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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Milícias na eleição - O Globo

José Casado

O candidato de origem na milícia do Rio - Acabou-se a discrição na trapaça

O Rio é um lugar onde armas de guerra dividem a paisagem com o mar, as palmeiras e os trens suburbanos. É, também, a terra onde mais florescem as milícias armadas.  Nos palácios celebram-se liturgias de leniência com a expansão da influência desses grupos em instituições públicas. Eles garantem votos. Em troca, recebem apoio aos negócios. Acabou-se a discrição na trapaça. Pela primeira vez, o Rio poderá ter um candidato a prefeito com origem miliciana atestada em juízo. [fato: o eleitorado do Brasil, elegeu e reelegeu, uma ex-terrorista, presidente da República - ferrou com o Brasil, mas,nada aconteceu com os responsáveis pelo desastre = eleitorado = quem cria cobra...; 
assim, nada impede que um miliciano (sic) seja candidato e, se for vontade do eleitorado, seja eleito e os frutos da escolha serão colhidos por todos os moradores do estado do Rio.
Não estando incurso na Lei da Ficha Limpa a candidatura é válida.]
Jerônimo Guimarães Filho, 71 anos, pioneiro de bandos na Zona Oeste, está em campanha pelo Partido da Mulher Brasileira (PMB). Foi vereador pelo MDB por oito anos, até ser condenado por crimes como uma chacina de nove pessoas. Jerominho, como é conhecido, nega tudo. Depois de uma década na cadeia, parece querer legitimar as alianças das milícias. Seu reduto é a Zona Oeste. Estava preso, em 2008, quando elegeu a filha vereadora. Na época, ela habitava uma cela no presídio de Catanduvas (PR), a 1,4 mil quilômetros da Câmara do Rio.

Se confirmada, sua candidatura pode iluminar parte dos porões da política carioca. Ajudaria a dimensionar o tamanho e a influência das quadrilhas, além de indicar tendências da população refém da falência do Estado — no Hospital Federal de Bonsucesso, doentes de câncer esperam seis meses por atendimento. O controle de voto oxigena as milícias. Isso já prevalece em 468 seções da capital, com mais de 610 mil eleitores (12% do total), sugerem dados da Justiça Eleitoral sobre a votação concentrada em candidatos apoiados por milícias na Zona Oeste.

O antigo chefão da Zona Oeste entraria na disputa com Bolsonaro, Witzel, Crivella & Cia. por pedaços da máquina eleitoral na cidade perdida pelo MDB desde a prisão do ex-governador Sérgio Cabral.  A eficácia dessa engrenagem foi reafirmada na última eleição presidencial. Garantiu a Bolsonaro mais de 60% dos votos em 40 das 49 zonas eleitorais do Rio. Ele só perdeu (com 48,8%) em Laranjeiras. Em 22 zonas, recebeu mais de dois terços dos votos.

 
José Casado, jornalista - Coluna em O Globo
 
 

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O fim do império do fuzil



Devemos recompensar quem apreende um fuzil à altura da importância social disso. Recompensar de verdade, com valores significativos: R$ 10 mil, R$ 15 mil por peça

A população do Rio de Janeiro se acostumou de tal forma à barbárie que perdeu a capacidade de estranhar um fenômeno singular: convivemos com fuzis em nosso cotidiano como se fosse normal. Roubam-se padarias de fuzil em punho, roubam-se carros usando fuzis. A polícia, para estar em pé de igualdade, se arma deles.

Cidades de veraneio já os recebem, como forma de proteção de território e de combate contra as forças policiais. A banalização de seu uso é gritante. Mas tratamos do assunto como se fosse normal. Não atentamos para o fato como ele é: são armas de guerra. Seu uso, mais do que crime, é um ato de terror. Essa desatenção tem um custo. Ela provoca um encorajamento dos bandidos, que usam a arma não para assaltar, mas para demonstrar força e dissuadir as reações contrárias de quem estiver portando armas menores. Inclusive a polícia. 

O bandido famoso só é temido por causa de seu poder de fogo, a facção criminosa só é mais violenta por causa de seu poder de fogo, tudo isso baseado no armamento que possuem. Tirar os fuzis das ruas é uma medida urgente porque terá efeitos em cascata. A começar pela contenção desse encorajamento das gangues armadas. 
Devemos recompensar quem apreende um fuzil à altura da importância social que isso tem. Recompensar de verdade, com valores significativos: R$ 10 mil, R$ 15 mil por peça apreendida. E à medida em que forem diminuindo as apreensões, aumentam-se os incentivos. 

