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sexta-feira, 16 de março de 2018

Mais um cadáver, entre milhares


Assassinato de vereadora afronta a democracia

A execução de Marielle Franco precisa ter uma investigação rápida e eficiente, para que seus autores sejam identificados e punidos exemplarmente

[por respeito aos nossos dois leitores, julgamos necessário esclarecer que não temos, nem nunca tivemos, nada contra a vereadora Marielle Franco;
Ouvimos falar dela pela primeira vez anteontem, dia 14/03/2018, à noite, e lamentamos profundamente a sua morte, o seu assassinato;

da mesma forma que lamentamos a morte de crianças vitimadas por balas perdidas, policiais assassinados, mulheres grávidas vítimas de balas e milhares de inocentes que são dizimados pela violência que assola o Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro.

Por isso, colocamos como título deste POST: "Mais um cadáver, entre milhares"  tendo em conta nosso entendimento que qualquer ser humano assassinado, independentemente de sua posição social, política,  merece o nosso pesar, o nosso lamento.

Tão bárbaro quanto o assassinato da vereadora, foi o empresário morto em Cachambi, na frente do filho de cinco anos - a comoção foi a mesma  e a necessidade dos assassinos serem identificados e punidos é a mesma.

O mesmo entendimento vale para qualquer ser humano assassinado.] 

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), na noite de quarta-feira, no Estácio, é um símbolo contundente do descontrole a que chegou a segurança no Rio, situação de anomia que levou à intervenção federal. Fatos sucessivos mostram que o estado virou uma espécie de terra de ninguém. Mata-se a qualquer hora, em qualquer lugar, por qualquer motivo. Marielle e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, foram executados com pelo menos 13 disparos, por volta das 21h30m, quando ela seguia de carro para casa. O crime, que chocou o país e repercutiu internacionalmente, aconteceu numa região central da cidade, próximo à sede da prefeitura e ao Hospital Central da Polícia Militar. Quase naquele mesmo horário, um empresário foi morto na frente do filho de 5 anos, durante uma tentativa de assalto no Cachambi, Zona Norte do Rio.


Mas o assassinato de Marielle é bem mais do que um novo número na estatística de homicídios dolosos — ano passado, foram 5.332 em todo o estado. Porque, além do contexto da violência, representa um atentado contra as instituições e a democracia. Inadmissível num estado democrático de direito. Marielle, de 38 anos, quinta vereadora mais votada da cidade nas eleições de 2016, com o apoio de 46,5 mil eleitores, era uma legítima representante da sociedade na Câmara Municipal, onde estreou em 2017, empunhando bandeiras como os direitos humanos e das mulheres.


Era uma crítica da violência e, numa de suas últimas mensagens postadas numa rede social, perguntava: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe”? Também chamava atenção para a truculência policial. Na semana passada, denunciou uma ação de PMs do quartel de Irajá na Favela de Acari. Nesse sentido, o que acontece hoje no Rio é fato de extrema gravidade, que obviamente ultrapassa os limites do estado e ganha proporções nacionais. Fica evidente que, nessa insana escalada da violência em território fluminense, criminosos estão agindo como máfia, atacando agora agentes públicos e poderes constituídos. Um caminho perigosíssimo, que requer um basta imediato do Estado e de toda a sociedade. E, uma das questões incômodas, mas que precisam ser enfrentadas, é que alguns desses grupos mafiosos estão infiltrados no Estado. Como as milícias e o tráfico, que ditam suas leis nefastas e tentam se legitimar ocupando cadeiras nas casas legislativas.


Muitas dúvidas ainda pairam sobre as circunstâncias da morte de Marielle Franco e de seu motorista. Segundo as primeiras investigações, os indícios são de execução. Resta saber quem teria motivos para calar a vereadora. Pessoas próximas disseram que ela não recebera qualquer ameaça de morte.Por tudo isso, o assassinato de Marielle Franco precisa ter uma investigação rápida e eficiente, para que seus autores sejam identificados e punidos exemplarmente. Essa é a oportunidade para que se exerça de fato o trabalho de integração entre as diversas forças de segurança proposto pela intervenção federal no Rio. Elucidar esse caso é dar uma resposta à sociedade. [resposta que deve, pelo menos a principio, ser dada à Sociedade por qualquer cidadão assassinado e aos seus familiares.
É um direito de quem perde um ente querido, especialmente assassinado, saber quem foi o autor e ter a certeza de que foi, ou será, punido severamente.] E, ao mesmo tempo, reafirmar o estado democrático de direito num momento em que ele é perigosamente ameaçado pelo banditismo.

O Globo - Editorial 

terça-feira, 14 de julho de 2015

O volume morto

A palavra de ordem não era derrotar o capitalismo? Pois agora estão conseguindo cumprir

No Brasil, qual a diferença entre o comunismo de antigamente e o comunismo de hoje? Só uma: hoje eles estão no poder. Essa é a diferença principal. Na oposição são ardorosos sabotadores, no poder são um desastre administrativo. E se dedicam a sabotar o capitalismo mesmo dentro do poder capitalista. Como eles costumavam dizer, essa é a “contradição principal” deles: como ser contra o regime e governá-lo ao mesmo tempo?

A outra diferença entre ontem e hoje é de sentimentos: antes havia sim uma esquerda romântica, como vi e vivi nos tempos de estudante na UNE. A esquerda não era corrupta. Hoje a esquerda é só um pretexto para o petismo, o lulismo e o banditismo.  Naquela época, não. Nosso romantismo era meio babaca, mas era a única porta para entender o mundo.

