Cristian Klein
Tempo do Judiciário é o tempo da política e o do dinheiro
No início do ano, quem se preocupava com as condições de saúde do
enfermo Fabrício Queiroz, internado para tratamento de um câncer no
cólon, pôde respirar aliviado. Amigo de Jair Bolsonaro, o ex-assessor do
senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, aparecia num vídeo,
esbanjando felicidade. No quarto do hospital Albert Einstein, em São
Paulo, Queiroz dançava na noite de réveillon, enquanto a doença era
usada como justificativa para faltar a seguidos depoimentos ao
Ministério Público do Rio. Para o MP fluminense, o ex-policial militar é
suspeito de ser o operador de um esquema de peculato, lavagem de
dinheiro e organização criminosa, liderado pelo primogênito de
Bolsonaro. [o espantoso é o deboche com que tratam o portador de uma das piores doenças - Queiroz às vésperas de realizar uma cirurgia de elevado risco (seja durante o procedimento, seja posteriormente, visto existir a possibilidade da cirurgia não ser exitosa) optou por realizar uma despedida restrita a familiares e que foi gravada por um celular.
Procedimento absolutamente normal e que buscava registrar, se necessário, o que poderia horas depois ser imagens de uma despedida.
Queiroz não utilizou a enfermidade como pretexto para fugir do depoimento ao MP - prestou por escrito e na forma da lei.
Qualquer pessoa, até um petista, sabe que se Queiroz estivesse mentindo o MP não vacilaria em espetaculizar sua prisão.]
Seis meses depois - como o ministro da Educação Abraham Weintraub faria
em maio, numa paródia patética de Gene Kelly em “Dançando na chuva” -
Queiroz voltou a sapatear na frente dos brasileiros. Revelado agora por
“O Globo”, o áudio em que o ex-assessor parlamentar trata de cargos no
Congresso Nacional mostra como o esquema de rachadinha atribuído ao clã
Bolsonaro continuaria a pleno vapor. Da Assembleia Legislativa do Rio se
expandiu para Brasília. Extrair renda de salários de assessores
parlamentares é uma das especialidades da política nacional. Mas a
prática no entorno do presidente adquire contornos de compulsão.
“Tem mais de 500 cargos lá, cara, na Câmara e no Senado. Pode indicar
para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [família
Bolsonaro] em nada, em nada”, diz o interlocutor, apontado como Fabrício
Queiroz. A mensagem de voz continua: “Vinte continho aí para gente caía
bem para c***, meu irmão, entendeu? Não precisa vincular ao nome. Só
chegar lá e, pô cara, o gabinete do Flávio faz fila de deputados e
senadores, pessoal para conversar com ele, faz fila”.
Desde o estouro do escândalo das rachadinhas na Assembleia Legislativa
fluminense, em dezembro, Bolsonaro e Flávio se dizem distantes do
ex-assessor, mas o áudio indica que o filho Zero Um do presidente
permanece com Queiroz em sua órbita. Pode ser por lealdade - qualidade
que não é muito cara aos bolsonaristas, como mostra a máquina de fritar
aliados e a recente crise no PSL. Pode ser por precaução. Se a sabedoria
diz ser importante manter os amigos por perto e os inimigos ainda mais
próximos, o que dirá do ex-motorista que se tornou um arquivo vivo,
conhecedor do lado obscuro da família Bolsonaro e do contato com
milicianos?
Pode ser ainda que Queiroz esteja nas imediações e se movimente de
maneira não totalmente controlável ao clã. Afinal, a divulgação do áudio
suscitou discursos não alinhados. De Pequim, Bolsonaro afirmou que “o
Queiroz cuida da vida dele, eu cuido da minha”. Flávio disse não ter
mais contato com o ex-assessor “há quase um ano”. Em nota, porém,
Fabrício Queiroz, além de não negar a autenticidade da mensagem, se
apresenta como alguém ainda presente e influente, a ponto de poder fazer
a “indicação de eventuais assessores” parlamentares em Brasília. E “vê
com naturalidade o fato dele ser uma pessoa que ainda detenha algum
capital político, uma vez que nunca cometeu qualquer crime, tendo
contribuído de forma significativa na campanha de diversos políticos no
Estado do Rio de Janeiro”.
Ou seja, Queiroz arroga ter um “capital político” embora a noção
raramente seja associada à figura de um mero assessor. Pode dizer isso
porque talvez não tenha sido, de fato, um “mero” funcionário, lotado no
gabinete de Flávio. Sabe que sua presença é radioativa e busca algo em
troca da discrição restrita aos bastidores. Uma discrição, aliás, que escapa até do alcance da lei. O único
depoimento de Queiroz obtido pelo MP foi por escrito e nunca mais os
promotores lhe importunaram. Chega a ser assombroso que, em tempos de
Operação Lava-Jato e tanto furor anticorrupção, a elucidação do esquema
das rachadinhas (peculato) - que envolve ainda a suspeita de lavagem de
dinheiro por meio de transações no setor imobiliário - passe incólume
aos olhos da Justiça e da opinião pública, privada de melhor juízo a
respeito dos que a governam.
O caso está congelado desde que o presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), Dias Toffoli, atendeu em julho ao pedido da defesa de Flávio e
suspendeu - com repercussão em processos do país inteiro - as
investigações que utilizam dados, sem autorização judicial, fornecidos
pela Receita Federal ou pelo Conselho de Controle de Atividades
Financeiras, cujos relatórios apontaram movimentação atípica na conta
bancária de Queiroz. Coaf virou uma sigla tão maldita para Bolsonaro que
o presidente decidiu trocar o órgão de nome para Unidade de
Inteligência Financeira (UIF).
O rumo dessas investigações será decidido pelo plenário do Supremo, em
novembro. Mas a extrema boa vontade da Corte - ou, particularmente, do
suposto acordão cerzido por Dias Toffoli - com o clã Bolsonaro é de tipo
semelhante ao que se atribui à condescendência do STF em relação à
possibilidade de soltura do ex-presidente Lula, José Dirceu e outros
presos da Lava-Jato.
O assunto é intrincado e tem várias nuances. Mas pode ser resumido em
poucas palavras: o tempo do Judiciário é o tempo da política ou o do
dinheiro. No julgamento suspenso ontem no STF, cujos votos indicam
formação de maioria contrária à prisão em segunda instância, ficou
cristalino o clima favorável ao que, politicamente, há dois anos era
insustentável. Depois de preso, Lula já pode ser solto. O Supremo, de
poder contramajoritário que é, responde às maiorias de ocasião. O tempo
do dinheiro é o tempo das bancas de advogados bem pagas e da longa
duração dos recursos que favorecem a impunidade. As ilusões só não desvanecem pela hipocrisia. A sanha anticorrupção do
ex-xerife Sérgio Moro não é a mesma quando denúncias ameaçam o chefe. A
audácia de ontem, alegadamente em defesa de uma causa, transforma-se
hoje na medida obediência ao senhor do Planalto. Nenhum pio sobre Queiroz, nada a comentar sobre o ministro do Turismo e o
laranjal do PSL. Na indignação seletiva e autoritária da militância
bolsonarista e lavajatista, tudo se resume a manter Lula preso, nem que
seja por um golpe de Estado. Quanto a Queiroz, Flávio e o pai, podem
seguir sapateando em todas as instâncias e circunstâncias.
Cristian Klein, jornalista e cientista político - Valor Econômico - Política