Reflexões sobre princípios e cidadania
Madeleine Lacsko
A sensacional história do bar Miúda, que falou todEs até dizer chega mas foi cancelado até pelos grandes veículos de imprensa quando agiu certo.
Sim, o bar é isso mesmo. Um estacionamento com chão de brita com umas cadeiras de praia. - Foto: Instagram
"Eu só consegui me dar conta da violência que tinha sofrido quando entrei no carro e pude chorar à vontade". Essa frase faz parte de reportagens publicadas na imprensa nacional. Lendo isso, que história você imagina? Vou adiante com mais uma pista. "A cena do meu filho segurando a minha mão, com olho lacrimejando, na porta do Miúda, não foi fácil de elaborar". Que coisa terrível teria ocorrido com a criança de 5 anos?
Antes de tudo é necessário um esclarecimento: o que é o Miúda? É uma das maiores provas de que, enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Pegaram um estacionamento, espalharam cadeira de praia e luz de neon num piso de brita, improvisaram mesa com caixote de supermercado e cobram R$ 90 por uma cachaça e duas cervejas long neck.
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A história saiu primeiro no Universa, do UOL, depois no Nexo e então se espalhou para G1, Metrópoles e Veja São Paulo. Quando saiu na revista especializada Pais & Filhos, considerei prova científica da imbecilização do jornalismo tupiniquim.
A partir de uma distorção proposital, as publicações entrevistam especialistas induzidos a erro.
Suponha que você queira levar seu filho de 5 anos ao Café Photo, ao Bahamas, a um motel ou a um clube de swing.
Há uma diferença importante entre colunistas e repórteres. Colunistas, como eu, expõem sua opinião e têm princípios e métodos diferentes. Alguns nem jornalistas são. Repórteres não, eles reportam fatos.
Quando grandes veículos têm repórteres que pensam ser colunistas numa jihad pela inclusão, o jornalismo comete suicídio. Se não é possível confiar na apuração dos fatos, as pessoas passam simplesmente a ouvir as opiniões de que mais gostam e ponto final, adeus realidade objetiva.
E há também um componente preocupante de infantilidade e total incapacidade de avaliar a diferença entre violência e regra. Dizer não é sempre uma violência. Não importa o que a pessoa faça, ela vai sacar da manga uma carta qualquer de minoria oprimida que lhe dará o free pass de fazer o que quiser. A tendência do público nesse caso será de crucificar a mãe. Só de olhar a foto do lugar a gente já quase pega micose, avalia enfiar uma criança ali. Mas é o jeito dela de viver e quem já teve filho dessa idade sabe como a gente fica cansada e às vezes julga mal.
Não dá para levar criança num lugar sem antes se informar como o lugar recebe crianças. Mas eu já fiz isso, você provavelmente também, quem nunca? Ela pensou que ia ter um momento de diversão com os amigos, preparou tudo na gambiarra e ficou frustrada porque não deu certo. Talvez tenha ficado irritada, postou na rede social, tudo bem.
Suponhamos que tenha amigas jornalistas, ficou revoltada porque ainda não se acostumou à vida de mãe, queria muito ir ao pé sujo da moda, resolveu desabafar com uma delas. Vai que ela pega pilha e a chata do bar recebe o que merece. "Mãe solo vive sendo discriminada, nem isso eu posso". Como desabafo de uma amiga frustrada, normal. Mas quem é a mente genial que resolve fazer disso uma reportagem?
Não falo aqui de opinião, coluna, blog, mas de reportagem nos principais jornalísticos do país. É a falência intelectual completa.
O labirinto mental do identitarismo (ou wokeísmo)
Entender o sistema de crenças que nos leva a esse nível de imbecilização é fundamental para que nós possamos reverter esse processo. Um dos pontos mais importantes é nunca ceder a nenhum capricho do identitarismo por mais besta e inofensivo que ele pareça. Pedir desculpas pelo que não fez, por exemplo, não adianta e não pacifica nenhuma situação.
Esse grupo vê tudo no mundo a partir da perspectiva de um grupo de opressores e outro de oprimidos, que muda conforme a situação. Não existe exatamente uma lógica. Preconceitos que realmente existem, como o racismo, serão submetidos a uma distorção completa. De repente, não dizer publicamente que uma frase de alguém é racista passa a ser racismo. Mesmo se a frase não for racista.
É um sistema de poder e controle por meio do bullying e do ataque em massa. O identitarismo é uma crença que cobre pessoas más com o manto da superioridade moral. Assim, elas podem cometer todas as perversidades com as quais sentem prazer sem peso na consciência e sem ônus social.
No caso específico, qual é o raciocínio? Uma pessoa que provavelmente não aprendeu a respeitar regras ou a ouvir não tentou uma gambiarra parental. Não deu certo, ela fica frustrada. E agora? Ali é praticamente um santuário do identitarismo, com linguagem neutra em todos os cantos, conversinha mole sobre inclusão entre drinks de R$ 90 e adoção completa da fluidez de gênero até para pets.
Não importa o quanto você ceda ao identitarismo, sempre poderá ser um alvo. E isso ocorre porque a sua adesão não modifica a realidade, apenas serve para assegurar a você que você tem superioridade moral. O Miúda é inclusivo ou não? Ninguém sabe porque a avaliação não depende de dados objetivos, como incluir pessoas ou não. Depende de usar gênero neutro, gostar de bicicleta, ter cabelo colorido, essas coisas.
Um grupo de pessoas pode escolher viver assim. O direito à alienação e à imbecilidade é universal e irrevogável. O problema é quando essa começa a ser a pauta do noticiário de grandes veículos nacionais. Esqueçam os fatos, vamos olhar quem é a minoria e contar a história de um jeito em que negar qualquer capricho da pessoa seja um ato de violência.
Quando vão chamar os adultos de volta para o jornalismo? Termino com uma frase de um anônimo que vi ontem no Twitter: "se 10 pessoas estão sentadas numa mesa de bar, chega uma criança e ninguém se levanta, há 11 crianças sentadas numa mesa de bar".
Madeleine Lacsko, colunista - Gazeta do Povo - VOZES