Pedro Fernando Nery
Não será possível instituir uma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise, sem combatermos os nossos 'e daís'
“Perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”. Diante disso, a
liminar foi concedida no meio da pandemia, realocando milhões de reais
do orçamento da Seguridade Social.
Mais dinheiro para a Saúde comprar
respiradores? Não, tampouco para a Assistência pagar o auxílio
emergencial. Ao contrário, a decisão diminui o dinheiro disponível para
as duas áreas. O juiz federal decidiu que os juízes federais não
precisam pagar as novas alíquotas progressivas da reforma da
Previdência.
Confisco foi a razão para considerar inconstitucional trecho da Emenda
Constitucional discutida pelos constituintes ao longo do ano passado. O
tema espera julgamento no STF. [não será surpresa que o STF "sobrecarregado" de processos, demore a julgar.
Enquanto não julga os juízes federais não pagam as novas alíquotas da reforma da Previdência.] A liminar do juiz dada neste mês no
processo 1009622-08.2020.4.01.3400 é em favor da sua própria categoria –
embora seja verdade que o mesmo tratamento foi dado a outras categorias
em outras ações.
O argumento é simples: como a alíquota progressiva exige contribuições
maiores de quem ganha mais, aqueles no teto remuneratório terão uma
alíquota efetiva de quase 17% para a Previdência. Somada ao imposto de
renda, a tributação total sobre o salário superaria 40%.
Há dois problemas no argumento. Um primeiro é comparar a contribuição
com o salário atual, e não com a renda a ser recebida: a aposentadoria
continuará sendo pelo último salário para quem ingressou antes de 2003.
Independentemente do salário médio ao longo da vida e do valor das
contribuições, a aposentadoria é 100% do maior salário. O subsídio pode
ser de milhões de reais por pessoa. Não à toa, o regime dos servidores
continuará ostentado déficits financeiros bilionários anualmente e
déficit atuarial da ordem de trilhão (a Constituição demanda o
equilíbrio, mas o texto é preterido por um princípio na decisão
judicial).
O retorno ao investimento é altíssimo: se produto semelhante estivesse
disponível no mercado, os demais cidadãos fariam os aportes felizes, sem
jamais pensar que estão sendo confiscados. A confusão existe porque a
contribuição previdenciária na prática é híbrida, ora parece aporte ora
tributo. O MPF defendeu em 2018 a fixação de uma tese sensata: aumentar a
contribuição previdenciária do servidor seria constitucional, desde que
se apresentem estudos financeiros e atuariais mostrando a sua
necessidade. Não sendo o caso, haveria o tal confisco.
Um segundo problema no argumento do confisco é ignorar que os
trabalhadores do setor privado estão sujeitos a tributação muito maior,
inclusive para pagar os benefícios do setor público, sem que se fale em
confisco. Como mostrou Bernard Appy neste jornal na excelente coluna de
fevereiro “Quem paga imposto no Brasil?”, o produto do trabalho de um
celetista chega a ser tributado em mais de 60%. A conta considera não
apenas a contribuição previdenciária e o imposto de renda, como os
tributos indiretos federais e estaduais (ICMS, PIS-Cofins, IPI) sobre
sua produção, que diminuem o que ele levará para casa.
Parte desses tributos fecham o déficit de mais de R$ 40 bilhões por ano
dos servidores. Não é este o verdadeiro confisco? Como a previdência do
funcionalismo integra a Seguridade Social, o buraco é custeado por
contribuições como a Cofins – competindo com Saúde e Assistência. E daí?
As ações sobre o tema no Supremo, hoje com relatoria do ministro
Barroso, eram no passado julgadas por Joaquim Barbosa, que expunha esse
argumento. Entendia que na ausência do aumento da contribuição do
servidor, a conta iria para os demais. Incluindo os filiados ao INSS,
que teriam a obrigação de custear os benefícios do regime sem o direito
de usufruí-los: “partilhar o déficit com as pessoas naturais e jurídicas
privadas é injusto e abusivo.” Mesmo com a elevação da reforma da
Previdência, menos de 20% das despesas são custeadas diretamente pelos
servidores.
Os argumentos de servidores federais sobre confisco na reforma da
Previdência são embalados por duas indignações. Uma é a subtributação da
renda de profissionais liberais de alta renda pejotizados. Serviços
pagam menos impostos que produtos, e a PJ ainda pode-se distribuir
lucros e dividendos para a pessoa física sem pagar IR (E daí?). O juiz
olha para o advogado e se sente injustiçado. A outra é a exclusão de Estados e Municípios da reforma (E daí?). Juízes
estaduais, que já ganham mais pela farra das verbas indenizatórias,
ficaram a princípio dispensados da alíquota progressiva da reforma. A
associação dos federais se mobilizou para não ter e pagá-la também.
Não será possível perenizar o auxílio emergencial e instituir alguma
renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise sem combatermos
nossos “e daís”. Consolidar a reforma da Previdência nos tribunais,
reformar a tributação sobre a renda e eliminar verbas indenizatórias
devem fazer parte da busca por recursos no pós-pandemia.