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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Bolsonaro e sua circunstância - Editorial de O Estado de S. Paulo



Por Ricardo Noblat

O assessor que se inspirou em Goebbels só foi exonerado porque houve uma grita generalizada


Não causa surpresa o derretimento acelerado da popularidade do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemente divulgada. O levantamento mostrou que, em um ano, a expectativa positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuais, de 63% para 40%. O índice de entrevistados que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Pode-se dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra. [será que estes brasileiros que estão 'contra' o presidente Bolsonaro votarão nele nas eleições de outubro próximo? ops... são eleições municipais, Bolsonaro e Moro estarão concorrendo em  2022.]

O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiros a sensação de que suas decisões estapafúrdias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalidade, não são meros acidentes ou fruto de circunstâncias passageiras, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é. Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldade que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiência de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredita deliberadamente o exercício da Presidência porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperável, convenceu-se de que foi eleito para desmoralizar a política e sua liturgia institucional, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospectiva, a reunião ministerial em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificada) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas. [o cargo de presidente da República entrou em um processo crescente de apequenamento, de desmoralização a partir de janeiro de 2003 e só com Temer, em 2016, parou o processo;
Bolsonaro, por uma questão de índole, prefere a informalidade - diferente do Sarney não é apegado à liturgia do cargo - só que comete alguns exageros que são sempre maximizados e interpretados pelo lado mais negativo.
Já conseguiram acusar o presidente Bolsonaro de xingar mãe de jornalista, durante bate-papo com aqueles profissionais, para desviar a atenção do tema da entrevista (que os mesmos 'inventores' dizem não estar agradando ao Chefe do Poder Executivo) pra o xingamento.]

Num dia, o ministro da Educação aparece num vídeo dançando com um guarda-chuva, numa imitação circense do filme Dançando na Chuva, para acusar seus críticos de difundirem fake news;

 noutro, o secretário da Cultura toma emprestado trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, para anunciar o advento de uma cultura “nacional” financiada pelo Estado, causando horror e estupefação no País e fora dele. Entre um e outro desses momentos nada edificantes de seus assessores, o próprio presidente Bolsonaro achou tempo e oportunidade para fazer piadas de mau gosto sobre um vasto cardápio de temas grosseiros, como se estivesse em um churrasco com amigos.

Enquanto isso, sempre que pressionado a tomar decisões realmente relevantes para o País, como autorizar privatizações potencialmente polêmicas, cortar privilégios de servidores públicos e reduzir subsídios, o presidente hesitou. Mesmo a reforma da Previdência, que o governo celebra como um feito de Bolsonaro, foi sabotada em vários momentos pelo presidente, tendo sido aprovada graças à mobilização de parlamentares e alguns técnicos do governo. Preocupado em construir seu próprio partido e sua candidatura à reeleição, sobre a qual fala quase todos os dias, Bolsonaro dedica todo o seu tempo não a pensar em maneiras de promover o desenvolvimento do País, mas a alimentar polêmicas de cunho claramente eleitoreiro, enquanto assina medidas destinadas à irrelevância – mas só depois de causar tumulto e insegurança jurídica no País.

Quando confrontado pelos jornalistas a respeito disso ou a respeito dos cada vez mais volumosos problemas do clã Bolsonaro e de alguns de seus assessores mais próximos com a Justiça ou com a lisura administrativa, o presidente reage de forma truculenta. Mais recentemente, disse que os jornalistas são uma “espécie em extinção” e mandou que a imprensa tomasse “vergonha na cara” e tratasse de “deixar o governo em paz”. (Ver editorial A tenacidade da imprensa.)

Não são rompantes, e perde tempo quem acredita na possibilidade de que, com o tempo, Bolsonaro vá temperar seu comportamento. O assessor que se inspirou em Goebbels para anunciar o “renascimento da cultura nacional” só foi exonerado porque houve uma grita generalizada diante de tamanho absurdo. Noves fora o plágio nazista, o conteúdo da fala que custou o cargo ao tal secretário é essencialmente o que Bolsonaro já disse e repetiu inúmeras vezes, mesmo antes da eleição. Portanto, ninguém pode se dizer surpreendido, nem mesmo os eleitores mais ingênuos. Bolsonaro é Bolsonaro há muito tempo.

Blog do Noblat -  VEJA - Transcrito em 19 janeiro 2020

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Queiroz, do câncer ao ‘capital político’-- Valor Econômico

Cristian Klein


Tempo do Judiciário é o tempo da política e o do dinheiro


No início do ano, quem se preocupava com as condições de saúde do enfermo Fabrício Queiroz, internado para tratamento de um câncer no cólon, pôde respirar aliviado. Amigo de Jair Bolsonaro, o ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, aparecia num vídeo, esbanjando felicidade. No quarto do hospital Albert Einstein, em São Paulo, Queiroz dançava na noite de réveillon, enquanto a doença era usada como justificativa para faltar a seguidos depoimentos ao Ministério Público do Rio. Para o MP fluminense, o ex-policial militar é suspeito de ser o operador de um esquema de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, liderado pelo primogênito de Bolsonaro. [o espantoso é o deboche com que tratam o portador de uma das piores doenças - Queiroz às vésperas de realizar uma cirurgia de elevado risco (seja  durante o procedimento, seja posteriormente, visto existir a possibilidade da cirurgia não ser exitosa) optou por realizar uma despedida restrita a familiares e que foi gravada por um celular. 
Procedimento absolutamente normal e que buscava registrar, se necessário, o que poderia horas depois ser imagens de uma despedida.
Queiroz não utilizou a enfermidade como pretexto para fugir do depoimento ao MP - prestou por escrito e na forma da lei.
Qualquer pessoa, até um petista, sabe que se Queiroz estivesse mentindo o MP não vacilaria em espetaculizar sua prisão.]



