Leitura que o juiz Vallisney de Souza Oliveira faz do Artigo 312 do Código de Processo Penal está entre as coisas mais exóticas que já li. O juiz ainda manda um ”haverem provas”... Estamos fritos!
Vamos fazer um acordo, leitor amigo?
Você se compromete, goste ou não do meu texto, a ler o despacho do juiz
Vallisney de Souza Oliveira, que determinou, a pedido do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, a prisão preventiva de Geddel
Vieira Lima. Acho que se trata de expressão de desespero, compatível com
outras maluquices que estão por aí. Afinal, Rodrigo Janot havia
prometido que ainda lançaria algumas flechas com o bambu de que dispõe.
Obviamente, trata-se de uma tentativa de atingir o presidente Michel
Temer, já que o preso do dia foi seu ministro.
Bem, vamos lá. Geddel é investigado na Operação Cui Bono, que o acusa, quando ocupava a Vice-Presidência de
Pessoa Jurídica da Caixa Econômica Federal, de ter atuado na liberação
manipulada de empréstimos, em conluio com Eduardo Cunha, Lúcio Funaro e
Fábio Cleto. Notem que não direi uma palavra sobre a
acusação e a investigação. Não disponho de elementos para afirmar se
Geddel é culpado ou inocente. Tampouco o juiz Vallisney está a julgar o
ex-ministro. Uma coisa é certa: dada a íntegra do seu despacho (aqui), a prisão preventiva é escancaradamente ilegal. A menos que haja elementos que desconhecermos a justificá-la.
Atenção! Reitero: eu não estou dizendo
que Geddel é inocente. O que sustento, e o fará qualquer pessoa que
emita um juízo técnico, é que a prisão é injustificada. “Ah, e se for
mantida pela segunda instância?” Bem, meus queridos, subir o erro um
andar não o torna um acerto.
Existem quatro motivos, e apenas quatro,
para se decretar a prisão preventiva de alguém: a) risco à ordem
pública; b) risco à ordem econômica; c) no interesse da instrução
criminal (para preservar provas e testemunhas); d) garantia de
efetividade da lei penal (evitar a fuga). É o que dispõe o Artigo 312 do
Código de Processo Penal. O juiz vê a presença das quatro condições.
Será mesmo?
Atenção! O que quer dizer “risco a ordem
pública e econômica”? A evidência de que o investigado está cometendo,
no presente, novos crimes. E isso o que diz Vallisney sobre Geddel?
Vamos à sua decisão?
“mesmo após a saída da
Vice-Presidência exercida na CEF, o investigado GEDDEL VIEIRA LIMA
continuou a interferir na Caixa Econômica Federal indevidamente,
utilizando-se de sua influência política e que prosseguiu em negociações
ilícitas em desfavor da referida empresa pública. No ponto, relata
LÚCIO BOLONHA FUNARO: ‘Que a última operação de crédito viabilizada pelo
declarante foi de uma linha de crédito no valor de R$ 2,7 bilhões para a
compra da ALPARGATAS ocorrida em dezembro de 2015; QUE nesta época
GEDDEL já havia saído da vice-presidência, mas continuava controlando-a’
Ou seja: em data recente, mesmo fora do cargo na CEF, GEDDEL VIEIRA
LIMA demonstrou poder de influenciar as operações bancárias, estando
presente a necessidade da prisão para assegurar a ordem pública.”
Só não direi que é coisa inédita porque
não há mais ineditismo na Lava-Jato em matéria de desmando. Ora, se o
que se diz sobre Geddel é verdade é se, mesmo fora da CEF, ele continuou
a interferir no banco público, que isso seja considerado na hora da
sentença e na dosimetria da pena. Afirmar que ele segue sendo um risco à
ordem pública hoje porque continuou delinquindo em 2015 é de exotismo
teórico ímpar. Parece mesmo que PF, MPF e setores do Judiciário estão
dispostos a testar os limites das instituições.
O juiz avança e diz que Geddel, se
solto, pode procurar escamotear o dinheiro irregular que teria
arrecadado, caracterizando risco à ordem econômica. Seria cômico se não
fosse trágico — e é trágico para o direito. A operação Cui Bono foi
deflagrada no dia 13 de janeiro, há quase sete meses. Geddel deixou a
diretoria CEF em dezembro de 2013. E PF e MPF vêm dizer agora, com a
concordância de Vallisney, que, solto, o ex-deputado e ex-ministro pode
maquiar o produto das ações ilícitas? Ora, a essa altura, a coisa já
estaria feita. De novo: seria elemento a agravar a sua pena.
Geddel também estaria pondo em risco a
instrução criminal. Como? Ao telefonar para a mulher de Lúcio Funaro. E
Vallisney recorre ao testemunho do bandido preso, a saber:
“QUE estranha alguns
telefonemas que sua esposa tem recebido de GEDDEL VIEIRA LIMA, no
sentido de estar sondando qual seria o ânimo do declarante em relação a
fazer um acordo de colaboração premiada; QUE também chamou a atenção do
declarante o monitoramento feito do seu estado de ânimo dos escritórios
de advocacia…”
Geddel ameaçou a mulher de Funaro? Há
evidências disso? Se há — e não está no despacho do juiz —, existe
motivo para a preventiva. O simples telefonema não significa
absolutamente nada. Geddel não estava sob medida cautelar nenhuma que o
impedisse de telefonar para quem quer que fosse.
O juiz não tem dúvida: se Geddel ligou
para a mulher de Funaro — e, reitero, o conteúdo da ligação não é
revelado —, então é sinal de que ele pode ameaçar familiares de outros
envolvidos na operação. A peça, com a devida vênia, sobe alguns graus na
escala do delírio.
Estupro à língua
Achando que o estupro ao direito era pouco, o juiz também resolveu violar a língua portuguesa e mandou brasa: “Todas essas circunstâncias apontadas convencem-me de que a prisão de GEDDEL LIMA é medida que se impõe, por haverem provas, até o momento, de sua participação no supramencionado esquema ilícito, havendo o perigo de que se permanecer solto possa atrapalhar as investigações na Operação Cui Bono e, indiretamente, no Processo n. 60203-83.2016 (Operação Sépsis) (…)
Achando que o estupro ao direito era pouco, o juiz também resolveu violar a língua portuguesa e mandou brasa: “Todas essas circunstâncias apontadas convencem-me de que a prisão de GEDDEL LIMA é medida que se impõe, por haverem provas, até o momento, de sua participação no supramencionado esquema ilícito, havendo o perigo de que se permanecer solto possa atrapalhar as investigações na Operação Cui Bono e, indiretamente, no Processo n. 60203-83.2016 (Operação Sépsis) (…)
Bem, meus caros, algo de realmente grave
se passou com o Brasil quando um juiz com a importância de Vallisney
detona, sem piedade, a gramática do verbo “haver”, que, no sentido de
“existir”, coitadinho!, é impessoal. Assim, obriga a gramática que o
juiz escreva., “por haver provas”, nunca “por haverem provas”.
“Ah, Reinaldo, prefiro um juiz que viole
a língua a uma que viole a lei”. Ora, se me fossem dadas apenas essas
alternativas, eu também preferiria. Ocorre que o despacho de Vallieney
viola das duas. E não se enganem: um juiz federal
escrever “haverem provas” indica um estágio de leitura — inclusive das
normas do direito. E também indica que podemos estar todos fritos.
Inclusive os honestos.
Leia também: Juiz Vallisney, o Sérgio Moro do B, manda prender Geddel. É uma das flechas de bambu de Janot
Fonte: Blog do Reinaldo Azevedo