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domingo, 29 de março de 2020

Saúde, economia e democracia - Nas entrelinhas

“Se prevalecer a teoria da “gripezinha”e do “resfriadinho”, contra a política de distanciamento social, a evolução da crise seguirá um roteiro trágico. É a teoria do caos

O Brasil é uma democracia de massas, com um Estado ampliado. O presidente da República é eleito pelo voto direto, secreto e universal, assim como governadores e prefeitos, todos com atribuições bem definidas em sua esfera de poder. Ninguém pode tudo. O Estado brasileiro é uma federação, na qual a União, estados e municípios têm autonomia no exercício de seus respectivos papéis. Um complexo de leis aprovadas pelo Congresso e interpretadas pelo Judiciário limita o Executivo, em todos os níveis. Órgãos de controle, fiscalização e coerção, subordinados aos três poderes, zelam para que as regras do jogo sejam respeitadas, tanto pelos cidadãos quanto pelas autoridades.

O presidente Jair Bolsonaro tem dificuldades para operar esse complexo institucional e se relacionar com seus representantes, o que exige mais liderança do que autoridade formal, que é limitada. Essa é a causa de conflitos que não deveriam existir na resolução de graves problemas nacionais. O presidente da República prefere liderar e se legitimar pelas redes sociais, que emulam com as instituições da democracia representativa e criam um ambiente político de grande fluidez e volatilidade. Bolsonaro tem uma concepção autoritária de poder, adquirida na Academia Militar de Agulhas Negras, na época da ditadura militar. É uma vertente do positivismo disseminado pela Escola Militar da Praia Vermelha, que inspirou a República, o “florianismo”, o movimento tenentista, a Revolução de 1930, a Intentona de 1935, o Estado Novo e o golpe militar de 1964, além de uma série de outras rebeliões e quarteladas. Parte do pressuposto de que cabe aos militares tutelar a sociedade brasileira e exercer o papel de Poder Moderador, extinto com o fim da monarquia.

Essa concepção vem de longe, mais precisamente das intervenções militares ocorridas no período regencial, que tiveram um duplo papel. De um lado, evitar a fragmentação territorial do Brasil; de outro, preservar a escravidão, alicerce econômico da monarquia, a pretexto de que a abolição desorganizaria a economia. Sua gênese é o período de grande turbulência entre a abdicação de D. Pedro I e a posse de D. Pedro II no trono do Brasil, ou seja, entre 1831 e 1840. Na Regência Trina (1831 a 1834) e na Regência Una (1834 a 1840), se digladiavam Moderados (maioria, representavam a elite e defendiam centralização), Restauradores (queriam a reunificação do Império, com a volta de D. Pedro I) e Exaltados (lutavam pela descentralização do poder).

Sístoles e diástoles
A oposição entre restauradores e exaltados de um lado e os regentes do outro torna o cenário político bastante delicado. A partir de 1833, a situação se agravou, com revoltas nas províncias: na Cabanagem (1835-1840), no Pará, os revoltosos declararam independência; na Sabinada (1837-1838), na Bahia, defendiam um regime republicano e federalista; na Balaiada (1838-1840), no Maranhão, defendiam a abolição; na Revolta do Malês (1835), na Bahia, a independência e um regime islâmico.

No Sul, a Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos (1835-1845) foi mais longa e duradoura, sendo deflagrada por conta de aumentos de impostos. Em 20 de setembro de 1835, foi proclamada a República Rio-Grandense, tendo como líder Bento Gonçalves, que governou a província em 1837. Com o comando de Giuseppe Garibaldi, proclamaram a República Juliana em Santa Catarina. A revolta ultrapassou o período regencial e só foi finalizada no segundo reinado, com a entrada em cena do Duque de Caxias no comando das tropas imperiais. Um acordo com Bento Gonçalves, líder principal dos revoltosos, pacificou o Sul do país. Garibaldi havia sido derrotado e voltara para a Sardenha, de onde partiu para unificar a Itália.

Essa contradição entre centralização e descentralização, que o general Golbery do Couto e Silva chamou de “sístole e diástole” (contração e relaxamento dos ventrículos do coração, respectivamente), foi decisiva para os ciclos autoritários no Brasil, tendo por ápice o Estado Novo de Getúlio Vargas, após a Revolução de 1930, e a vigência do Ato Institucional nº 5, no regime militar. O Estado Novo durou de 1937 a 1945 e sucedeu, portanto, as fases do Governo Provisório (1930 a 1934) e do Governo Constitucional (1934 a 1937). A característica principal do Estado Novo era o fato de a Constituição de 1937, escrita por Francisco Campos, se inspirar no modelo nazifascista europeu, então em voga à época. O regime militar repetiu o ciclo, acabando com as eleições diretas para governadores e prefeitos, entre outras medidas, mas essa é uma história mais conhecida.

