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segunda-feira, 3 de junho de 2019

Tensão na fronteira

O dia em que um incidente banal por pouco não provocou um conflito militar entre o Brasil e a Venezuela


Era início da tarde de 24 de fevereiro, um domingo, quando a cúpula do Ministério da Defesa interrompeu o descanso para uma reunião emergencial. Militares de alta patente foram convocados pelo ministro Fernando Azevedo e Silva para discutir o fracasso da operação de envio de alimentos, remédios e material de higiene à Venezuela, país devastado pelo regime do ditador Nicolás Maduro. Naquele dia, quase 20 toneladas da ajuda humanitária doada pelos Estados Unidos, que seria entregue através da fronteira brasileira, não puderam entrar no território vizinho. Com medo de que o carregamento desestabilizasse ainda mais a sua gestão, exatamente o que pretendiam os governos brasileiro e americano, Maduro determinou o fechamento da fronteira. Houve confrontos entre venezuelanos favoráveis e contrários ao ditador, com direito a lançamento de coquetéis molotov e bombas de gás que respingaram em solo brasileiro. Na cidade de Santa Elena, a 15 quilômetros do Brasil, três pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.

O nível de tensão já estava alto quando dois carros de combate do Exército venezuelano foram posicionados próximo a Pacaraima, cidade fronteiriça da Venezuela, localizada a 200 quilômetros de Boa Vista, a capital de Roraima. Seria o prenúncio de um ataque ao Brasil? Expoente da ala mais radical do governo, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerou o ato uma agressão e uma ameaça à soberania nacional e pressionou para que o governo brasileiro respondesse à altura. O chanceler queria uma resposta militar. O ministro da Defesa, então, convocou a reunião emergencial, que durou cinco horas e da qual participaram, entre outros, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e o porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros. Foram analisadas diversas possibilidades de resposta ao governo venezuelano da negociação diplomática, como queria a ala ligada às Forças Armadas, ao confronto, como defendia o chanceler. Os militares, que se tornaram a reserva de moderação do governo Bolsonaro, concluíram que a ideia de Araújo era uma sandice e a descartaram. Por dois motivos.

Primeiro: os militares brasileiros que atuam na fronteira negociaram com os militares venezuelanos, que cederam e fizeram recuar os carros de combate. Honraram, assim, a tradição diplomática nacional de não atuar como interventores, mas mediadores de conflitos. Segundo: os militares brasileiros concluíram que o Brasil não teria condição — nem financeira nem logística de iniciar uma batalha. Mobilizar a estrutura de combate poderia implicar gastos de até 400 bilhões de reais, conforme cálculos preliminares de técnicos do Ministério da Defesa. Além disso, seria impossível organizar as tropas e direcionar o aparato necessário (munições, combustíveis, automóveis e suprimentos de manutenção) em tempo hábil. O Exército precisaria de pelo menos seis meses para se fazer presente na Região Norte em condições de guerrear com a Venezuela. Na reunião, também se descartou a possibilidade de um ataque aéreo, diante da informação de que as forças do país vizinho possuem mísseis russos que poderiam abater facilmente as aeronaves. Até surgiram dúvidas se tais mísseis estariam em boas condições ou se haveria militares capacitados para manejá-los, mas os brasileiros preferiram não pagar para ver. Também pesou o entendimento de que a própria população brasileira não apoiaria o conflito.

“Quanto custa à mãe receber um filho dentro de um saco preto? A população brasileira está interessada nisso?”, questionou um dos participantes da reunião. Após o encontro, o Ministério da Defesa emitiu nota em que ressaltou a negociação direta entre militares brasileiros e venezuelanos para a solução do problema. “A fronteira do Brasil continua aberta para acolher os refugiados”, dizia o texto. A posição de Ernesto Araújo, que também seduzia o deputado Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente da República, havia sido descartada. A VEJA, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse que a linha de conduta do Brasil já está traçada: é seguir a Constituição, que determina a não intervenção em outros países (veja a entrevista). Por enquanto, a guerra é outra.

Por dia, uma média de 500 venezuelanos entram no Brasil pelo município de Pacaraima. São pessoas interessadas em comprar alimentos, gasolina e material de higiene, mas há também fugitivos da ditadura de Maduro. VEJA acompanhou dois dias da operação militar na fronteira e em Boa Vista. As cidades mais parecem redutos venezuelanos. Nas rádios, nas ruas e em cartazes é fácil encontrar o espanhol como idioma corrente. A área externa da rodoviária de Boa Vista foi transformada em um grande acampamento improvisado para receber quem não consegue vaga nos abrigos específicos, que estão lotados. No galpão também improvisado ao lado do embarque e desembarque dos ônibus, dormem cerca de         1 000 venezuelanos em barracas emprestadas pelo Exército. Eles recebem três refeições diárias e têm direito a banheiro e chuveiro, um luxo para quem, em momentos de maior desespero, chegou a se alimentar de lixo . “Meus filhos estavam passando fome. Viver nesta situação hoje é melhor do que a que vivíamos lá”, conta a venezuelana Aracelis Arteaga, de 30 anos.

O acolhimento aos venezuelanos já encorajou 101 militares a abandonar o regime de Maduro e vir para o Brasil. A maioria dos desertores é de baixa patente. VEJA apurou, porém, que pela primeira vez um militar mais graduado decidiu buscar refúgio no país. Comandante do Esquadrão de Cavalaria Motorizada, o quartel venezuelano mais próximo do Brasil, o major José Gregorio Basante fugiu para Pacaraima na noite de 11 de maio. Às autoridades brasileiras, ele informou estar sendo acusado injustamente de crimes como tortura e roubo de combustível por discordar das práticas impostas pelo regime venezuelano. Segundo a sua versão, exigiam que ele cobrasse propina de garimpeiros e pagasse 100 gramas de ouro todos os meses para se manter no posto, o que teria se negado a fazer. O major entrou no Brasil após o governo venezuelano mandar prendê-lo. Sua mulher também escapou com a filha de 1 mês no colo. Basante tinha certeza de que, se ficasse na Venezuela, seria morto.

A chegada de militares é vista como um trunfo pela inteligência do Exército brasileiro. Ninguém melhor do que os desertores para detalhar as estratégias de Maduro e as reais condições das forças venezuelanas. Os brasileiros souberam, por exemplo, que na véspera da tentativa de entrega da ajuda humanitária foram deslocadas dez viaturas blindadas para o quartel de Santa Elena. A ordem era acioná-las caso a entrada dos mantimentos se confirmasse. A inteligência brasileira também foi alertada da possibilidade de Maduro estar infiltrando seus agentes em campos de refugiados. Um dado colhido serviu para tranquilizar os militares: as forças venezuelanas estariam mais sucateadas do que as brasileiras. O salário de um oficial intermediário das Forças Armadas venezuelanas equivale a cerca de 80 reais.

Publicado em VEJA de 5 de junho de 2019, edição nº 2637
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domingo, 26 de novembro de 2017

Reino do terror: Desertores relatam a vida sob o regime de Kim Jong-un




Poucos escapam do país mais isolado do mundo. Mas quem foge revela uma rotina sob vigilância, na qual as ilegalidades tentam contornar o que o Estado já não oferece

Quando Kim Jong-un se tornou o líder do país, há quase seis anos, muitos norte-coreanos pensaram que suas vidas melhorariam. Ele ofereceu a esperança de uma mudança geracional na dinastia comunista mais longeva do mundo. Além disso, era um millennial com experiência no mundo exterior.


Porém, o Grande Sucessor, como é chamado, acabou sendo tão brutal quanto o pai e o avô. Apesar da maior liberdade econômica, Kim tentou fechar a nação mais do que nunca, reforçando a segurança na fronteira com a China e intensificando os castigos para os que se atrevem a tentar atravessá-la. Na Coreia do Norte, a liberdade de expressão e de pensamento ainda é miragem.


O “Washington Post” entrevistou mais de 25 norte-coreanos que escaparam. Eles contaram sobre a vida no país e como ela mudou, ou não, desde que Kim assumiu o poder em 2011. Muitos moravam perto da fronteira com a China — onde a vida é mais difícil e o conhecimento do exterior mais difundido — e são parte de um pequeno grupo pronto para assumir os riscos de uma fuga.

  • Dinheiro fala mais alto
  • Repressão e desilusão
  • Relatos de quem fugiu
  • O vendedor de drogas
  • Construtor na Rússia
  • O telefonista clandestino
  • A universitária
  • A menina rica
  • O magnata em silêncio
  • O vendedor de feijões
  • O médico

Ao relatar suas experiências pessoais, que incluem a tortura e a cultura de vigilância, os refugiados pintam um quadro de um Estado outrora comunista em que tudo está quebrado, e a economia estatal paralisada. Hoje, os norte-coreanos fazem seu próprio caminho, ganhando dinheiro de forma empreendedora e frequentemente ilegal. Há poucos problemas hoje na Coreia do Norte que o dinheiro não pode resolver.

Assim como a vida no país mudou, também mudaram as razões para fugir. Cada vez mais, as pessoas deixam o país não pela miséria, como faziam após a fome nos anos 1990. Agora, escapam por desilusão. A atividade do mercado está explodindo, e com isso vem o fluxo de informação, seja com comerciantes que atravessam a China ou com novelas salvas em pendrives, o que leva muitos a sonharem como não sonhavam antes. Alguns deixam o país porque querem que os filhos tenham uma educação melhor. Há aqueles que escapam porque seus sonhos de sucesso e riqueza são frustrados pelo sistema. Outros fogem porque querem falar.

