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sábado, 6 de fevereiro de 2021

O triunfo da mentira - O Estado de S. Paulo

A covid-19 foi a descoberta para os políticos brasileiros, que viram na epidemia uma belíssima oportunidade para tirar proveito pessoal

A covid-19 foi sem dúvida a descoberta do ano para os políticos brasileiros. Desde o primeiro caso de infecção, boa parte dos nossos homens públicos viram na epidemia uma belíssima oportunidade para tirar proveito pessoal e “assumir posições” - calculadas para dar mais gás (ou o que eles acham que é mais gás) para as suas carreiras. Vivem falando que agem de acordo com a “ciência”. Mentira. Eles não sabem rigorosamente nada de ciência, mas acreditam saber tudo sobre os truques mais eficazes para utilizar em seu benefício uma tragédia – e o pânico trazido por ela. O governador João Doria foi um dos primeiros a ver o potencial desta mina. Dez meses depois, continua achando que ainda há muita coisa a tirar daí.

No dia 13 de novembro, duas semanas antes do segundo turno das eleições municipais, o governador disse o seguinte, em praça pública: “Vim aqui para desmentir mais uma fake news”, disse Doria, àquela altura convencido de que manter em grau mais moderado seu sistema de repressão ao vírus, como vem ocorrendo nos últimos meses, era a postura mais rentável para dar votos ao seu candidato Bruno Covas. “Depois das eleições nós não vamos endurecer as medidas de combate à pandemia. A pandemia está sob controle.” Afirmou, também, que as previsões de endurecimento eram “um golpezinho” de campanha eleitoral.

As urnas mal tinham sido fechadas quando o governador, que então já não precisava mais dos votos, mandou fazer exatamente o contrário do que havia acabado de prometer: depois de uma campanha eleitoral vivida dentro da “fase verde” das restrições, Doria votou a impor as exigências da “fase amarela”, mais extensas e rigorosas. Qual foi, nessa história, a notícia falsa: o anúncio do endurecimento que viria depois da eleição, ou o desmentido formal do governador?

A covid-19, ao ser utilizada como ferramenta política, transformou-se no triunfo da mentira. Essa malversação dos fatos, feita de forma sistemática e maciça, leva aos disparates que se repetem diariamente à vista de todos. Há a vacina “boa” (a estadual) e a vacina ruim (a federal), com o pormenor de que nenhuma das duas existe. Há a aglomeração “ruim”, quando é feita pelos adversários políticos, e a aglomeração “boa”, quando é feita nas sedes de partidos para comemorar as vitórias do segundo turno. Há os chiliques constantes das autoridades diante de “ameaças ao distanciamento social”, e a sua mais absoluta indiferença com os ônibus, trens e metrô que viajam lotados todos os dias.

A Prefeitura de São Paulo é patentemente inepta para cuidar de tarefas elementares e essenciais, que o homem sabe executar há 5.000 anos, como manter os bueiros da cidade razoavelmente limpos – a causa direta das enchentes a qualquer chuva mais forte. É inepta para cortar árvores que ameaçam cair sobre a rua e matar gente, como acaba de acontecer na Vila Mariana – apesar de todos os pedidos de providências por parte dos moradores. É inepta para consertar os buracos de rua. Mas o prefeito e o governador são craques em usar máscaras pretas fashion, brincar de “cientista” e propor a “igualdade social”. É onde São Paulo veio parar.

JR Guzzo, jornalista - O Estado de S.Paulo - 02 dezembro 2020


quinta-feira, 16 de abril de 2020

O terrível silêncio da matéria - Percival Puggina



Vivemos numa época em que a negação de verdades é vista como um serviço à liberdade e evidência de sensatez. Pelo viés oposto, afirmá-las é dar sinais de prepotência intelectual. “Tudo é relativo!”, proclama-se, enquanto se anuncia que a experiência individual (individualismo) ou comunitária (coletivismo) são as únicas fontes de conhecimento. Não é preciso muito esforço para reconhecer o quanto as afirmações de tais fontes são variáveis e não verificáveis. Na prática, o que se produz por essa via é a grosseira valorização do palpite: “Aqui vocês (ou você) decidem legitimamente sobre tudo!”

Quem diz que tudo é relativo afirma o relativismo como uma verdade. Certo? No entanto, se tudo for relativo, também essa “verdade” será relativa e a própria frase destrói o que pretende ensinar, a menos que admitamos o relativismo como a única verdade não relativa.Existe a verdade e existe o bem! E quem nega isso, ao contrário do que imagina, não presta serviço à liberdade. Quantos pais, ocupados com bem educar seus filhos ouvem deles: “Puxa, só aqui em casa as coisas são assim!”. Tal frase é, talvez, a primeira evidência que colherão de o quanto foi a sociedade invadida por conceitos destrutivos de seus próprios alicerces. 

O historiador Paul Johnson, admirável autor de “Tempos Modernos, o mundo dos anos 20 aos 80”, discorrendo sobre a repercussão social do trabalho científico de Einstein, escreveu:
“O mundo está desconjuntado, como tristemente observara Hamlet”. Era como se o globo giratório tivesse sido tirado de seu eixo e lançado à deriva num universo que não mais comportava normas e medidas preestabelecidas. No princípio dos anos 20 surgiu a crença de que não mais havia quaisquer absolutos: de tempo e espaço, de bem e de mal, de conhecimento, sobretudo de valores. Erroneamente, a relatividade se confundiu com o relativismo, sem que nada pudesse evitá-lo.


Mais adiante, referindo-se ainda a Einstein, o autor registra o desalento do cientista ao perceber as consequências da teoria da relatividade na vida real das pessoas.
“[Einstein] viveu para presenciar a transformação do relativismo moral – para ele uma doença – em pandemia social, assim como para ver sua equação fatal dar à luz o conflito nuclear. Houve vezes, no final de sua vida, em que afirmou desejar ter sido apenas um relojoeiro.”

Ora, tanto a física de Newton, quanto a de Einstein e a de Max Plank eram válidas para os respectivos parâmetros, mas sair delas para armar barraca nos porões da dúvida sobre bem e mal, certo e errado, verdade e mentira é maltratar a ciência e torturar os cientistas. O mundo desconjuntado de Hamlet volta as costas a Deus, enquanto se preocupa com a natureza, com os animais e as plantas, e descuida absolutamente do ser humano e da sociedade, da cultura e da civilização.
 Que sentido pode haver em orientar-se pelo terrível silêncio da matéria, relativizando tudo que de fato importa ao homem?


Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.