Seis meses depois - como o ministro da Educação Abraham Weintraub faria em maio, numa paródia patética de Gene Kelly em “Dançando na chuva” - Queiroz voltou a sapatear na frente dos brasileiros. Revelado agora por “O Globo”, o áudio em que o ex-assessor parlamentar trata de cargos no Congresso Nacional mostra como o esquema de rachadinha atribuído ao clã Bolsonaro continuaria a pleno vapor. Da Assembleia Legislativa do Rio se expandiu para Brasília. Extrair renda de salários de assessores parlamentares é uma das especialidades da política nacional. Mas a prática no entorno do presidente adquire contornos de compulsão.



“Tem mais de 500 cargos lá, cara, na Câmara e no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [família Bolsonaro] em nada, em nada”, diz o interlocutor, apontado como Fabrício Queiroz. A mensagem de voz continua: “Vinte continho aí para gente caía bem para c***, meu irmão, entendeu? Não precisa vincular ao nome. Só chegar lá e, pô cara, o gabinete do Flávio faz fila de deputados e senadores, pessoal para conversar com ele, faz fila”.



Desde o estouro do escândalo das rachadinhas na Assembleia Legislativa fluminense, em dezembro, Bolsonaro e Flávio se dizem distantes do ex-assessor, mas o áudio indica que o filho Zero Um do presidente permanece com Queiroz em sua órbita. Pode ser por lealdade - qualidade que não é muito cara aos bolsonaristas, como mostra a máquina de fritar aliados e a recente crise no PSL. Pode ser por precaução. Se a sabedoria diz ser importante manter os amigos por perto e os inimigos ainda mais próximos, o que dirá do ex-motorista que se tornou um arquivo vivo, conhecedor do lado obscuro da família Bolsonaro e do contato com milicianos?



Pode ser ainda que Queiroz esteja nas imediações e se movimente de maneira não totalmente controlável ao clã. Afinal, a divulgação do áudio suscitou discursos não alinhados. De Pequim, Bolsonaro afirmou que “o Queiroz cuida da vida dele, eu cuido da minha”. Flávio disse não ter mais contato com o ex-assessor “há quase um ano”. Em nota, porém, Fabrício Queiroz, além de não negar a autenticidade da mensagem, se apresenta como alguém ainda presente e influente, a ponto de poder fazer a “indicação de eventuais assessores” parlamentares em Brasília. E “vê com naturalidade o fato dele ser uma pessoa que ainda detenha algum capital político, uma vez que nunca cometeu qualquer crime, tendo contribuído de forma significativa na campanha de diversos políticos no Estado do Rio de Janeiro”.



Ou seja, Queiroz arroga ter um “capital político” embora a noção raramente seja associada à figura de um mero assessor. Pode dizer isso porque talvez não tenha sido, de fato, um “mero” funcionário, lotado no gabinete de Flávio. Sabe que sua presença é radioativa e busca algo em troca da discrição restrita aos bastidores. Uma discrição, aliás, que escapa até do alcance da lei. O único depoimento de Queiroz obtido pelo MP foi por escrito e nunca mais os promotores lhe importunaram. Chega a ser assombroso que, em tempos de Operação Lava-Jato e tanto furor anticorrupção, a elucidação do esquema das rachadinhas (peculato) - que envolve ainda a suspeita de lavagem de dinheiro por meio de transações no setor imobiliário - passe incólume aos olhos da Justiça e da opinião pública, privada de melhor juízo a respeito dos que a governam.



O caso está congelado desde que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, atendeu em julho ao pedido da defesa de Flávio e suspendeu - com repercussão em processos do país inteiro - as investigações que utilizam dados, sem autorização judicial, fornecidos pela Receita Federal ou pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, cujos relatórios apontaram movimentação atípica na conta bancária de Queiroz. Coaf virou uma sigla tão maldita para Bolsonaro que o presidente decidiu trocar o órgão de nome para Unidade de Inteligência Financeira (UIF).



O rumo dessas investigações será decidido pelo plenário do Supremo, em novembro. Mas a extrema boa vontade da Corte - ou, particularmente, do suposto acordão cerzido por Dias Toffoli - com o clã Bolsonaro é de tipo semelhante ao que se atribui à condescendência do STF em relação à possibilidade de soltura do ex-presidente Lula, José Dirceu e outros presos da Lava-Jato.



O assunto é intrincado e tem várias nuances. Mas pode ser resumido em poucas palavras: o tempo do Judiciário é o tempo da política ou o do dinheiro. No julgamento suspenso ontem no STF, cujos votos indicam formação de maioria contrária à prisão em segunda instância, ficou cristalino o clima favorável ao que, politicamente, há dois anos era insustentável. Depois de preso, Lula já pode ser solto. O Supremo, de poder contramajoritário que é, responde às maiorias de ocasião. O tempo do dinheiro é o tempo das bancas de advogados bem pagas e da longa duração dos recursos que favorecem a impunidade. As ilusões só não desvanecem pela hipocrisia. A sanha anticorrupção do ex-xerife Sérgio Moro não é a mesma quando denúncias ameaçam o chefe. A audácia de ontem, alegadamente em defesa de uma causa, transforma-se hoje na medida obediência ao senhor do Planalto. Nenhum pio sobre Queiroz, nada a comentar sobre o ministro do Turismo e o laranjal do PSL. Na indignação seletiva e autoritária da militância bolsonarista e lavajatista, tudo se resume a manter Lula preso, nem que seja por um golpe de Estado. Quanto a Queiroz, Flávio e o pai, podem seguir sapateando em todas as instâncias e circunstâncias.

Cristian Klein, jornalista e cientista político - Valor Econômico - Política