“Pela natureza do animal político, digamos assim, como na fábula
do escorpião e o sapo, é ingenuidade não perceber que a gana de poder de
Bolsonaro é mais absolutista do que republicana”
A derrota acachapante dos partidos de esquerda na reforma da
Previdência, na qual obtiveram apenas 131 votos, é a repetição de duas
outras quedas históricas na Câmara: a votação do impeachment de Dilma
Rousseff e a aprovação do teto de gastos no governo Temer. Qualquer
estrategista político diria: tem algo errado aí! Ainda mais porque houve
uma mudança de rumo na opinião pública e o vento passou a soprar a
favor da reforma, inviabilizando tentativas de mobilizar trabalhadores e
corporações historicamente lideradas pelos partidos de esquerda para
barrar o texto. Ao olharmos o resultado das votações das emendas, que
resultaram numa lipoaspiração de R$ 150 bilhões em relação ao proposto
pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP), veremos que a esquerda somente
saiu do isolamento quando se uniu aos ruralistas e à bancada da bala
para barganhar a aprovação das emendas a favor do regime especial de
professores e do pessoal da segurança. Pode-se dizer que isso é “fazer
política”, mas não é a grande política no sentido da construção de
alternativa de poder. Muita água ainda vai rolar sob a ponte até as
eleições de 2022, mas as três derrotas da esquerda no Congresso
sinalizam o que pode vir a acontecer: a reeleição do presidente Jair
Bolsonaro.
Explico: o presidente da República, com suas atitudes, perdeu o amplo
apoio que obteve no segundo turno das eleições, mas entusiasma sua base
eleitoral com propostas de direita, com viés reacionário em matéria de
costumes. Bolsonaro mantém coerência com o discurso de campanha do
primeiro turno, como se nela permanecesse, principalmente nas redes
sociais. O caso da indicação do filho Eduardo para a embaixada em
Washington humilhou o Itamaraty [curioso: vários presidentes nomearam pessoas estranhas à carreira diplomática para o importante cargo de embaixador em Washington e não foi denunciado que o Itamaraty foi humilhado - só é possível pensar que o escarcéu se deve a nomeação ter sido feita pelo presidente JAIR BOLSONARO - eleito com quase 60.000.000 de votos e que pôs fim a roubalheira aos cofres públicos, vigente desde 2002.
Até banqueiro, Walther Moreira Salles, foi embaixador na capital dos EUA.] e chocou a opinião pública, mas é um
lance claro de que pretende estreitar sua aliança com Donald Trump e
transformar o filho num articulador internacional desse campo de forças
de direita. Provavelmente, tentará fazê-lo uma espécie de chanceler de
fato.
Em circunstâncias normais, as atitudes de Bolsonaro, com essa orientação
política assumidamente de direita, permitiriam a articulação de uma
ampla frente de forças políticas, unindo o centro democrático às forças
de esquerda. A oportunidade é generosa, se levarmos em conta que a
votação da reforma da Previdência rearticulou no Congresso as forças que
ficaram de fora da disputa do segundo turno com a derrota do
ex-governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB). Na Câmara, o
reagrupamento desses setores ocorreu sob a liderança do presidente da
Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ); fora do parlamento, porém, ainda é uma
incógnita. Está bloqueada pelo “Lula livre!” e a divisão do PSDB. O
governador João Doria (SP), apesar de aliado a Maia, também enfrenta
dificuldades para liderar esse bloco em razão do histórico isolamento de
São Paulo em relação aos demais estados. Além disso, seu discurso
modernizador mira uma alternativa de poder cuja viabilidade depende do
fracasso de Bolsonaro e não do resgate da centro-esquerda perante a
sociedade, deixando o campo livre para a velha política do PT.
Estorvo
É aí que Bolsonaro nada de braçada: divide o ônus da reforma com o
Congresso e fatura sozinho a agenda de direita, que lhe garante ao menos
um terço do eleitorado e um lugar cativo no segundo turno das eleições
de 2022. Alguns dirão, mas o PT faz a mesma coisa, com sua oposição
radical às reformas, o que preserva a sua base eleitoral e as alianças
históricas com o PDT, PSB e PSol. Essa é a tragédia. É tudo o que
Bolsonaro deseja como oposição à sua reeleição, impedindo o surgimento
de uma terceira via, digamos assim, mais democrática e moderada. A
estratégia petista aposta no fracasso de Bolsonaro, tanto quando a de
Doria, com a diferença de que o tucano tem a opção de se retirar da
disputa e buscar a reeleição ao Bandeirantes.
Há uma enorme diferença entre um governo de direita num regime
democrático, com um projeto reacionário que não empolga a sociedade e
acaba mitigado pelas instituições democráticas; e um governo populista
autoritário, que atropela as instituições democráticas, porque seu
projeto de modernização tem adesão da sociedade e apresenta bons
resultados. Pela natureza do animal político, digamos assim, como na
fábula do escorpião e o sapo, é ingenuidade não perceber que a gana de
poder de Bolsonaro é mais absolutista do que republicana. É aí que mora o perigo da política do PT, cujo eixo continua sendo o
“Lula livre!” e zero autocrítica em relação aos escândalos do mensalão e
da Petrobras. O ex-presidente Lula e seu grupo político nunca se
preocuparam com a estabilidade do processo democrático, nem mesmo na
transição à democracia. Essa postura foi um estorvo para a aprovação da
anistia, para a eleição de Tancredo Neves e a consolidação da
democracia, mas não era um fator decisivo, porque havia um amplo
espectro de forças políticas que sustentavam o Estado de direito
democrático, com respaldo da sociedade.
Entretanto, não existia uma direita organizada no país, a velha direita
havia sido liquidada pelos próprios militares. Agora há. Tudo bem, o
centro político, apesar de derrotado nas eleições e sem poder de
mobilização popular, exerce o papel de sempre como garantidor da
democracia, entrincheirado no Congresso. Hoje, isso é suficiente para
garantir o calendário eleitoral e o funcionamento das instituições sob
ataque permanente dos partidários de Bolsonaro nas redes sociais, como
acontece com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. [a facilidade de comunicação permite que erros sejam denunciados:
- erra um Congresso que coloca uma categoria dos seus servidores - policiais legislativos que não trabalham em funções policiais - entre os que aposentarão mais cedo;
- erra um Supremo que em um país com mais de 13.000.00 de desempregado, por baixo 40.000.000 de brasileiros na penúria, gasta milhões com iguarias para banquetes - incluindo lagosta na manteiga, bebidas de safras especiais.
As denúncias são feitas por existir o que é denunciado.] Mas, e depois,
quando Bolsonaro estiver bafejado pela recuperação da economia e
embalado por uma proposta de reforma política cujo objetivo será
fortalecer o Executivo em relação aos demais poderes, como na Rússia, na
Turquia e na Hungria?
Luiz Carlos Azedo, jornalista