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domingo, 2 de janeiro de 2022

Papa Francisco completa 85 anos

Na sexta-feira, 17 de dezembro,   o papa Francisco completou 85 anos. Gosto do seu “jeitão” todo pastoral de conduzir a Igreja. Às vezes, em entrevistas, parece dar seus tropeços. Ora, mas até Pedro, em sua simplicidade de pescador, também deu. Paulo, ao contrário, era guerreiro e teólogo.

A história da Igreja e a Igreja na história traz a beleza dos dilemas humanos e respeita a personalidade e vocação de cada um. Em alguns momentos, a Igreja necessita de pescadores. Noutros, de pastores. Existiram papas guerreiros, diplomatas, filósofos e santos. A Igreja Católica está no mundo há 2 mil anos e acumulou sabedoria suficiente para saber se manter no mundo sem ser aniquilada pela total adequação ao mundo.

O momento sensível de hoje exige um pastor. Ontem, exigiu um teólogo. No Renascimento, um guerreiro. Durante a Segunda Guerra, um diplomata

Muitos católicos, hoje, tomados pelo espírito bélico alimentado pelo imaginário ideológico anticomunista, antiliberal, antissocialista, anticapitalista e até anticatólico, querem um papa guerreiro, não um papa pastor. Não querem Francisco. Na verdade, querem um papa que satisfaça os próprios tormentos políticos, que combata impiedosamente os inimigos. Contudo, a finalidade da Igreja é anunciar o Evangelho de Cristo e não ceder ao delírio triunfalista dos ideológicos.

Eu, olhando a história da Igreja e a Igreja na história, penso o seguinte: o momento sensível de hoje exige um pastor. Ontem, exigiu um teólogo. No Renascimento, um guerreiro. Durante a Segunda Guerra, um diplomata. E, entre a opinião da maioria tresloucada em busca de um líder enérgico para conter as nossas próprias fraquezas e o milenar Magistério da Igreja, que soube se manter no mundo sem se familiarizar demasiadamente com o mundo, eu fico com a Igreja.

Quando me converti, ninguém me provou, por meio de sofisticados cálculos e argumentos abstratos, a existência de Deus; ninguém me deu evidências, cabalmente comprovadas, de que Jesus de Nazaré era o Cristo, e que Ele foi morto, sepultado e ressuscitou no terceiro dia. Não se trata de provas. E eu não exigia isso. Tampouco me deram um esporro, um berro ou um tapa. Deram-me testemunho. Vieram-me ao encontro com toda disposição pastoral. Eu precisava de narrativa pessoal.

Na época, eu era um jovem leitor assíduo de Nietzsche, Baudelaire e Heidegger. Tinha muitas certezas. E uma delas era a inexistência de Deus. Hoje, tenho muitas dúvidas que atingem o “coração” – o centro de todo pessoa – em sua forma íntima. Este centro com o qual mergulhamos no abismo, este vazio de nós mesmos. E é lá onde descobrimos que Deus não está morto, pois Ele vive e reina.

A propósito deste Reino que o Natal sempre me faz lembrar, gostaria de dizer o seguinte: o pequeno Jesus de Nazaré não nasceu em berço de ouro e, quando homem feito, Cristo não morreu na glória: traído, açoitado, debochado, motivo de chacota entre romanos, de ódio entre os judeus, morreu crucificado. Cristianismo é escândalo: há 2 mil anos cristãos são perseguidos, torturados e martirizados.

Cristãos superaram o Império Romano, a perseguição árabe, alguns foram massacrados por chineses, japoneses e turcos. Venceram o Terror da Revolução Francesa, a noite escura da Revolução Russa... enfim, toda vez que vejo qualquer pagãozinho secularista tentando debochar do “sentimento religioso” dos cristãos, atacando seus símbolos mais caros, lembro-me que o cristão é o sal da terra e Cristo, a Luz do Mundo. Mas nada pior que o cristão que persegue em nome da fé, por medo e vingança.

A finalidade da Igreja é anunciar o Evangelho de Cristo e não ceder ao delírio triunfalista dos ideológicos

Por isso, diante do deboche do mundo para com o amor cristão, lembro-me da confiança de Nossa Senhora, do martírio de Estêvão, da conversão de Paulo e da brutal morte de Pedro, da solidão de Santo Antão, da vida de Santo Agostinho, da coragem de Santa Cecília, dos hinos de Santa Hildegarda de Bingen, da Suma Teológica de Tomás de Aquino, da catedral de Estrasburgo, da entrega de São Francisco de Assis, dos quadros de El Greco, da música de Palestrina, da Paixão segundo São João de Bach, do Réquiem de Mozart, da filosofia de Leibniz, dos estudos de Christophorus Clavius, dos monges trapistas, do martírio dos monges cartuxos retratado no filme O Grande silêncio.

