Um dos aspectos mais terríveis dessas migrações clandestinas para a Europa é a mais absoluta falta de opção das vítimas
De repente, a terra se faz
lembrar. Acentua que não é necessariamente terra firme. E treme.
Aterroriza, destrói, mata, mostra que o bicho-homem não manda nela. O
terremoto no Nepal dói no mundo inteiro, em todos os habitantes do
planeta Terra, por cima das distâncias e diferenças, solidários com as
vítimas indefesas e impotentes. Vem somar uma catástrofe natural à
catástrofe humana e histórica, perfeitamente evitável, dos imigrantes
clandestinos, também impotentes e indefesos, que fogem de suas casas,
deixam suas terras e morrem maciçamente no Mediterrâneo, milenar berço
de civilizações transformado em túmulo de famílias desesperadas. São
dias de chorar. Pelas vítimas do terremoto no Nepal. Pelos migrantes que
se afogam no Mediterrâneo. E de tentar ajudar.
Outras línguas
distinguem a terra que se move (como earth), da terra que se deixa
(land), escorraçado pela guerra e pela miséria. Ou da terra (ground) que
guarda o petróleo que tanto enriquece alguns e de onde pode brotar a
água que nos faz viver mas ameaça sumir. Em português, juntamos tudo,
entendendo que é uma coisa só. Mesmo distantes, errantes navegantes do
planeta, jamais deveríamos esquecer — como na canção de Caetano.
Todo
mundo tem o direito de poder ficar em sua própria terra natal, se
quiser. É o que pede o coração. Um dos aspectos mais terríveis dessas
migrações clandestinas africanas ou do Oriente Médio, incentivadas pelo
tráfico ilegal para a Europa, é a mais absoluta falta de opção das
vítimas. É revoltante saber que milhares de pessoas estão morrendo
afogadas todo dia, por terem pago por essa viagem as economias de uma
vida, depois de perderem casa, bens, terras, animais, plantações, para
se apinhar com a família numas sucatas flutuantes, muitas vezes
trancados num porão. Como num funil, chegam à Líbia vindo de uns 20
países da região e tentam fugir da guerra, da fome, da violência, da
miséria, do abandono, da falta de oportunidades, de perseguições
religiosas ou étnicas. Pagam aos traficantes de gente e depois são
abandonados no meio do mar ou se transformam em vítimas de naufrágios,
propositais ou não.
É claro que precisam ser resgatados — e a
atribuição não pode cair apenas nas costas da Itália, mais perto por sua
geografia. Mas é necessário um esforço conjunto internacional que vá
além do mero acolhimento dos refugiados e sua internação em campos
cercados por alambrados, aumentando a cada dia sua tragédia. O mundo
precisa atacar as causas que fazem essa gente toda preferir enfrentar os
piores perigos a ficar em sua própria terra.
No fim da Segunda Guerra,
iniciativas como o Plano Marshall permitiram que a Alemanha se reconstruisse, o Japão e a Itália pudessem reviver suas economias. Num
mundo cheio de paraísos fiscais onde os riquíssimos podem guardar seu
dinheiro (venha ele do petróleo, de armas, de drogas, da corrupção) e
driblar os impostos que todos nós temos de pagar, deveria ser possível
canalizar recursos para melhorar a vida de quem se vê forçado a não
poder mais ficar em sua terra.
Há outros problemas com a terra,
além dos que são objeto do MST, entre reivindicações de reforma agrária e
destruição de pesquisas agrícolas de empresas e laboratórios de
universidades. [a matéria é excelente, sua autora sabe escrever e bem; pena que estrague tudo ao colocar vermos como os facínoras do MST no artigo. Aqueles bandidos merecem apenas o tratamento que a PM do Pará dispensou aos que bloquearam uma rodovia.
A PM abateu alguns facínoras do 'movimento social terrorista' e desde então não ocorreu mais nenhum bloqueio de rodovias naquele Estado.]
Que tal deixar o petróleo lá no fundo da terra e se
dedicar a fontes alternativas de energia? O influente jornal britânico
“The Guardian” vem liderando uma campanha para que grandes fundos
filantrópicos, como a Fundação Bill Gates e o Wellcome Trust, deixem de
investir em combustíveis fósseis e só apoiem pesquisas científicas em
outras áreas. O objetivo é diminuir com urgência a ameaça da mudança
climática causada pelo petróleo, gás e carvão. A meta é que, em cinco
anos, se deixe de financiar as companhias que trabalham com eles.
Apela-se, de imediato, para que cessem novos aportes em dinheiro para
essas companhias, ou incentivos ao setor. Os argumentos são morais,
ambientais e econômicos.
A campanha, “Keep it in the ground”,
pressiona para que 80% das reservas conhecidas de carvão continuem
inexploradas, bem como metade das de gás e um terço das de petróleo. Já
recebeu a adesão de vários fundos importantes e o apoio de centenas de
milhares de pessoas, incluindo celebridades e ganhadores do Prêmio
Nobel. Por outro lado, a terra precisa também de proteção para
continuar guardando e fornecendo água, o bem mais precioso para a vida
no planeta. Recente reportagem de Míriam Leitão neste jornal revelou
como o Instituto Terra , de Lélia e Sebastião Salgado, vem desenvolvendo
um projeto modelar de proteção a nascentes e olhos d’água no Vale do
Rio Doce, tendo como meta refazer todas as fontes dessa bacia. É uma
iniciativa admirável sob todos os aspectos, que começa a dar frutos, a
lembrar que muitas vezes podemos fazer algo pela terra e por nós. Não
nos conformemos em ser apenas vítimas impotentes um do outro.
Por: Ana Maria Machado é escritora - O Globo