O Estado de S.Paulo
Medidas imediatas para tapar buracos mais urgentes não podem comprometer o futuro
No pandemônio em que se encontra o Brasil, com o governo tateando e
hesitando, quando não atirando contra si mesmo, começa a ficar cada vez
mais difícil distinguir o que é necessário numa crise extrema do que é
definitivo. O que vale num momento não tende a valer em outro. Acontece
que os descontentes com as reformas liberais podem se aproveitar da
atual circunstância para bombardeá-las, em nome de uma pandemia a ser
combatida.
A agenda liberal, o saneamento fiscal do Estado, a reconfiguração do seu
papel, a redução dos gastos públicos e dos privilégios dos estamentos
estatais, a reforma tributária e as privatizações permanecem no domínio
do definitivo. Se não forem considerados como tal, o País pode ficar
inviável no futuro. Acontece, porém, que uma pandemia exige armas específicas para
combatê-la, que não se encontram nos arsenais das iniciativas liberais.
Nada novo, todavia, na medida em que Estados em guerra recorrem também a
instrumentos excepcionais. Os gastos estatais sobem exponencialmente,
não mais se enquadram em parâmetros fiscais. A luta contra uma epidemia
exige hospitais bem equipados, utensílios de proteção, remédios,
pesquisas, testagens em massa e ajuda pública aos mais carentes. A
prioridade é a luta contra um inimigo real, mas invisível: o
coronavírus.
No imediato, isso significa que a agenda liberal está suspensa, sem que
se saiba ao certo quando voltará. O decreto de calamidade pública e o
dito orçamento de guerra tomaram o lugar da Lei do Teto dos Gastos
Públicos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. As novas despesas públicas
estarão legal e socialmente justificadas, mas pagarão seu preço no
futuro. A matemática não se deixa enganar! No futuro, os orçamentos
serão unidos, apesar de serem contabilizados diferentemente. O bolo é um
só: o conjuntos das contribuições e dos impostos pagos pelos cidadãos,
seja como pessoas físicas ou jurídicas.
No afã de buscar recursos, o governo optou por reexaminar recursos
disponíveis, porém de outras áreas, para tapar os buracos mais urgentes.
Muitas vezes, as lâminas que deveriam ser afiadas fazem cortes bruscos,
cujos efeitos podem estender-se para além do tempo presente. De um
lado, o governo tem razão em agir assim, em nome da saúde pública; de
outro, medidas imediatas não podem vir a comprometer o futuro. Tomemos
dois exemplos: o Sistema S e o FGTS.
O Sistema S tem sido fundamental para o aprendizado de trabalhadores,
sua qualificação profissional, a assistência técnica e a proteção,
inclusive, da saúde dos que produzem. Por exemplo, produtores rurais,
via Senar, dependem dessas medidas para que as empresas agrícolas,
sobretudo pequenas e médias, que não possuem recursos próprios
suficientes, possam se manter e expandir. Nossos alimentos dependem de
todo esse trabalho e esforço coletivo, que muitas vezes aparece como
invisível para quem não conhece o setor.
Ainda agora foi noticiado que o Sesi estaria trabalhando na recuperação
de ventiladores, hoje tão necessários, para os hospitais. Houve, é bem
verdade, excessos em alguns setores, cuja espetacularização terminou, em
certos momentos, por velar o principal. Não se pode confundir o bebê
com a placenta!
O FGTS é um fundo dos trabalhadores, voltado para o seu atendimento, em
particular nos casos de dispensa profissional. São indenizados e têm à
mão um colchão de proteção. Imaginem, como alguns estão apregoando, que
todos esses recursos fossem agora distribuídos. Haveria, bem entendido,
uma aceitação generalizada, porém o presente não pode obscurecer o
futuro: quem pagaria as indenizações futuras?
O fundo é remunerado para que cresça e possa atender adequadamente os
trabalhadores hoje e amanhã. E uma das formas de fazê-lo consiste em
investimentos na construção civil que dão precisamente esse retorno. O
déficit habitacional brasileiro é gigantesco, atinge principalmente os
mais pobres e carentes e tende ao aumento, pois o suprimento presente é
insuficiente. Ademais, o setor é um dos grandes empregadores, com
repercussões vitais em emprego, salário e renda.
Cada vez mais habitações populares são necessárias. O programa Minha
Casa Minha Vida, nesse sentido, é um instrumento de justiça social.
Vociferar que tal programa favorece os empresários é fruto de uma visão
míope que não cessa de mal compreender a relação capital-trabalho, vista
não como parceria, mas como enfrentamento. Não há, evidentemente, por
que financiar habitações de luxo com esse programa, o que pode ser feito
por bancos particulares. A função da Caixa Econômica Federal é
fundamental e, saliente-se, mesmo neste momento de crise vem cumprindo
suas obrigações, sem descontinuar esse programa.
Logo, os saques atuais do FGTS, embora possam ser vistos como
necessários num momento de extrema urgência, não se podem tornar uma
praxe, pois se isso for feito, haverá um comprometimento das habitações
populares, do emprego e da proteção dos trabalhadores.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia - O Estado de São Paulo