Na teoria, a Coreia do Norte é um bastião do socialismo, onde o Estado dá casa, saúde, educação e emprego. Na prática, a economia estatal raramente opera. As pessoas trabalham em fábricas ou campos, mas há pouco a fazer, e elas não recebem quase nada. Uma vibrante economia privada surgiu por necessidade, na qual os norte-coreanos encontram meios de faturar por conta própria, seja vendendo drogas ou tofu caseiro, através de suborno ou contrabando de pequenos DVD players.
  

A população aprendeu a empreender com a fome. Enquanto os homens iam trabalhar nas fábricas, as mulheres faziam macarrão, ficavam com um pouco e vendiam o restante para comprar mais milho no outro dia. Crianças sem casa roubavam tampas de bueiro para vender como sucata. Os mercados começaram a aparecer e se fortalecer. Das grandes cidades aos pequenos vilarejos, há algum mercado onde as pessoas vendem suas mercadorias e ganham dinheiro. Alguns são estatais, outros independentes.

O dinheiro agora é necessário para quase tudo — até para o que o regime se vangloria de dar, como casa e escola. O suborno e a corrupção são endêmicos, enfraquecendo o governo, afrouxando os controles e criando incentivos que nem sempre estão de acordo com as prioridades de Kim. A capacidade de ganhar dinheiro levou a uma visível desigualdade num país que se promovia como socialista e igualitário. Aqueles que trabalham só em empregos oficiais ganham pouco por mês e provisões para complementar os salários.

É impossível exagerar o culto ao redor da família Kim. O fundador da dinastia, Kim Il-sung, seu filho, Kim Jong-il, e seu neto, Kim Jong-un, formam uma santíssima trindade no país. Não há críticas a eles ou questionamentos ao sistema — ao menos sem arriscar a sua liberdade e a da família inteira. Até a vida pode correr jogo.  A Coreia do Norte opera num estado de vasta vigilância, com um Departamento de Segurança ameaçador. Seus agentes estão por todos os lados e trabalham impunes. O regime também tem um sistema de observação entre vizinhos. Os distritos de cada cidade são divididos em grupos de até 40 famílias, cada um com um líder que coordena a vigilância local e incentiva as pessoas a delatar.

Para aqueles que se afastam do regime de uma forma que dinheiro não consegue resolver, a punição é dura. Os fugitivos das prisões políticas relatam tratamento brutal, como tortura medieval com grilhões e fogo, forçados até a abortos sob métodos cruéis. Ativistas dizem que isso teria diminuído levemente com Kim. Porém, ataques e tortura são comuns, assim como execuções públicas. A fome é parte da punição, até para crianças. Um adolescente de 16 anos perdeu cinco quilos na prisão, pesando 39 quilos ao ser libertado.

São as prisões, campos de concentração e ameaças que impedem as pessoas de falar. Não há dissidência e nem oposição. Alguns fogem, mas não são tantos. Milhares cruzam a fronteira com a China. Alguns continuam lá, quase sempre mulheres vendidas para chineses pobres que não conseguem esposas. Outros são mandados de volta. Porém, a cada ano, mais de mil chegam à Coreia do Sul. Nos últimos 20 anos, apenas 30 mil conseguiram ir para o lado sul da península.
 

Sobrinho da ex-mulher do líder norte coreano Kim Jong-il, Lee Han-young foi morto a tiros em frente ao seu apartamento em Seul, na Coreia do Sul, em 1997. Desertor, ele era um crítico ferrenho ao tio e ao seu país. As investigações apontaram que Lee foi morto por agentes norte-coreanos, que fugiram antes que pudessem ser capturados.


Detida e forçada a trabalhar, adolescente que agora tem 22 anos fugiu de Heysan em 2013:
“Fui interrogada pela polícia. Eles queriam saber sobre o trabalho de minha mãe. Eles estapearam meu rosto e me empurraram tão forte contra a parede que minha cabeça sangrou. Enquanto estava lá, me faziam sentar com pernas cruzadas, braços e cabeça abaixados. Se eu me movesse, me batiam. Tinha que ficar assim por horas. Eu acordava às 6h todos os dias e dormia às 23h, trabalhando. Não queria mais viver.”
 

Um fazendeiro de Hoeryong, de 46 anos, escapou em 2014. Ele exercia várias atividades ilegais:
“Meu trabalho era vender metanfetamina. Mais de 70% da cidade usava, até minha mãe de 76 anos, pois tinha pressão baixa e melhorava. Muitos policiais vinham fumar na minha casa, o chefe da polícia secreta quase vivia lá. Fazia conexões com a Coreia do Sul e a China, e vendi antiguidades e aves do meu país. Criei uma fantasia sobre Kim. Ele era jovem e pensei que abriria as portas, mas a vida ficou mais difícil.”