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quarta-feira, 5 de junho de 2019

Faoro e a Justiça Militar



Os casos de Salgueiro e Guadalupe mostram a dificuldade de separar a compreensão da tolerância

Em 1997, quando estava no forno a transferência dos processos de PMs para a Justiça Militar, Raymundo Faoro matou a questão com quatro palavras: “É um privilégio de impunidade”. Com seu senso de humor, acrescentou: “O presidente francês Georges Clemenceau dizia que a Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar para a música”. Clemenceau (1841-1919) era um mestre das palavras e chamavam-no de “O Tigre”. [a Justiça Militar se caracteriza pelo 'escabinato', em que são reunidos em prol da boa administração da Justiça =
-  os conhecimentos jurídicos, na 1ª Instância,  do juiz togado (juiz-auditor) e a experiencia da caserna que os integrantes militares do Conselho de Sentença possuem;
- na instância máxima da Justiça Militar, o Superior Tribunal Militar, são reunidos o conhecimento jurídico dos cinco ministros civis - que são: 3 advogados, um  juiz-auditor oriundo da JM de 1º grau e um promotor, do Ministério Público Militar - com a ampla experiência da caserna dos dez ministros militares, todos oficiais-generais, quatro estrelas: três almirante-de-esquadra, quatro general-de-exército e três tenente-brigadeiro-do-ar.]
Passou o tempo, virou o século, e os militares ganharam o foro de sua Justiça. O Ministério Público militar pediu o arquivamento do processo da Chacina do Salgueiro, ocorrida em 2017. Numa noite, oito pessoas foram mortas numa comunidade de São Gonçalo (RJ), e um sobrevivente diz que os tiros vieram de pessoas fardadas que estavam na mata. Esse cidadão prestou três depoimentos à polícia e ao MP estadual. A Procuradoria Militar não o chamou. [parentes dos mortos no confronto, foram os primeiros a declarar o envolvimento deles com o tráfico de drogas e a reação à ação das forças de segurança.
O que justifica considerar a palavra de um 'cidadão' mais valiosa do que a de vários militares envolvidos na operação?]

Noutro episódio, 11 cidadãos presos em agosto passado numa operação de combate ao tráfico de drogas na Penha disseram que foram torturados num quartel do Exército. Sete deles vão responder por tentativa de homicídio contra os militares. Três dizem que em dezembro foram ameaçados no presídio em que estão trancados. [estranho neste caso é que os cidadãos foram ouvidos em audiência de custódia e o juiz entendeu haver fundamento para permanecerem presos e os laudos médicos, realizados dias após os presos terem permanecidos na mesma cela (dando ensejo a que se lesionassem mutuamente, para sustentar a acusação de que foram torturados) não foram conclusivos quando a terem sido torturados.]

Há duas semanas, o Superior Tribunal Militar revogou a prisão dos nove militares que haviam sido presos por dispararem 83 tiros num carro que conduzia uma família, matando duas pessoas. Eles responderão ao processo em liberdade. Está entendido que atiraram porque achavam que no carro iam bandidos. (Houve um voto pela manutenção da prisão, outro para que continuasse preso o tenente que comandava a patrulha e dois para que o grupo cumprisse medidas cautelares.) [não foi contestada - com provas -  a versão dos militares de que o carro envolvido no incidente que resultou na morte de duas pessoas, era idêntico ao que horas antes havia sido roubado e que efetuou disparos contra uma patrulha do Exército;
tudo indica que faltou, lamentavelmente, ao músico - ao que consta,  pessoa de bem - que dirigia o veículo alvejado, a indispensável prudência  necessária quando um veículo é abordado por militares em área militar.
A imprudência do condutor, somada à suspeita devido o incidente anterior levou os militares a uma reação adequada, talvez, com algum exagero, o que concede uma margem de dúvida mais que suficiente para que os acusados aguardem julgamento em liberdade.]


Como disse o ministro-general Luis Carlos Gomes Mattos, “só a ação penal vai dizer o que aconteceu”: “Estamos julgando criminosos que saíram do quartel para dar tiros? Tenho certeza absoluta de que não foi assim.” Mesmo assim, deve-se ter certeza absoluta de que a patrulha tentou (e conseguiu) enganar seus comandantes por um dia, inventando uma cena de confronto. Cada um desses três casos tem a sua especificidade, mas o conjunto sugere um padrão: a dificuldade da Justiça Militar de delimitar a linha que separa a compreensão da tolerância. A ação de um soldado que tenha disparado sua arma em Guadalupe difere daquela do tenente que comandava a patrulha e teria dado 77 tiros. Além disso, sempre sobrará a questão do uso de tropas em ações policiais, pois a corda acaba arrebentando nas mãos de um jovem oficial, tenente, capitão ou, no máximo, um major.

Houve um tempo em que, apesar da advertência de juízes militares como Olympio Mourão Filho e Peri Bevilaqua, por diversos motivos, não se traçava a linha demarcatória e tolerava-se o intolerável. Cada caso tinha sua especificidade, e assim a coisa foi, até que em 1971 um capitão descobriu uma boca de fumo num quartel de Barra Mansa. Supliciaram 11 soldados, matando quatro. Fingiu-se que os jovens haviam desertado, e acobertou-se o caso, até que entraram na cena o bispo Dom Waldyr Calheiros e dois chefes militares, Antônio Carlos Muricy e Valter Pires de Carvalho. Como disse Muricy a Pires: “O Exército não deve ter medo de que uma coisa dessas aconteça. Deve ter medo é de acobertar.” [convenhamos que uma boca de fumo no interior de um quartel, representa desrespeito e grave acinte às FF AA.]

Um ano depois, o Exército admitiu os assassinatos e, em 1973, a Justiça Militar condenou o capitão a uma pena de 84 anos. Ele cumpriu onze e meio. O coronel que comandava o quartel ficou de fora. O tenente-coronel que o substituía nas férias e dirigiu o acobertamento teve uma pena de sete anos, reduzida para seis meses. Ele teria mandado cortar a cabeça de um dos mortos.