Esqueçamos as caçadas humanas para prender chefes de quadrilhas. Nossa próxima “estação de caça” deve ser aberta contra o fuzil. Sem dúvida será um incentivo à polícia. Andar armado com ele — rotina sobretudo nas comunidades dominadas por traficantes — não será um bom negócio. Assaltar à luz do dia utilizando-se fuzis, muito menos.  Com o tempo, se bem-sucedida, a inciativa fará com que a polícia retome sua posição privilegiada nos confrontos, nos quais será respeitada. Policiais são forçados a atuar como soldados de guerra. Daí é legítimo a recompensa para quem há muito tempo já faz mais do que lhe é cabível. Adota-se uma política de segurança não contra as pessoas, mas contra o que, nas mãos de qualquer um, pode fazer um mal cada vez maior, ceifando vidas, mutilando corpos e tirando a paz, questão básica para uma sociedade civilizada.

Como a dita política de pacificação não funcionou, [nem vai funcionar: só haverá paz quando apenas um dos lados estiver armado, bem armado; e este lado tem que ser a polícia.] adotemos então uma política econômica da oferta e procura, estimulando a entrega dessas armas. Diminuindo-se o uso de fuzil, a população terá um alento. Os casos de balas perdidas diminuirão, pois, o alcance descomunal dessas armas que espalham o terror para muito além das regiões centrais dos conflitos armados. Policiais poderão cumprir seu dever correndo riscos menores. 

Já podemos imaginar quantos benefícios virão em não termos e sentirmos a todo tempo que um fuzil pode estar apontado em nossa direção. Quem sabe assim teremos um futuro que seja melhor para nossos filhos do que tem sido o presente para nós. 

Raphael Mattos é advogado
 

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Leniência interessada

O Rio é a única área do país onde armas de guerra compõem a paisagem. Percebe-se nela uma liturgia de leniência política interessada, enquanto se multiplicam os funerais

Aguardavam sermão na missa fúnebre na igreja da Rocinha, uma das maiores favelas do país. Dois caixões grandes diante do altar apartavam famílias, amigos e conhecidos — todos vizinhos nos becos estreitos, onde o ar é rarefeito, a luz do sol quase não penetra, e os índices de tuberculose sobem 11 vezes acima da média nacional.

O sacerdote havia aberto o Livro com versículos de súplica pela misericórdia divina ao par de defuntos, mas estancou, com as páginas abertas nas mãos. O som da sua mudez, talvez, tenha parecido infinito. Reagiu, fechando a Bíblia: — Desculpem, estou cansado disso.  Seguiu-se um desabafo coletivo, lacrimal e solidário: — Nós também — responderam do lado da vítima assassinada, em coro com as pessoas que ladeavam o cadáver do assassino.

Esse episódio, retrato em 3 x 4 do cotidiano carioca, foi relatado em recente reunião na qual estavam bispos, o cardeal Orani Tempesta, o general Sérgio Etchegoyen, chefe da Segurança Institucional da Presidência da República, e o ministro Raul Jungmann, da Defesa.  A falência estadual e a ameaça de conflagração ainda mais intensa nas ruas do Rio, confirmada por órgãos de segurança, estão na raiz dos argumentos para justificar a intervenção com tropas federais até a eleição do próximo governo, em ações pontuais como as realizadas no fim de semana na Zona Norte. Em Lins de Vasconcelos, o primeiro ensaio fracassou, por vazamento de informações.

A violência na região metropolitana do Rio virou mercadoria política. Não por acaso, a Assembleia, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público estadual e a prefeitura do Rio mantêm uma tropa exclusiva de 648 policiais militares.  Ela foi retirada das ruas para servir à segurança privativa de deputados, juízes, promotores, secretários municipais e prefeito. É maior que as aquarteladas nos batalhões no Méier, Tijuca, Olaria, Ilha do Governador e Copacabana.

São 244 no Ministério Público, 172 na Justiça, 115 na prefeitura da capital e 117 na Assembleia. Há deputados com duas dezenas de policiais militares. Alguns somam a própria milícia.  A intervenção federal, dissimulada num acordo com o governo estadual, tem lado ostensivo e, obviamente, saudado pela população. Começou há apenas duas semanas, mas já é vitrine cobiçada no jogo político. Nos palanques acotovelam-se presidente, governador, ministros, prefeitos e parlamentares. Caçam votos e prestígio num eleitorado traumatizado pela guerra, que testemunhou a morte de 3.234 policiais no período de 1994 a 2016, segundo relato da repórter Aline Macedo.

Agora, com olhos nas urnas de 2018, prefeitos armam as guardas municipais como outro trunfo eleitoral. Acontece em cidades como Macaé, Araruama, Rio das Ostras, entre outras. Em outras, como Niterói, planeja-se pedir ajuda à Justiça Eleitoral para um “plebiscito” em outubro.  Rota de contrabando de armas e drogas, como descreve o repórter Allan de Abreu no ótimo livro “Cocaína”, o Rio é a única área do país onde armas de guerra compõem a paisagem. Percebe-se nela uma liturgia de leniência política interessada, enquanto se multiplicam os funerais.

Fonte: José Casado - O Globo