Desde o fim da Guerra Fria o Irã expandiu-se no Oriente Médio, e os EUA encolheram
A ordem do presidente Donald Trump para matar o general iraniano Qassim
Suleimani expressa o fim da hegemonia americana no Oriente Médio.
Estabelecida com grande abrangência desde o fim da Guerra Fria e a
primeira Guerra do Golfo, em 1991, essa hegemonia foi perdida em grande
parte por ações e erros dos próprios americanos, involuntariamente os
principais responsáveis pela inédita expansão política e militar do Irã
naquela região.
Como resultado de grandes acontecimentos, como a derrota do Taleban no
Afeganistão, a desagregação do Iraque pós-invasão americana de 2003, a
“primavera árabe” (que sacudiu monarquias sunitas), o acordo de
potências (Rússia, China e as europeias) sobre o programa nuclear
iraniano, o fim do Estado Islâmico e a restauração do poder de Assad na
Síria, até o momento da liquidação do general, o Irã exibia uma posição
política e militar no Oriente Médio mais forte do que possuía havia
cinco anos. Levou uns 20 anos para chegar lá. O que muda agora?
A execução de Suleimani nada parece alterar na postura dos EUA diante da
complexa situação do Oriente Médio: objetivos erráticos, concentração
(uma quase obsessão) no conflito na Palestina, pouca vontade de se
envolver em guerras, abandono de aliados (de militares egípcios a
curdos). E não saber lidar com uma fratura fundamental na região: xiitas
são apenas 10% entre os muçulmanos no mundo, mas quase a metade dos
muçulmanos no Oriente Médio, o que ajuda a entender o peso dessa milenar
disputa cultural, política e sectária em todos os vizinhos do Irã.
Boa parte da capacidade de expansão que o Irã registrou desde a
Revolução de 1979 está no suporte sectário que recebeu de populações
xiitas quase sempre tratadas como minorias perigosas em países árabes
sunitas (alguns importantes para os EUA, como Arábia Saudita) – e não
tanto o aspecto ideológico, embora o “feito” da revolução conduzida
pelos aiatolás tenha sido o de virar de cabeça para baixo a relação
entre religião e Estado no mundo islâmico.
A coligação levada adiante pelo Irã, num arco que vai do Afeganistão ao
Mediterrâneo, passando pelo “coração” da região (norte do Iraque e
Síria), mostrou-se razoavelmente coesa, enquanto o bloco “anti-iraniano”
de aliados dos americanos tem motivos diversos, é mais fragmentado
geograficamente e, pelo menos nas aparências, é adversário da principal
potência militar amiga dos EUA na região, Israel, inimiga do bloco xiita
também. Embora bem menos poderoso, o Irã pode ser comparado à Rússia e à China
no papel de “revisionistas” da ordem de segurança e poder vigentes desde
o fim da Guerra Fria. Como russos e chineses, iranianos se consideram
herdeiros de civilização milenar que teria “primazia” sobre seu entorno,
mas, ao contrário do que aconteceu na Rússia e na China, no Irã a
ideologia como eixo de ação do regime não cedeu e tem como objetivo
expulsar do Oriente Médio o inimigo “Grande Satã”, tal como o líder
revolucionário Ruhollah Khomeini batizou os EUA – o grande corrompedor,
que o digam Adão e Eva.
Ocorre que a visão “estratégica” de Trump vem direto de filmes nos quais
um “Dr. Evil” precisa ser eliminado. Pena que roteiros de Hollywood se
preocupem menos com coisas como o fim de uma ordem hegemônica, isto é,
quando outros ocupam o lugar de quem antes podia fazer ou desfazer. Do
ponto de vista político e militar, Rússia e Irã derrotaram os EUA e na
guerra civil da Síria. O Irã é o virtual “ocupante” do Iraque. A
Turquia, integrante da Otan, faz o que quer. Até a monarquia saudita olha hoje com mais cuidado para Moscou e mesmo
Teerã, enquanto a China não esconde a intenção de, se puder, incluir o
Irã no seu estratégico projeto de uma nova Rota da Seda. Mas Trump acha
que matou o facínora.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo