre aqueles que mais precisam lê-lo e aprender com ele. E senti falta, em sua versão do século XX, do olhar impiedosamente crítico que fez dele um guia tão indispensável para o século XIX”.

Em janeiro de 2018, [sic] o ex-senador Cristovam Buarque foi convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Agora, voltou à universidade britânica para lançar a versão em inglês do pequeno livro Onde erramos: de Itamar a Temer, publicado como e-book pela Tema Editorial, no qual o ex-governador de Brasília e ex-reitor da UnB faz uma polêmica autocrítica a partir daquela palestra. Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros.


Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense 


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O mundo é redondo - Nas entrelinhas

“As exportações pelos estados setentrionais do Brasil tendem a crescer regularmente, com a ferrovia norte-sul e o chamado Arco Norte, incluindo portos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas”

Em 12 de abril de 1961, a bordo da Vostok 1, Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ser lançado no espaço. A nave media apenas 4,4 metros de comprimento por 2,4m de diâmetro, e pesava 4.725 quilos, com dois módulos, um para acomodar os equipamentos e tanque de combustível, e o outro era a cápsula onde o cosmonauta realizou a proeza de ser o primeiro humano a ver que o nosso planeta é redondo: “A Terra é azul! Como é maravilhosa. Ela é incrível!”, exclamou Gagarin, durante a única volta que deu em órbita. Aos 27 anos, ele havia sido selecionado entre 19 pilotos submetidos a testes físicos e psicológicos rigorosíssimos. Tinha somente 1,57m de altura e pesava 69kg, ou seja, seu porte físico acabou sendo um diferencial para a seleção, como acontece com submarinistas e jóqueis.

Quando entrou na nave, fez um comentário como se fosse o último: “Em poucos minutos, possivelmente, uma nave espacial irá me levar para o espaço sideral. O que posso dizer sobre estes últimos minutos? Toda a minha vida parece se condensar neste momento único e belo. Tudo o que eu fiz e vivi foi para isso!” Naquele mesmo ano, ainda criança, levado por minha mãe ao Monumento dos Pracinhas, no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de ver o Gagarin. A imagem que trago na memória não é a do seu porte físico, é a da multidão, e não a do seu sorriso cativante, que aparece em todas as fotos, classificado pelo poeta russo Evguêni Evtuchenko (1932-2017) como o mais bonito do mundo.

Isso é conversa de comunista, dirão os terraplanistas, numa dupla demonstração de ignorância: Evtuchenko e o então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, lideraram os protestos que resultaram no fim da União Soviética e do chamado “socialismo real” no Leste Europeu. Não morra antes de morrer, seu livro em prosa publicado no Brasil pela Record, em 1999, relata a crise que levou ao colapso o sistema soviético, depois do sequestro de Mikhail Gorbatchov pelos militares, que tentaram dar um golpe de Estado contra a perestroica. Foi um tiro pela culatra. Seu poema Babi Yar, nome de um desfiladeiro nas imediações de Kiev, que relata o massacre de 35 mil judeus peCazaquistãolos nazistas, em setembro de 1941, serviu de inspiração para a 13ª Sinfonia de Chostakóvitch, cuja força lírica também foi uma crítica ao antissemitismo soviético.

O voo de Gagarin durou exatos 108 minutos, a uma altura de 315km a partir da superfície, em uma velocidade de 28 mil km/h. O cosmonauta se manteve em contato com a Terra por rádio e telégrafo. Na volta ao planeta, os cientistas soviéticos erraram o cálculo da trajetória de aterrissagem da nave, fazendo com que Gagarin caísse no Cazaquistão — a mais de 320km do local previsto. Depois da aterrissagem, sozinho, precisou esperar que a equipe o resgatasse. O erro acabou sendo mais uma prova do sucesso pleno da primeira missão espacial humana.

Lembrei-me de Gagarin por causa de um vídeo do físico norte-americano Carl Sagan, que circulou nas redes às vésperas do ano novo, numa dessas recidivas virais da internet, pois trata-se de um programa de tevê de 1980, de divulgação científica, intitulado Cosmos. O físico morreu em 1996, aos 62 anos. Nele, explica como alguns gregos antigos já haviam descoberto, através da simples observação, que a Terra é uma esfera. Eratóstenes, um estudioso grego, que dirigiu a famosa Biblioteca de Alexandria, viveu entre os anos de 276 a.C. e 195 a.C. Utilizando apenas “varas, olhos, pés, cérebro e o prazer de experimentar”, observou a sombra de duas colunas, uma colocada em Siena e outra em Alexandria, ambas no Egito.

Complexidade
Ele notou que em Siena, no dia do solstício de verão, ao meio-dia, o Sol ficava em seu ponto mais alto e a coluna lá instalada não projetava nenhuma sombra. Diferente daquela de Alexandria, que produzia uma pequena mancha no chão. Sagan explica então que, se a Terra fosse achatada, ambas estruturas produziriam sombras iguais. Mas, como o planeta é esférico, o sombreamento varia. Sagan mostra como o estudioso descobriu a angulagem entre as duas colunas a partir de suas sombras. O valor aproximado foi de sete graus. Com esse valor em mãos, o matemático fez um cálculo de equivalência, já que sabia a distância entre as duas cidades: quase 800 quilômetros. Fazendo as contas, ele chegou à medida de 40 mil quilômetros como a circunferência do planeta. Errou aproximadamente por 75 quilômetros, distância 4,4 vezes menor do que o erro de cálculo sobre o local de aterrissagem de Gagarin.


Ontem, ao se despedir como comentarista da Folha de S. Paulo, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor da Universidade de Paris — Sorbonne e da Fundação Getulio Vargas, chamava a atenção para a força gravitacional da economia chinesa sobre os eixos de logística e territoriais brasileiros. Ao reduzir de 48 para 35 dias a viagem entre os portos do nordeste da China e Roterdã, a navegação comercial entre a Europa e o Extremo Oriente pelo Oceano Ártico, iniciada em 2013, levou à modernização do Canal de Suez (2015) e do Canal do Panamá (2016). Por essa razão, as exportações pelos estados setentrionais do Brasil tendem a crescer regularmente, sobretudo quando for concluída a ferrovia norte-sul e o chamado Arco Norte, incluindo portos fluviais e marítimos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas.

“Pela primeira vez, desde a criação do Estado do Grão Pará e Maranhão, concebido em 1621 como entidade autônoma da América Portuguesa, no contexto da política filipina envolvendo as quatro partes do mundo, o comércio externo, e, essencialmente, o comércio marítimo, rearticula a geografia econômica da totalidade do território nacional”, destaca Alencastro. Detalhe: desde a circunavegação do globo por Fernão de Magalhães, já se sabia que a Terra é redonda e interligada pelos oceanos. Há duas consequências práticas do deslocamento do eixo do nosso comércio do Ocidente para o Oriente: primeiro, a relação comercial do Brasil com a China, que já é o nosso principal parceiro comercial, aumentará ainda mais de importância; segundo, como resultado, pode haver mais apreciação do câmbio, aumento das importações de bens industriais e desindustrialização. Ou seja, o Brasil precisa de uma política de comércio exterior que aumente a complexidade da nossa economia, isto é, a diversidade e a sofisticação da estrutura produtiva brasileira.

 Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense