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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Cordiais cortadores de cabeça - Fernando Gabeira

Blog do Gabeira

Nossa geração foi educada na crença de que os brasileiros são cordiais. Um profeta popular como Gentileza e sua frase “gentileza gera gentileza” pareciam confirmar essa tese. Se acreditasse nisso, estaria, como algumas senhoras da minha idade, postando fotos do sol nascente com a frase “mais um dia maravilhoso em nossa vida”. Ultimamente, temos decapitado muito. Constatei isso em Pedrinhas, no Maranhão, em Manaus e, agora, dizem os jornais que dos 58 mortos em Altamira 16 foram decapitados.

Não conheço lugar do mundo em que isso aconteça com tanta intensidade. O Estado Islâmico, que usou a decapitação como espetáculo, parece que encerrou a temporada. Lembro-me de alguns casos no Haiti, mas isso num período de intensa luta política.  A novidade no caso é que o presidente do país não condena essas execuções e aconselha a pensar nas vítimas dos decapitados, e não nas suas cabeças cortadas. Isso nos dá uma sensação de barbárie. Mesmo os defensores da pena de morte a aceitam depois de um julgamento legal. No Brasil de hoje, as grandes organizações criminosas acabam ganhando o direito de matar, após um julgamento sumário.

Na mesma semana, Bolsonaro resolveu, sem nenhuma base, desenterrar um morto para desonrá-lo. Todos os que acreditam no respeito humano protestaram.  Ao remover o passado para soprar as cinzas e fazer algum fogo, Bolsonaro questiona um dos fundamentos do nosso processo de democrático. Ele se fez num quadro conciliatório de anistia geral. Os atores radicais da época perceberam que estavam envoltos nas turbulências da Guerra Fria e expressavam internamente aqueles conflitos da época.  De agora em diante, muitas divergências não desapareciam, mas a novidade é que seriam resolvidos pacificamente num processo democrático. Mais ainda: apesar das divergências que eventualmente sobrevivem, havia um imenso campo em que, apesar delas, trabalhar lado a lado para resolver alguns problemas do Brasil.

Por que Bolsonaro revolve as cinzas de uma fogueira extinta e sopra tentando reanimar as chamas? Não estamos mais naquela época, ele mesmo sabe. Bolsonaro tem Trump como ídolo, e parece que seu guru é Steve Bannon, cuja visão é a de promover uma guerra contínua a partir do próprio governo. Na esquerda, já se discutiu isso em outro contexto e outro nível de profundidade, quando Troski defendia a tese de uma revolução permanente.  Muitos afirmam que as táticas de Trump e Bolsonaro têm uma grande eficácia eleitoral. Isso ainda não foi demonstrado, uma vez que não houve nova eleição.

A situação do Brasil é diferente. Vivemos ainda numa grande crise econômica, o presidente não tem um Partido Republicano no Congresso. E, finalmente, o fator subjetivo: nosso temperamento é diferente não só pela cultura como pelo fato de não termos enfrentado tantas guerras como eles. É muito possível que a tática de Bolsonaro o leve à sua verdadeira dimensão política: o líder de uma ala radical da direita longe de ser aprovado pelos 57 milhões de eleitores.  Ele não só rompeu com uma espécie de acordo no qual o presente e o futuro importam mais que o passado. Busca destruir uma política ambiental de quase três décadas. Não é perfeita, tem lacunas imensas como o saneamento básico, mas ainda merecia respeito internacional.

A tese dos que veem eficácia na guerra permanente de Bolsonaro não levam muito em conta o potencial de seus eleitores compreenderem seus erros. [o eleitor brasileiro mesmo quando erra - não é o caso dos que votaram em Bolsonaro - não tem capacidade para reconhecer que errou, basta ver reelegeram Lula e Dilma.] O que se coloca pela frente não é apenas brigar com Bolsonaro. O essencial hoje é pensar em como sobreviver à sua passagem, construindo um horizonte que passa pela reconstrução econômica, mas vista como algo maior. Não é possível crescer sem uma política adequada de educação. Muito menos com uma visão destrutiva do meio ambiente. Esses temas não têm um condão mágico. Mas quem os subestima abertamente tende a um isolamento relativo, entra em confronto com a ciência, nega valores humanos, flerta com a barbárie.

E acaba contando apenas com a ideia de uma guerra permanente. Umberto Eco, no seu livro “O fascismo eterno”, revela com ironia: “Em maio ouvíamos dizer que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano.”