Nós éramos mais “puros”, mais poéticos, mais heroicos que os meus colegas de PUC, todos já de gravatinhas adultas. Como era bom se sentir acima dos outros, não por competência ou cultura, mas por superioridade ética. Os operários eram nossa meta existencial. Para nós eles eram o futuro da Humanidade. Nas oficinas do jornal estudantil que eu fazia, crivavam-nos de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários ficavam desconfiados e pensavam que nós éramos veados e não fervorosos “revolucionários”.

Naquele tempo não era possível pensar de outro jeito. De Sartre a Brizola, não havia outra ideologia disponível. A guerra fria dividia o mundo em duas facções, e a tomada do poder de Fidel Castro inebriou nossos desejos. Mesmo delirando em utopias, queríamos verdadeiramente, romanticamente salvar o país, contra o “imperialismo americano, o latifúndio e a direita espoliadora”. Não havia espaço para outras ideias, e quem ousasse pensar diferente era canalha, lacaio dos americanos. Por exemplo, Raymond Aron era de “direita” porque discordou do Sartre, pois esse incitava seus leitores para agir; Aron ensinava-os a pensar. Como acreditávamos nessa dualidade, ela virou uma verdade incontestável. E essas “verdades” criaram uma nova linguagem que praticávamos com fé e determinação. Em vez dos fatos, a linguagem bastava e nos movia. A linguagem ignorava o mundo real, chato e complexo demais para a mutação histórica que faríamos pois, afinal, éramos os “sujeitos da história”. Só as palavras simplistas explicavam nossa visão de mundo: alienação, massa atrasada, massa avançada, conscientização, sectarismo, aventureirismo, reacionarismo, entreguismo, proletariado, democracia burguesa e a palavra sagrada que tudo justificava: o “povo”.

E é impressionante a manutenção das mesmas ideias de 50 anos atrás. Éramos implacáveis com as tentativas de conciliação; um dia, o próprio Costa e Silva aceitou receber uma delegação de estudantes. Nada aconteceu porque nós, na porta do Planalto, nos recusamos a vestir paletós. Nossas certezas eram tão sólidas que me lembro de dizer, no dia 31 de março de 1964: “Oba! Já derrotamos o imperialismo americano; agora só falta a burguesia nacional!” No dia seguinte, a UNE pegava fogo e surgia o anão verde-oliva Castelo Branco, o novo ditador.

Como era fácil ignorar a realidade quando se é da oposição, como era (e é) moleza tramar um programa político sem ter de administrar nada. Os românticos esquerdistas achavam que administrar era coisa de capitalistas (e ainda acham) pois, no desespero da zona geral, tiveram agora de contratar um “neoliberalpara tentar salvar um país quase em “perda total”.

Na época, tudo fazia sentido para nós, sentido calcado em palavras-chaves que descreviam a vida, o país, as tragédias mundiais, a subestimação da resistência daquele mal chamado “capitalismo” que tudo descrevia. O capitalismo era tratado como uma pessoa: “capitalismo hoje acordou de mau humor, o capitalismo tentou nos enganar outro dia, o capitalismo está mentindo etc.” Nunca entenderam (como hoje) que o capitalismo não é um regime político, mas um modo de produção — mal ou bem, o único que ainda funciona nesse mercado devastado por crises.

O socialismo utópico ou não era a única ideologia que movia o mundo e que agora justifica a destruição do Estado e do país que os petistas estão perpetrando. De certa forma, essa cagada que aprontaram (perdoem a vulgaridade) foi uma vitória.  A palavra de ordem não era derrotar o capitalismo? Pois agora estão conseguindo cumprir sua utopia: derrotá-lo (e o Brasil junto) sem terem nada para botar no lugar. É espantosa a capacidade de errar dessa gente. Mas para eles, na pior tradição hegeliana, o “erro” é apenas um acidente de percurso. O erro é apenas uma contradição negativa e passageira. 

Nesse tempo, as reuniões eram incessantes e insuportavelmente longas. E era o mesmo papo de agora no PT: precisamos falar com o povo, com movimentos sociais, sindicatos e (uma palavra que me deprimia) “associações de bairro”. Eu pensava: “Que será isso? Será que querem conscientizar minhas tias?”. Nas infinitas reuniões todos falavam inflados de certezas e ao final se perguntavam: o que fazer? Ninguém sabia. Mas continuávamos firmes militantes do nada, sem saber para onde ir, porque ter dúvidas era “revisionismo”. É como hoje; ver o Rui Falcão falando até me emociona, pois é uma viagem no tempo. Não havia espaço para os males internos e seculares do Brasil; tudo era culpa dos inimigos externos (como hoje — não é, Dilma?).

Hoje já estão no “volume morto”, como definiu o Lula num raro acesso de autocrítica, mas continuarão persistindo na marcha da insensatez. Eles não mudam nunca.  Nunca me esqueço de um debate do grande intelectual “aroniano” José Guilherme Merquior com dois marxistas na TV. Os dois falavam sempre dos erros da esquerda, mas considerados apenas como “percalços” de uma marcha triunfal para o futuro. Eles diziam, batendo no peito: “Erramos no stalinismo, na Hungria, em Praga, aqui erramos em 1935, 1964, em 1968, mas continuaremos lutando.” Merquior respondeu na lata: “Por que vocês não desistem?”

Fonte: Arnaldo Jabor - Colunista de O Globo