O presidente Jair Bolsonaro está em choque como os demais poderes, os governadores e os prefeitos e as autoridades da saúde pública, em todos os níveis, pois opera na lógica da centralização do poder. Esse choque nos coloca diante de três ameaças: o crescimento exponencial da epidemia de coronavírus, a recessão profunda da economia, mesmo com as medidas adotadas até agora, e o recrudescimento do viés golpista de setores da sociedade que sonham com uma intervenção militar. A escalada de uma pandemia é um cenário perigoso, que precisa será contido. Evolui por etapas: contágio comunitário, internações hospitalares, aumento dos casos de morte assistida, caos hospitalar, mortes desassistidas, colapso econômico, furtos, roubos, saques e execuções. Democracia nenhuma resiste a uma escalada dessa ordem, sem sofrer um golpe de estado ou mergulhar num ambiente de ruptura da coesão social e terror. Se prevalecer a teoria da “gripezinha”e do “resfriadinho”, contra a política de distanciamento social, a evolução da crise seguirá esse roteiro trágico. É a teoria do caos.

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Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense


terça-feira, 24 de outubro de 2017

Battisti e seus fantasmas

Em São Paulo, debate sobre Mãos Limpas e Lava Jato; em Brasília, o que fazer com Cesare Battisti

Vamos convir que o governo e a sociedade italianos têm razão: Cesare Battisti não é nenhum herói como Garibaldi e não tem a aura de um Che Guevara, apesar de posar com a gravura do revolucionário cubano “casualmente” ao fundo. Nos governos do PT, aqui no Brasil, ele foi tratado como um réu político. Em qualquer governo, lá na Itália, ele é considerado um criminoso comum, um assassino frio de ao menos quatro cidadãos.

Discretamente, os italianos ponderam que vivem uma democracia e, mesmo condenado à prisão perpétua, Battisti dificilmente morreria no cárcere caso extraditado. Seus companheiros já foram soltos, integrados à vida normal e há quem esteja muito bem de vida. Na Itália, a prisão perpétua só vale na teoria, assim como as penas no Brasil são reduzidas para 1/6. Sérgio Cabral já está condenado a 72 anos. Quanto vai cumprir?  A história de Battisti no Brasil é tortuosa. Ele chegou fugido, clandestinamente. Foi preso e iniciou-se um longo debate. Os pareceres técnicos e jurídicos do Itamaraty e do Ministério da Justiça eram favoráveis à extradição, mas o então ministro Tarso Genro, que é da área jurídica, preferiu o viés ideológico e liderou o processo de mantê-lo no Brasil.

O assunto foi parar no Supremo, que julgou a favor da extradição de Battisti, mas delegou para o presidente Lula a decisão de despachá-lo ou não para a Itália, sob argumento de que era questão de Estado. No último dia do mandato, Lula manteve condenado italiano em solo brasileiro.  As opiniões dividiram-se e isso só se intensificou quando a Itália prendeu, analisou e devolveu para o Brasil o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, que, condenado no mensalão, fugiu com um documento em nome do irmão morto havia anos. À época, pareceu uma gentileza diplomática, um tapa com luvas de pelica da Itália no Brasil.

Na verdade, foi uma decisão muito pragmática dos dois lados: imagine se a Itália mantivesse lá, livre, leve e solto, um condenado por crime de colarinho-branco com sobrenome italiano? Os demais iriam fazer fila para escapar por terra, mar e ar, a começar dos dois ex-ministros petistas Antonio Palocci e Guido Mantega. Nenhum deles, claro, com dificuldades financeiras para sobreviver na Europa.  Como a decisão de Lula não prescreve, o governo, a diplomacia e a justiça italianas esperaram calmamente. Com Dilma Rousseff, as chances eram zero, já que ela foi presa por resistir à ditadura e prefere a “versão romântica” de Battisti. Mas, com a posse do professor de Direito Constitucional Michel Temer, as negociações recomeçaram. Já se manifestaram a favor da extradição os ministros da Justiça, do Itamaraty e do entorno de Temer no Planalto. Mas a questão depende também do Supremo.

Hoje, enquanto os magistrados italianos Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo participam do Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato, em São Paulo, os cinco integrantes da Primeira Turma do STF julgam, em Brasília, um habeas corpus contra a extradição de Battisti. Davigo e Colombo são dois dos principais personagens da Operação Mãos Limpas na Itália e discutirão com o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol os pontos em comum nas duas fantásticas operações contra a corrupção e o futuro da Lava Jato.

E, na Primeira Turma, como o ministro Luís Roberto Barroso foi advogado de Battisti, é provável que se declare impedido e haja risco de empate, dois a dois, e Battisti vá parar no plenário carregando seus quatro fantasmas. E é assim, com debates e divergências e aprendendo com experiências anteriores, que nós, brasileiros, vamos vivendo e aprendendo. Dê o que dê no caso Battisti, o debate sobre ideologia e leis é fascinante. Como será também no Forum Estadão.
 
Fonte: Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo