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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Como nasceram as narcomilícias

Numa manhã de agosto de 2011, dois policiais militares checavam uma denúncia contra a milícia de Curicica, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Sabiam que o suspeito chamava-se André, andava de Volkswagen Bora preto e parecia ser miliciano, pois o relatório dizia que ele mexia com caça-níqueis e segurança privada. No cruzamento de duas ruas movimentadas do bairro, cheia de lojas e bares, os dois avistaram um Bora preto, sem placas, estacionado na calçada de frente para a rua, igual fazem as viaturas da polícia. André Luiz Serralho se identificou como PM. Ao revistarem o carro dele, os policiais encontraram três armas "frias": uma pistola 9 milímetros, de uso restrito, outra calibre ponto 40 e um revólver 357 Magnum. Havia ainda cerca de 700 balas, 450 fichas de cobranças de cestas básicas com endereço de moradores e R$ 32 mil em dinheiro. Até aquele momento, tudo indicava coisa de miliciano mesmo.

Como muita gente já se aglomerava em volta, a equipe decidiu que o melhor seria ir à delegacia da Polícia Civil mais próxima. Lá revistaram o carro novamente. Acharam uma bolsa de viagem com 57 pacotinhos de plásticos cheios de cocaína, que pesaram 51 gramas. As embalagens continham a inscrição: "pó 20 C.V", a sigla do Comando Vermelho, maior facção do tráfico e até então considerada inimiga das milícias.  Serralho contou uma história estranha. Ele disse que recebera denúncia sobre movimentação do tráfico na favela do 15, localizada próxima. Resolveu ir ao local sozinho. Quando os traficantes o avistaram, correram deixando para trás as armas e a mochila com drogas. Serralho disse que pegou o material para levar à delegacia e só esperava um colega de farda chegar para ajudá-lo, quando então os policiais o prenderam. Podia ser um caso de "espólio de guerra", comum no Rio de Janeiro, em que policiais corruptos ficam com as drogas e armas de traficantes para revender. A diferença nesse caso é que havia grande suspeita de envolvimento de Serralho com milícias, cuja estratégia ao que se sabia era a de não tolerar a venda de drogas.


A situação inédita levou a Promotoria de Justiça, numa atitude rara, a denunciar Serralho e depois pedir absolvição dele por falta de provas. O juiz à frente do processo não aceitou o argumento. Condenou o policial a seis anos e três meses de prisão. Mais tarde, o Tribunal de Justiça abaixou a pena para cinco anos e seis meses.  As milícias apareceram como remédio contra o tráfico de drogas, que aliciava crianças e adolescentes para desespero dos pais. Também vendiam proteção ao bairro ou favela contra assaltantes, estupradores e outros tipos de criminosos. Com o tempo, apareceram as garras da extorsão dos milicianos, que tomavam conta do transporte público de vans e mototáxis, controlaram a venda do gás, o sinal da internet e a TV a cabo. Dominavam ainda até o comércio de cestas básica. Exigiam taxa de segurança contra seus próprios atos violentos. Pouca gente na polícia e no Ministério Público sabia, mas naquele ano de 2011 – quando houve a prisão de Serralho – os milicianos rompiam a última barreira. Eles fechavam acordo com os traficantes de drogas, até então os arqui-inimigos, principalmente os membros do Comando Vermelho.

ÉPOCA teve acesso ao documento do Ministério Público do Rio, de dezembro de 2011, que identificou o surgimento da nova organização criminosa. "Conforme dados de inteligência, milicianos estariam vendendo informações a Luiz Fernando da Costa em troca de assistência jurídica", diz o relatório. Primeiro preso federal do Brasil, Fernandinho Beira-Mar chefia o Comando Vermelho de dentro das penitenciárias de segurança máxima por onde passa. "Além de milicianos e advogados, um grupo de policiais corruptos e ex-policiais auxiliaria a rede mantida por Luiz Fernando, especialmente na facilitação da chegada de entorpecente ao Rio".

O documento mostra que não há separação ideológica entre as facções de milicianos e traficantes. "Apesar de pertencer ao colegiado de lideranças do CV, chefiando grupos de traficantes estabelecidos nas fronteiras do país, e aparentar não se relacionar com policiais (filosofia da facção), esta coordenadoria de Inteligência não descarta a hipótese de Fernandinho se aliar ou contratar milicianos para o cometimento de ações criminosas".
Serralho foi assassinado a tiros em frente à casa dele em Curicica, em agosto de 2016. Em outro caso importante, a polícia voltou a se deparar com milícia do bairro em outubro de 2017, quando houve a prisão do ex-policial acusado de chefiar o grupo. Orlando Oliveira de Araújo, mais conhecido por Orlando Curicica, é suspeito de envolvimento na execução da vereador Marielle Franco, morta com quatro tiros na cabeça em março passado. Atrás de alguma pista, os investigadores rastreiam as ligações e contatos do telefone celular de Orlando, apreendido no momento de sua prisão.

A suspeita de participação de milícias na morte de Marielle só indica que o grupo criminoso está cada vez mais forte e, pior, agora associado ao tráfico. É o que o livro Rio sem Lei, lançado em junho, chama de surgimento das "narcomilícias". A ousadia desse bando não tem limites. O delegado da Polícia Civil Alexandre Capote, personagem do livro, que combateu os milicianos, está com a cabeça a prêmio. Mesmo fora de atividade policial, trabalhando no Tribunal de Justiça, Capote precisa de escolta armada para sobreviver. Ele se tornou a única testemunha viva contra milicianos presos na Operação Capa Preta, que vem desde 2010. Juíza que atuou na investigação, Daniela Barbosa Assunção confirma no livro o florescimento dos narcomilicianos.

ÉPOCA publica abaixo trechos de Rio sem Lei que falam do surgimento da facção. Na obra, alguns nomes foram omitidos ou trocados por segurança dos autores, e também das testemunhas.
* * *
"Capítulo 15O surgimento das narcomilícias com a união de milicianos e traficantes"
No final de 2011, um relatório reservado do Ministério Público anunciava o impensável: o casamento entre duas facções outrora inimigas de sangue. A milícia e o tráfico fecharam um acordo com as bênçãos de seus respectivos chefes, os irmãos Minho e Lino e Fernandinho Beira-Mar. Pela parceria que estabeleceram, o Comando Vermelho pagaria advogados para os presos da Liga da Justiça. Em troca da ajuda, os traficantes receberiam a cooperação dos milicianos no esquema de venda de drogas em bairros e favelas cariocas.
Os chefes da milícia queriam assistência jurídica para deixar as penitenciárias federais o quanto antes. Eles desejavam cumprir o resto da pena em alguma cadeia do Rio de Janeiro. Nelas, estariam próximos não só da família, mas do território onde ainda causavam terror. Recluso em Campo Grande (MS), o genro de Minho sonhava com a transferência mais do que todos, segundo dizia o relatório do Ministério Público. Ele entrou em contato com advogados de Beira-Mar para executar o plano. Em 2008, o miliciano escapara facilmente de um cárcere fluminense, certamente a boa lembrança da fuga o animava a voltar. ..."


Rio sem Lei
Autores: Hudson Corrêa e Diana Brito
Geração Editorial
2018



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