Poucos escapam do país mais isolado do mundo. Mas quem foge revela uma rotina sob vigilância, na qual as ilegalidades tentam contornar o que o Estado já não oferece
Quando
Kim Jong-un se tornou o líder do país, há quase seis anos, muitos
norte-coreanos pensaram que suas vidas melhorariam. Ele ofereceu a esperança de
uma mudança geracional na dinastia comunista mais longeva do mundo. Além disso,
era um millennial com experiência no mundo exterior.
Porém, o
Grande Sucessor, como é chamado, acabou sendo tão brutal quanto o pai e o avô.
Apesar da maior liberdade econômica, Kim tentou fechar a nação mais do que
nunca, reforçando a segurança na fronteira com a China e intensificando os
castigos para os que se atrevem a tentar atravessá-la. Na Coreia do Norte, a
liberdade de expressão e de pensamento ainda é miragem.
O
“Washington Post” entrevistou mais de 25 norte-coreanos que escaparam. Eles
contaram sobre a vida no país e como ela mudou, ou não, desde que Kim assumiu o
poder em 2011. Muitos moravam perto da fronteira com a China — onde a vida é
mais difícil e o conhecimento do exterior mais difundido — e são parte de um
pequeno grupo pronto para assumir os riscos de uma fuga.
- Dinheiro fala mais alto
- Repressão e desilusão
- Relatos de quem fugiu
- O vendedor de drogas
- Construtor na Rússia
- O telefonista clandestino
- A universitária
- A menina rica
- O magnata em silêncio
- O vendedor de feijões
- O médico
Ao
relatar suas experiências pessoais, que incluem a tortura e a cultura de
vigilância, os refugiados pintam um quadro de um Estado outrora comunista em
que tudo está quebrado, e a economia estatal paralisada. Hoje, os
norte-coreanos fazem seu próprio caminho, ganhando dinheiro de forma
empreendedora e frequentemente ilegal. Há poucos problemas hoje na Coreia do
Norte que o dinheiro não pode resolver.
Assim
como a vida no país mudou, também mudaram as razões para fugir. Cada vez mais,
as pessoas deixam o país não pela miséria, como faziam após a fome nos anos
1990. Agora, escapam por desilusão. A
atividade do mercado está explodindo, e com isso vem o fluxo de informação,
seja com comerciantes que atravessam a China ou com novelas salvas em
pendrives, o que leva muitos a sonharem como não sonhavam antes. Alguns deixam
o país porque querem que os filhos tenham uma educação melhor. Há aqueles que
escapam porque seus sonhos de sucesso e riqueza são frustrados pelo sistema.
Outros fogem porque querem falar.
Na
teoria, a Coreia do Norte é um bastião do socialismo, onde o Estado dá casa,
saúde, educação e emprego. Na prática, a economia estatal raramente opera. As
pessoas trabalham em fábricas ou campos, mas há pouco a fazer, e elas não
recebem quase nada. Uma vibrante economia privada surgiu por necessidade, na
qual os norte-coreanos encontram meios de faturar por conta própria, seja
vendendo drogas ou tofu caseiro, através de suborno ou contrabando de pequenos
DVD players.
A
população aprendeu a empreender com a fome. Enquanto os homens iam trabalhar
nas fábricas, as mulheres faziam macarrão, ficavam com um pouco e vendiam o
restante para comprar mais milho no outro dia. Crianças sem casa roubavam
tampas de bueiro para vender como sucata. Os mercados começaram a aparecer e se
fortalecer. Das grandes cidades aos pequenos vilarejos, há algum mercado onde
as pessoas vendem suas mercadorias e ganham dinheiro. Alguns são estatais,
outros independentes.
O
dinheiro agora é necessário para quase tudo — até para o que o regime se
vangloria de dar, como casa e escola. O suborno e a corrupção são endêmicos,
enfraquecendo o governo, afrouxando os controles e criando incentivos que nem
sempre estão de acordo com as prioridades de Kim. A capacidade de ganhar
dinheiro levou a uma visível desigualdade num país que se promovia como
socialista e igualitário. Aqueles que trabalham só em empregos oficiais ganham
pouco por mês e provisões para complementar os salários.
É
impossível exagerar o culto ao redor da família Kim. O fundador da dinastia,
Kim Il-sung, seu filho, Kim Jong-il, e seu neto, Kim Jong-un, formam uma
santíssima trindade no país. Não há críticas a eles ou questionamentos ao
sistema — ao menos sem arriscar a sua liberdade e a da família inteira. Até a
vida pode correr jogo. A Coreia
do Norte opera num estado de vasta vigilância, com um Departamento de Segurança
ameaçador. Seus agentes estão por todos os lados e trabalham impunes. O regime
também tem um sistema de observação entre vizinhos. Os distritos de cada cidade
são divididos em grupos de até 40 famílias, cada um com um líder que coordena a
vigilância local e incentiva as pessoas a delatar.
Para
aqueles que se afastam do regime de uma forma que dinheiro não consegue
resolver, a punição é dura. Os fugitivos das prisões políticas relatam
tratamento brutal, como tortura medieval com grilhões e fogo, forçados até a
abortos sob métodos cruéis. Ativistas dizem que isso teria diminuído levemente
com Kim. Porém, ataques e tortura são comuns, assim como execuções públicas. A
fome é parte da punição, até para crianças. Um adolescente de 16 anos perdeu
cinco quilos na prisão, pesando 39 quilos ao ser libertado.
São as
prisões, campos de concentração e ameaças que impedem as pessoas de falar. Não
há dissidência e nem oposição. Alguns fogem, mas não são tantos. Milhares
cruzam a fronteira com a China. Alguns continuam lá, quase sempre mulheres
vendidas para chineses pobres que não conseguem esposas. Outros são mandados de
volta. Porém, a cada ano, mais de mil chegam à Coreia do Sul. Nos últimos 20
anos, apenas 30 mil conseguiram ir para o lado sul da península.
Sobrinho
da ex-mulher do líder norte coreano Kim Jong-il, Lee Han-young foi morto a
tiros em frente ao seu apartamento em Seul, na Coreia do Sul, em 1997.
Desertor, ele era um crítico ferrenho ao tio e ao seu país. As investigações
apontaram que Lee foi morto por agentes norte-coreanos, que fugiram antes que
pudessem ser capturados.
Detida e
forçada a trabalhar, adolescente que agora tem 22 anos fugiu de Heysan em 2013:
“Fui
interrogada pela polícia. Eles queriam saber sobre o trabalho de minha mãe.
Eles estapearam meu rosto e me empurraram tão forte contra a parede que minha
cabeça sangrou. Enquanto estava lá, me faziam sentar com pernas cruzadas,
braços e cabeça abaixados. Se eu me movesse, me batiam. Tinha que ficar assim
por horas. Eu acordava às 6h todos os dias e dormia às 23h, trabalhando. Não
queria mais viver.”
Um
fazendeiro de Hoeryong, de 46 anos, escapou em 2014. Ele exercia várias
atividades ilegais:
“Meu trabalho
era vender metanfetamina. Mais de 70% da cidade usava, até minha mãe de 76
anos, pois tinha pressão baixa e melhorava. Muitos policiais vinham fumar na
minha casa, o chefe da polícia secreta quase vivia lá. Fazia conexões com a
Coreia do Sul e a China, e vendi antiguidades e aves do meu país. Criei uma
fantasia sobre Kim. Ele era jovem e pensei que abriria as portas, mas a vida
ficou mais difícil.”
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