Blog do Gabeira - 05.08.2019 


Artigo publicado no jornal O Globo em 05/08/2019

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Gaveta vazia



É impossível para Lula e sua turma conseguirem o que estão querendo por qualquer meio que esteja fora da lei
Lá vai o governo de Dilma Rousseff caminhando para o seu fim a cada dia que passa, e enquanto não se chegar ao desfecho o público em geral vai ficar com a atenção dividida entre as questões práticas que realmente interessam ─ como será, e o que vai fazer, o novo governo? ─ e a barulheira de algo que corre o risco de ser chamado “luta de resistência”. Resistência a quê, mais exatamente? O ato de resistir, para ser de algum interesse concreto, normalmente requer que o resistente tenha alguma chance real de mudar a situação que se recusa a aceitar. Se não for assim, é apenas vaia de arquibancada a torcida que perde fica xingando o juiz, a diretoria do time, o técnico, os jogadores, a bola, e no fim o resultado marcado no placar continua o mesmo.

Dilma, o ex-presidente Lula, o PT e a esquerda inconformada com o impeachment passam os dias correndo daqui para lá à procura de um portento qualquer, possivelmente sobrenatural, para poderem continuar mandando. Mas essas coisas em geral não existem no mundo da realidade. Para terem uma perspectiva séria de evitar o que vem por aí, Lula, Dilma e o seu sistema precisariam, obrigatoriamente e com urgência, oferecer à população um mínimo de atrativos coerentes em favor dos seus desejos. E aí é que está: não têm nada de útil a oferecer. Sua gaveta está vazia.

Falta gente, para começar. Lula e o governo que neste momento caminha para o cemitério não juntam multidão na rua, como os seus adversários foram capazes de juntar. Não se espera, por exemplo, mais de 1 milhão de pessoas na Avenida Paulista gritando “Fica Dilma!”, ou “Fora Temer!”. Faltam senadores para absolver Dilma da deposição, assim como faltaram deputados para impedir que fosse julgada no Senadoela tinha mais ou menos 100 votos do seu lado quando a Câmara começou a decidir o caso, acabou com pouco mais que isso quando a votação se encerrou. Falta um plano concreto, imediato e compreensível para melhorar qualquer coisa que a população quer que melhore já. Não têm, nem Lula nem, menos ainda, Dilma, mais que 20% nas pesquisas de opinião. Não têm um “programa de oposição”, como imaginam neste momento de anarquia mental em que estão dentro e fora do governo ao mesmo tempo. 

Será cômodo dizer, daqui a pouco, que há 10 milhões de desempregados; o difícil será convencer o eleitorado de que Dilma e o PT não têm nada a ver com isso, ou com os hospitais em estado de calamidade, a recessão, as placas de “vende-­se” e “aluga-se”, e por aí afora.

O ex-presidente, ao mesmo tempo, quer que acreditem nele quando diz que está enfrentando uma “quadrilha” política ─ mas de que jeito, se passou os últimos treze anos vivendo como sócio dessa mesma “quadrilha”, que levou para dentro do governo e à qual até outro dia, num hotel de Brasília, estava tentando agradar com oferta de empregos?

O governo tem oferecido, isto sim, algo parecido a um projeto de guerra civil ─ ou pelo menos é o que vem dizendo em público, com ameaças de sabotagem econômica, greve geral, “parar o país” etc., se for seguido o único caminho legal que existe para a substituição de Dilma, ou seja, a posse do vice-presidente Michel Temer. O PT já decidiu que o governo a ser formado por decisão do Congresso Nacional e do STF é “ilegal”; promete que não vai dar “um dia de sossego” a quem ficar na cadeira de Dilma.

Lula e seu partido vão mesmo tentar seguir por aí? Pode ser, mas não se sabe se terão os meios reais de fazer o que propõem. Além do mais, quantos votos pode render uma coisa dessas? Têm sido ofertados, também, episódios de cuspe; não está claro se isso será promovido à categoria de “ato político de resistência”. Sobram tentativas de fazer com que o Brasil receba punições “internacionais”, possivelmente de entidades invisíveis como Unasul, Parlasul, ou coisas assim ─ mas quantos eleitores de carne e osso estariam preocupados com isso? 

Querem que a Operação Lava Jato “pegue” os que estão indo para o governo. E as bombas que podem estourar contra Lula, Dilma e os amigos? Só seria interessante se a Justiça parasse as investigações contra eles e começasse a investigar só os outros. Ou estão esperando uma anistia geral?  A questão real, para Lula e todo o seu universo, é clara: é impossível conseguir o que estão querendo por qualquer meio que esteja fora da lei. Dentro da lei a única saída disponível é recuperar o governo pelo voto, e a próxima oportunidade para isso é a eleição presidencial de 2018. O resto é muita conversa de “resistência” – e nada mais.

Por: J. R. Guzzo – Coluna Augusto Nunes