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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O arbítrio judicial se espalha e mãe de assassinado é presa em audiência - Deltan Dallagnol

Gazeta do Povo - VOZES

Justiça, política e fé

STF 8 de janeiro

Plenário do STF.| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Dois casos recentes que viralizaram nas redes sociais explicam, de maneira clara, o descrédito atual da população com o Poder Judiciário. Ambos os casos retratam, de maneira fria e crua, como uma instituição que deveria entregar justiça aos cidadãos tem, em vez disso, aplicado a lógica do autoritarismo e do arbítrio que é característica dos donos do poder, ao esmagar e subjugar os fracos e os pequenos enquanto blinda, protege e premia com a impunidade ricos, poderosos e criminosos.

O primeiro caso é o vídeo de uma mãe que, durante uma audiência de instrução sobre o assassinato de seu filho, recebe voz de prisão do juiz. Tudo começou quando a promotora do caso perguntou à cabeleireira Sylvia Mirian Tolentino de Oliveira, a mãe da vítima, se ela estava confortável em prestar depoimento na frente do réu.  
O homem acusado de matar o filho de Sylvia estava a poucos metros dela e aquela era a primeira audiência 7 anos depois do crime.

A escalada do arbítrio judicial “em nome da democracia” corrói a fé na própria democracia e tende a produzir exatamente o STF afirma que pretende evitar: governantes autoritários.

Em resposta, a mãe da vítima demonstrou coragem e afirmou que não tinha problema. “Por mim ele pode ficar aí, pra mim ele não é ninguém”, responde Sylvia. Imediatamente, o advogado do réu começou a exigir que Sylvia tivesse “respeito” pelo réu. 
A promotora avisou o juiz: “Excelência, é uma vítima enlutada”. 
Mas o juiz, do alto de seu altar, deu razão ao advogado do réu e pediu a Sylvia respeito, que mantivesse a serenidade e tivesse inteligência emocional.

O juiz, autointitulado professor de inteligência emocional, mas não se sabe bem onde a (des)aprendeu, continuou a repreender a mãe, e a promotora protestou: “Não, não, Excelência, eu gostaria que a vítima pudesse se manifestar. A vítima e seus familiares têm direito à informação, ela tem direito a ser ouvida, ela tem direito a ser acolhida pela Justiça, é só isso. Deixa ela falar, eu só gostaria que ela falasse o que aconteceu”.

Não é à toa que o Poder Judiciário é a instituição que mais perde prestígio, confiança e credibilidade perante a população.

Seguiu-se uma confusão, com o juiz aparentemente repreendendo ainda mais a mãe com um tom exaltado de voz, em mais uma bela lição de sua suposta inteligência emocional, a mesma que exigiu da mãe enlutada (!), enquanto a promotora continuou a protestar. 
Sylvia então se levantou, jogou um plástico que segurava fora e disse ao réu: “Da Justiça dos homens você escapou, mas da Justiça de Deus não escapa”.
 
E foi nesse momento que o juiz deu voz de prisão à Sylvia. Isso mesmo, você leu corretamente. Deu voz de prisão. Para a vítima. Não para o réu, que seguia sem punição 7 anos depois do crime. 
Ao comentar o caso mais tarde, Sylvia explicou como se sentiu: “Me senti muito humilhada e caluniada. Eu estava ali só pela justiça do meu filho. Você chega na frente de um juiz, de uma autoridade que é estudada para isso, para poder te defender, mas você é julgada por uma coisa que não fez. Você recebe voz de prisão”.
Segundo Sylvia, ela jamais imaginou que poderia sair presa da audiência de instrução do homicida de seu filho – pelo contrário, ela achava que, na frente do juiz, seria ouvida, acolhida e defendida. 
Sylvia acreditava que o Poder Judiciário seria um local seguro para ela se expressar e onde poderia falar sem ser interrompida. “Eu espero que a justiça seja feita, porque não teve justiça de lado nenhum. Eu espero também que o doutor juiz, que ele reconheça que ele errou. Ele errou comigo. Eu não deveria ser presa, isso me dói muito porque eu fiquei com muita vergonha. Eu fiquei com vergonha. Eu fiquei triste. Eu fiquei magoada. Porque era pra ele me defender. Eu estava ali na esperança de que ele me defendesse. E ele não me defendeu. Ele não me defendeu”, concluiu Sylvia, com a voz embargada e lágrimas escorrendo pelo rosto.
 
A história já é demais revoltante, mas piora, ela beira o inacreditável. Em vez de reconhecer o erro, o juiz disse que irá representar Sylvia por crime contra a honra. 
A mãe enlutada não apenas não recebeu justiça pela morte do filho. 
Em cima da injustiça praticada contra sua família por um criminoso, veio uma segunda e uma terceira injustiças: a do Estado, pelas mãos do próprio juiz, primeiro com a prisão e depois com uma investigação e possível punição por crime contra a honra.

No Brasil, o mau exemplo sempre veio de cima: abusos, arbitrariedades, corrupção e ilegalidades. Se os ministros do STF podem, por que os demais juízes não?

No segundo caso, um desembargador do Tribunal Regional Federal do Trabalho da 8ª Região cassou a palavra de um advogado enquanto ele utilizava a tribuna para defender o seu cliente, dizendo: “Agora não vai se manifestar. Antes a democracia daqui do que a do Hamas, mas, se quiser, a gente adota a do Hamas também”, disse o desembargador. 
Esse mesmo magistrado já havia viralizado poucos dias antes com uma outra polêmica: ele negou um pedido de adiamento de audiência que uma advogada fez em razão de ela estar entrando em trabalho de parto. 
O desembargador respondeu grosseiramente: “Gravidez não é doença. Adquire-se por gosto”.
 
Em ambos os casos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou a abertura de reclamações disciplinares para apurar as condutas dos magistrados. Mas não parece suficiente, porque não é. 
Continuaremos a assistir casos e mais casos de abuso judicial enquanto o maior abuso judicial de todos estiver acontecendo: aquele em curso atualmente no Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário.
 
Casos como a prisão da Sylvia ou a grosseria do desembargador são apenas sintomas de um mal maior, que vem de cima, e que tem irradiado Supremo abaixo para toda a hierarquia do Poder Judiciário como uma enchente que devasta a terra após a abertura de uma barragem. No Brasil, o mau exemplo sempre veio de cima: abusos, arbitrariedades, corrupção e ilegalidades. 
Se os ministros do STF podem, por que os demais juízes não?

O descrédito do Poder Judiciário continuará a aumentar e a crescer ano após ano a não ser que reformas profundas sejam feitas no STF e em nosso sistema de Justiça.

Não basta o Judiciário brasileiro ser o mais caro do mundo (custando 1,5% do PIB quando na OCDE a média é 0,5%) e ser um dos mais inefetivos (a Justiça Criminal brasileira é a oitava mais inefetiva segundo o World Justice Project)
Nos últimos meses, temos visto exemplos de perseguição e punição de adversários políticos do governo, de agentes que lutaram contra a corrupção, incomodando poderosos, e até mesmo – pasmem! – das vítimas dos crimes. 
Não é à toa que o Poder Judiciário é a instituição que mais perde prestígio, confiança e credibilidade perante a população. 
Num dos levantamentos mais recentes, a pesquisa A Cara da Democracia, publicada em setembro deste ano pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT), observa-se que 36% dos brasileiros não confiam nem um pouco no STF, percentual que no levantamento anterior, de um ano atrás, era de 32%.
 
Se somarmos os 20% que confiam mais ou menos no STF, assim como os 15% que confiam pouco, os números indicam que pelo menos 67% dos brasileiros não conseguem ter plena confiança no Supremo, o que é um vexame para a Corte – uma verdadeira medalha de descrédito. 
A avaliação da Justiça Eleitoral, representada pelo TSE, braço eleitoral do Supremo, não é diferente: 31% não confiam nem um pouco na Justiça Eleitoral, enquanto que 14% confiam pouco e 30% confiam mais ou menos.
O descrédito do Poder Judiciário continuará a aumentar e a crescer ano após ano a não ser que reformas profundas sejam feitas no STF e em nosso sistema de Justiça, tanto pela própria Corte quanto pelo Congresso Nacional, que parece ter acordado, recentemente, para a escalada inaceitável dos arbítrios e desequilíbrio entre Poderes. 
Os donos do poder que corroem por dentro a nossa democracia fariam bem em lembrar uma anedota do regime militar que traz preciosa lição. Antes da assinatura do AI-5, decreto ditatorial que restringia direitos fundamentais, o vice-presidente Pedro Aleixo se virou para o general Costa e Silva, que na época era presidente da República, e explicou por quais motivos ele se recusava a assinar o AI-5. “Não é o presidente que eu temo, mas, quando o arbítrio e o autoritarismo se instalam no topo da cadeia, eles descem em cascata até o guarda da esquina, e a esse eu temo. Então, não assino”. 
A diferença é que, no cenário atual, o STF é que é temido por parcela relevante da população. 
E o arbítrio é contagiante.
 
Ironicamente, a escalada do arbítrio judicial “em nome da democracia” corrói a fé na própria democracia e tende a produzir exatamente o STF afirma que pretende evitar: governantes autoritários que prometem colocar o STF no seu lugar. 
O tribunal está se colocando como um problema cada vez maior e os tempos produzirão soluções. 
Que não seja tarde demais para encontrarmos soluções verdadeiramente democráticas.
 
Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
 
Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School  - coluna Gazeta do Povo - VOZES 
 

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

“Rastros de ódio” e outras notas de Carlos Brickmann

Bolsonaro venceu as eleições num clima tenso, em que sofreu até um atentado que por pouco não o matam, mas ainda está com retórica eleitoral


Ao assinar o Ato Institucional nº 5, a mais sinistra norma da ditadura que hoje dizem que não houve, o vice-presidente Pedro Aleixo alertou para o risco da concentração de poder. Perguntaram-lhe se não confiava no presidente Costa e Silva. Aleixo: “Tenho medo é do guarda da esquina”.

Bolsonaro venceu as eleições num clima tenso, em que sofreu até um atentado que por pouco não o mata. Ainda está com retórica eleitoral, diz que vai cortar as verbas oficiais de órgãos de imprensa que mentirem ─ em vez de processá-los na forma da lei. Mas tem seus guardas de esquina, que adoram radicalismo: agora, querem boicotar 700 pessoas, entre as quais numerosos artistas, pelo crime de terem se manifestado pelo PT. 

Cada cidadão é livre para assistir ou não aos espetáculos artísticos. Se resolver desistir de algumas obras-primas de Chico Buarque por seu apoio a Cuba, que desista nada contra. Mas mover uma campanha para boicotar quem optou por outro candidato não é liberdade: é crime, dá processo, mesmo que a veiculação seja apenas pelo WhatsApp. E é coisa velha que já provou seu desvalor: nos Estados Unidos, ocorreu no início da década de 1950, e se chamou macarthismo lembrando o nome do senador Joseph McCarthy, que comandou a campanha. Hoje, sabe-se: foi coisa de idiota.
O macarthismo não partiu de Bolsonaro. Mas ele é que precisa dizer a seus adeptos sinceros, porém radicais, que assim não dá para liderar o país.

Velhas histórias
Na década de 1930, Alemanha e Itália fizeram campanha de boicote aos judeus na Europa (que depois virou massacre). Cientistas como Enrico Fermi, Albert Einstein, Leo Szilard, Hans Bethe, Edward Teller migraram para os Estados Unidos. E foram parte essencial do Projeto Manhattan, que construiu as primeiras bombas atômicas. Os artistas perseguidos na Europa ajudaram a transformar Hollywood na capital mundial do cinema.

Assim é difícil
A crise é brava, o desemprego é alto, e é hora de pensar, como Juscelino Kubitschek pensou, em pacificar o país. Haddad se veste bem, mas não teve gentileza suficiente para reconhecer a derrota e desejar boa sorte ao vitorioso (só se manifestou no dia seguinte, e não de viva voz: só Twitter). O Movimento dos Sem-Teto já invadiu a casa onde morava o empresário Georges Gazale, em São Paulo. Guilherme Boulos, do MTST, promete resistir e a resistência começa nesta semana, embora Bolsonaro só tome posse em janeiro. É uma política de confronto. A população fica no meio.

E uma deputada do PSL de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, sugere a universitários que espionem os professores, até gravando a aula, para denunciá-los. Mas desta o Ministério Público já está cuidando.

(...)
Guerra à imprensa
Bolsonaro acusa a Folha de S.Paulo de mentir e ameaça cortar as verbas públicas de publicidade para os veículos de comunicação que mentirem. E quem verifica a mentira? Dias antes de sua morte, ainda havia prognósticos favoráveis a respeito da saúde de Tancredo Neves, desmentindo as noticias dos jornais e eram os jornais que estavam certos, falando a verdade.

É bobagem declarar guerra à imprensa: quem aniquila um veículo não é o Governo, são seus leitores, ouvintes, espectadores. Estar em guerra com ela não faz com que deixe de publicar as notícias que apurar. É importante lembrar que toda imprensa é de oposição. Se a imprensa só divulga notícias a favor do Governo, não se chama imprensa: seu nome é propaganda.

  Novo líder
Preste atenção em Ciro Gomes, PDT. Perdeu as eleições, mas tanto ele quanto sua vice, Kátia Abreu, cresceram na campanha. Ciro está disposto a liderar a oposição a Bolsonaro, sem ligação com Lula. Parece disposto a fazer oposição de verdade, não oposição para impedir o país de funcionar.

Publicado na Coluna de Carlos Brickmann