O Rio é a única área do país onde armas de guerra compõem a paisagem. Percebe-se nela uma liturgia de leniência política interessada, enquanto se multiplicam os funerais
Aguardavam
sermão na missa fúnebre na igreja da Rocinha, uma das maiores favelas do
país. Dois caixões grandes diante do altar apartavam famílias, amigos e
conhecidos — todos vizinhos nos becos estreitos, onde o ar é rarefeito,
a luz do sol quase não penetra, e os índices de tuberculose sobem 11
vezes acima da média nacional.
O sacerdote havia aberto o Livro com versículos de súplica pela misericórdia divina ao par de defuntos, mas estancou, com as páginas abertas nas mãos. O som da sua mudez, talvez, tenha parecido infinito. Reagiu, fechando a Bíblia: — Desculpem, estou cansado disso. Seguiu-se um desabafo coletivo, lacrimal e solidário: — Nós também — responderam do lado da vítima assassinada, em coro com as pessoas que ladeavam o cadáver do assassino.
Esse episódio, retrato em 3 x 4 do cotidiano carioca, foi relatado em recente reunião na qual estavam bispos, o cardeal Orani Tempesta, o general Sérgio Etchegoyen, chefe da Segurança Institucional da Presidência da República, e o ministro Raul Jungmann, da Defesa. A falência estadual e a ameaça de conflagração ainda mais intensa nas ruas do Rio, confirmada por órgãos de segurança, estão na raiz dos argumentos para justificar a intervenção com tropas federais até a eleição do próximo governo, em ações pontuais como as realizadas no fim de semana na Zona Norte. Em Lins de Vasconcelos, o primeiro ensaio fracassou, por vazamento de informações.
A violência na região metropolitana do Rio virou mercadoria política. Não por acaso, a Assembleia, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público estadual e a prefeitura do Rio mantêm uma tropa exclusiva de 648 policiais militares. Ela foi retirada das ruas para servir à segurança privativa de deputados, juízes, promotores, secretários municipais e prefeito. É maior que as aquarteladas nos batalhões no Méier, Tijuca, Olaria, Ilha do Governador e Copacabana.
São 244 no Ministério Público, 172 na Justiça, 115 na prefeitura da capital e 117 na Assembleia. Há deputados com duas dezenas de policiais militares. Alguns somam a própria milícia. A intervenção federal, dissimulada num acordo com o governo estadual, tem lado ostensivo e, obviamente, saudado pela população. Começou há apenas duas semanas, mas já é vitrine cobiçada no jogo político. Nos palanques acotovelam-se presidente, governador, ministros, prefeitos e parlamentares. Caçam votos e prestígio num eleitorado traumatizado pela guerra, que testemunhou a morte de 3.234 policiais no período de 1994 a 2016, segundo relato da repórter Aline Macedo.
Agora, com olhos nas urnas de 2018, prefeitos armam as guardas municipais como outro trunfo eleitoral. Acontece em cidades como Macaé, Araruama, Rio das Ostras, entre outras. Em outras, como Niterói, planeja-se pedir ajuda à Justiça Eleitoral para um “plebiscito” em outubro. Rota de contrabando de armas e drogas, como descreve o repórter Allan de Abreu no ótimo livro “Cocaína”, o Rio é a única área do país onde armas de guerra compõem a paisagem. Percebe-se nela uma liturgia de leniência política interessada, enquanto se multiplicam os funerais.
O sacerdote havia aberto o Livro com versículos de súplica pela misericórdia divina ao par de defuntos, mas estancou, com as páginas abertas nas mãos. O som da sua mudez, talvez, tenha parecido infinito. Reagiu, fechando a Bíblia: — Desculpem, estou cansado disso. Seguiu-se um desabafo coletivo, lacrimal e solidário: — Nós também — responderam do lado da vítima assassinada, em coro com as pessoas que ladeavam o cadáver do assassino.
Esse episódio, retrato em 3 x 4 do cotidiano carioca, foi relatado em recente reunião na qual estavam bispos, o cardeal Orani Tempesta, o general Sérgio Etchegoyen, chefe da Segurança Institucional da Presidência da República, e o ministro Raul Jungmann, da Defesa. A falência estadual e a ameaça de conflagração ainda mais intensa nas ruas do Rio, confirmada por órgãos de segurança, estão na raiz dos argumentos para justificar a intervenção com tropas federais até a eleição do próximo governo, em ações pontuais como as realizadas no fim de semana na Zona Norte. Em Lins de Vasconcelos, o primeiro ensaio fracassou, por vazamento de informações.
A violência na região metropolitana do Rio virou mercadoria política. Não por acaso, a Assembleia, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público estadual e a prefeitura do Rio mantêm uma tropa exclusiva de 648 policiais militares. Ela foi retirada das ruas para servir à segurança privativa de deputados, juízes, promotores, secretários municipais e prefeito. É maior que as aquarteladas nos batalhões no Méier, Tijuca, Olaria, Ilha do Governador e Copacabana.
São 244 no Ministério Público, 172 na Justiça, 115 na prefeitura da capital e 117 na Assembleia. Há deputados com duas dezenas de policiais militares. Alguns somam a própria milícia. A intervenção federal, dissimulada num acordo com o governo estadual, tem lado ostensivo e, obviamente, saudado pela população. Começou há apenas duas semanas, mas já é vitrine cobiçada no jogo político. Nos palanques acotovelam-se presidente, governador, ministros, prefeitos e parlamentares. Caçam votos e prestígio num eleitorado traumatizado pela guerra, que testemunhou a morte de 3.234 policiais no período de 1994 a 2016, segundo relato da repórter Aline Macedo.
Agora, com olhos nas urnas de 2018, prefeitos armam as guardas municipais como outro trunfo eleitoral. Acontece em cidades como Macaé, Araruama, Rio das Ostras, entre outras. Em outras, como Niterói, planeja-se pedir ajuda à Justiça Eleitoral para um “plebiscito” em outubro. Rota de contrabando de armas e drogas, como descreve o repórter Allan de Abreu no ótimo livro “Cocaína”, o Rio é a única área do país onde armas de guerra compõem a paisagem. Percebe-se nela uma liturgia de leniência política interessada, enquanto se multiplicam os funerais.
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