Enfim, lembro-me ainda da minha avó rezando ao pé da cama, do Kyrie Eleison que minha mãe cantarolava, da firmeza teológica de Bento XVI e da doçura pastoral do papa Francisco. Toda a minha loucura por vingança, toda a minha ira para com o mundo, passa num instante e compreendo o sentido de ser cristão.

sábado, 21 de agosto de 2021

Os marcianos estão entre nós - Revista Oeste

Guilherme Fiuza

Estamos num tempo estranho em que não se busca solução de conflitos. Se investe no conflito. Duvida? Então dá uma olhada

A invasão dos marcianos narrada por Orson Welles mais de 80 anos atrás levou ao pânico parte da população norte-americana. O ator iniciou a transmissão de rádio informando que iria interpretar uma peça de teatro. Não adiantou. Parte das pessoas não ouviu o alerta porque ligou o rádio depois. Outra parte ouviu, mas acreditou assim mesmo que a Terra estava sendo tomada pelas criaturas esverdeadas do planeta vizinho. A vontade de acreditar é uma das forças mais brutas da natureza.

Hoje a humanidade está querendo acreditar numa escalada inexorável de conflito. Não só os conflitos de sempre — entre partidos, religiões, supostas ideologias, etc. A nova onda é todo mundo se engalfinhando por alguma coisa com todo mundo. Colegas, vizinhos, casais, amigos, irmãos. Meu reino por um mal-entendido.

O panorama pandemônico ajuda, mas está longe de explicar tudo. Olha em volta que você vai ver. Já há pelo menos um problemão atravessando tudo e fazendo um estrago dos grandes, mas não basta. É preciso discutir até a morte se um atleta olímpico pode desistir. Se a desistência nesse caso é respeito aos limites humanos ou concessão à fraqueza. E lá vêm as hordas com gosto de sangue na boca dispostas ao duelo sem fim. O que seria uma questão legítima já nasce com os códigos da dicotomia burra. Escolhe um lado, enche as mãos de pedras e cai dentro.

Estamos num tempo estranho em que não se busca solução de conflitos. Se investe no conflito. Duvida? Então dá uma olhada.

O importante é ter meia dúzia na plateia do Coliseu imaginário

Sabe aquele cara que falava de Proust, Baudelaire e só dava um refresco para explicar o que Vivaldi quis dizer com a inusitada dobra de compasso? Pois é. Ele hoje está por aí comentando a última do Renan Calheiros — e caprichando no veneno da flecha destinada à tribo inimiga. Não importa que seja uma flecha digital de mentirinha e que nem esteja muito claro quem é o inimigo. O importante é ter meia dúzia na plateia do Coliseu imaginário e ao menos uma alma penada passando recibo. Ele já terá colhido seu crachá de guerreiro.

Quem é maior: o Flamengo ou o Corinthians? Esquece. Mesmo no terreno dos duelos mais bobos e divertidos, onde até as cores da camisa poderiam ser evocadas cega e apaixonadamente como prova incontestável de virtude, a coisa desandou. Agora o negócio é dizer que teve um torcedor do adversário que ofendeu uma minoria, o que será rebatido com uma acusação contra o jogador do rival que não teve empatia na rede social. Mas o futebol não era bom justamente porque você podia brigar com alguém para provar que as cores do seu time são melhores que as do outro, e ponto final?

Era, mas isso acabou. A graça agora é plantar conflito de forma que você possa chegar a uma problematização ética — a ponto de alegar que o seu caráter é superior ao do seu oponente, cujas falhas você apontará implacavelmente.

Ou visto de outra forma: a discussão ética foi rebaixada a uma briga de torcida.

Aí de repente você vê num canto qualquer uma nota dizendo que o grupo Boca Livre se separou por causa da vacina. Você não tem culpa se isso te der a sensação de que estão rompendo até o que já estava rompido. Parece que um integrante achava que a picada era a salvação e outro achava que era a perdição. Aí acabou o amor. Impressionante. Com toda certeza essas bocas já foram mais livres.

O negócio é sair no tapa. Mas não se esqueça: é preciso um pretexto filosófico. 
Nada de mandar o marido dormir na sala porque está roncando alto. Expulse-o da cama chocada com o fato de que alguém possa dormir tão profundamente sabendo que as baleias estão ameaçadas de extinção.  
E se ele disser que não sabia, ameace-o com o divórcio
Você não pode viver ao lado de um alienado. 
E se ele te perguntar por que você vive há anos ao lado de um alienado, responda que é porque você é tolerante e inclusiva, mas tudo tem limite.
 
Rompa com o seu irmão porque ele se diz de esquerda. 
Rompa com a sua irmã porque ela se diz de direita. 
Vocês vivem do mesmo jeito, no mesmo lugar, sob as mesmas regras, têm até gostos parecidos, amigos em comum, conviveram até outro dia em harmonia e nenhum de vocês dois jamais disse que queria se mandar para um lugar mais afeito à sua suposta filosofia política. 
Mas agora vocês se descobriram cão e gato. Só falta escolherem deuses diferentes para adorar detestar um ao outro.

Não há mais dúvidas. Os marcianos estão entre nós. É crer para ver.

Leia também Puxando o tapete da democracia”

Guilherme Fiuza, colunista - Revista Oeste