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sábado, 1 de fevereiro de 2020

Casamentos arranjados - Carlos Alberto Sardenberg

Casamentos arranjados


O secretário especial de Desestatização, Salim Mattar, é certamente um liberal. E militante. Há anos e anos prega o liberalismo e o fato dele estar no governo é um sinal que não se pode ignorar. Experiente homem de negócios, ele não estaria no governo se não acreditasse que pode aplicar um programa liberal. E ele está parcialmente certo quando diz: “Talvez este governo tenha um discurso mais liberal do que está praticando. Concordo, mas nunca governo nenhum teve uma prática tão liberal quanto este”.

Trata-se de verdade parcial porque vale apenas para a área econômica, comandada pelo ministro Paulo Guedes, também ele um óbvio liberal. Mas liberal não se ajusta ao presidente Jair Bolsonaro, como se pode verificar pelas posições tomadas antes de se tornar um candidato presidencial viável. Ele correu para Guedes quando percebeu que precisava de uma política econômica e foi procurar alguém que fosse contra tudo feito pelo PT e pelo PSDB.  Foi, portanto, um casamento arranjado, não por amor, como sacou o ex-presidente do BC Gustavo Franco. Casamentos arranjados podem dar certo – assim como casamentos por amor podem dar errado.

No caso, tem funcionado em parte. Há um ajuste fiscal em curso. Saiu a reforma da previdência, por exemplo, e o déficit das contas públicas de 2019, de R$ 95 bilhões, é o menor em cinco anos. Houve privatizações e concessões. Nada especialmente grande, é verdade. Por ele, Mattar vendia tudo, incluídos Banco do Brasil e Petrobras. Não vai rolar, é claro, mas é melhor vender alguma coisa do que nada. Na lista apresentada por Mattar para os próximos dois anos, tem coisas interessantes, como a Casa da Moeda (para dezembro deste ano), a empresa que controla o porto de Santos (junho/2021) e os Correios (dezembro/21). As concessões estão em outra área e podem avançar.

A política monetária praticada pelo Banco Central vai bastante bem. A taxa básica de juros deve cair mais um tanto na semana que vem, para 4,25%, recorde histórico de baixa, com inflação rolando abaixo da meta. Há outros aspectos liberais no BC, menos visíveis, mas são medidas destinadas a ampliar a competição no mercado financeiro, torná-lo mais aberto, mais livre.O que o governo certamente ainda não conseguiu arrumar – de um modo liberal – está nos grandes fundos controlados pelo Estado, FGTS e FAT, por exemplo. É mais complicado, certamente, e o pessoal do Guedes, como ele mesmo admite, ainda está aprendendo.
De todo modo, mesmo depois da reforma da previdência, os gastos previdenciários e de pessoal são os que mais pesam. Ou seja, falta uma complementação na previdência, inclusive nos estados, e falta a reforma administrativa.

Esta última é uma promessa, junto com a reforma tributária, para este ano ainda. Ambas, especialmente a dos impostos, têm boa aceitação na cúpula do Congresso – e isso é mais do que meio caminho andado. Do outro lado do governo, está claro que o pessoal da cultura, da educação, dos costumes não tem nada de liberal. Ao contrário. É um baita problema. Não pode existir apenas a liberdade econômica, a liberdade de empreender – e aqui, aliás, tem muita coisa para fazer de modo a facilitar a vida de quem quer ganhar dinheiro honestamente.

Tem que ser respeitada a liberdade individual, a de cada um escolher como tocar sua vida, sem controles do Estado. Claro, a lei tem que garantir o direito de todos e o direito coletivo, mas o Estado não pode pretender determinar o que as pessoas devem ou não fazer, podem ou não estudar, podem ou não assistir.  O que nos leva a Regina Duarte. Seria uma liberal na cultura? Sim, seria.  Quem a conhece não a imagina impondo censura, por exemplo. Nem querendo dirigir a cultura nacional, como pretendia o secretário demitido.
Mas teria ela a mesma autonomia de Guedes? Seria possível um casamento tão arranjado de tal modo que o “marido” se comprometesse a não se intrometer nos assuntos da “mulher”?
A ver.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista

 

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

"O fenômeno Temer"

O título desse artigo parece encerrar uma contradição nos próprios termos. Não há nada tão, digamos, "não fenomenal" quanto o presidente Michel Temer. Não tem densidade eleitoral, não tem carisma, não empolga as massas, não lidera uma corrente política com grande apelo entre os mais pobres, não é artista ou cantor.

O contexto também lhe é hostil. Temer foi vice-presidente de um governo de péssima qualidade, assumiu a Presidência num momento de gravíssima crise econômica, seus principais parceiros de poder frequentam com assiduidade o noticiário sobre a Operação Lava Jato, presidiu durante anos um partido parceiro da catastrófica política econômica do PT -e por aí vai.

Os primeiros movimentos de seu mandato interino igualmente não foram muito animadores. O PT vociferou aos quatro ventos a tese do golpe, artistas engajados faziam seus protestos, hordas de manifestantes profissionais atravancavam as avenidas das grandes cidades. Temer fechou o Ministério da Cultura e foi obrigado a reativá-lo. A coisa não foi fácil.

Se o presidente tem muito pouca atratividade no que expõe para a sociedade, é especialíssimo naquilo que traduz para a classe política. "Viver é afinar o instrumento/ de dentro pra fora / de fora para dentro", dizem os versos de uma música. Temer se inscreve na segunda frase do verso. Ele passa, por enquanto, mais segurança para aqueles que governam do que para os que são governados.

Ao que consta, é o único presidente que transita ou transitou pelas três esferas do poder. Temer é completo: respeitado constitucionalista por formação, tem experiência executiva em área nevrálgica (segurança pública) e conhece como poucos os meandros do Congresso.

É simplesmente admirável que Temer, com toda sua limitação para ser um pop star da política e frente a tantas dificuldades, tenha conseguido, até agora, um desempenho espetacular. Nem mesmo Lula, à época tido internacionalmente como "o cara", chegou a ter a base parlamentar que Temer granjeou. A discrição venceu a idolatria, o mérito superou a fanfarronice.

Em pouco meses, o Congresso, estimulado pelo governo Temer, modificou a Lei do Petróleo, aprovou a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e criou a nova Lei de Governança das Estatais -que, pela nossa longuíssima e arraigada tradição de nepotismo e patrimonialismo, representa um avanço que chega a ser revolucionário.

Os primeiros resultados da gestão aparecem, como a monumental recuperação do valor de algumas empresas estatais, Banco do Brasil e Petrobras entre elas. Essa capacidade política de alguém que não foi ungido pelas urnas, mas catapultado pelas circunstâncias, não é algo comezinho.

Propor e aprovar a PEC do Teto, que vai contra tudo aquilo que existe de mais tacanho e arraigado na nossa classe política -a ideia de que aumentar indefinidamente os gastos públicos "faz parte do jogo"- não é coisa de um presidente comum. É tarefa para um fenômeno.
 
Fonte: Rubens Figueiredo, cientista político - Folha de S. Paulo