Plenário do STF.| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Dois casos recentes que viralizaram nas redes sociais explicam, de maneira clara, o descrédito atual da população com o Poder Judiciário.
Ambos os casos retratam, de maneira fria e crua, como uma instituição
que deveria entregar justiça aos cidadãos tem, em vez disso, aplicado a
lógica do autoritarismo e do arbítrio que é característica dos donos do
poder, ao esmagar e subjugar os fracos e os pequenos enquanto blinda,
protege e premia com a impunidade ricos, poderosos e criminosos.
O primeiro caso é o vídeo de uma mãe que, durante uma audiência de instrução sobre o assassinato de seu filho,
recebe voz de prisão do juiz.
Tudo começou quando a
promotora do caso perguntou à cabeleireira Sylvia
Mirian Tolentino de Oliveira,
a mãe da vítima, se ela estava
confortável em prestar depoimento na frente do réu. O homem acusado de
matar o filho de Sylvia estava a poucos metros dela e aquela era a
primeira audiência 7 anos depois do crime.
A
escalada do arbítrio judicial “em nome da democracia” corrói a fé na
própria democracia e tende a produzir exatamente o STF afirma que
pretende evitar: governantes autoritários.
Em
resposta, a mãe da vítima demonstrou coragem e afirmou que não tinha
problema. “Por mim ele pode ficar aí, pra mim ele não é ninguém”,
responde Sylvia. Imediatamente, o advogado do réu começou a exigir que
Sylvia tivesse “respeito” pelo réu.
A promotora avisou o juiz:
“Excelência, é uma vítima enlutada”.
Mas o juiz, do alto de seu altar,
deu razão ao advogado do réu e pediu a Sylvia respeito, que mantivesse a
serenidade e tivesse inteligência emocional.
O
juiz, autointitulado professor de inteligência emocional, mas não se
sabe bem onde a (des)aprendeu, continuou a repreender a mãe, e a
promotora protestou: “Não, não, Excelência, eu gostaria que a vítima
pudesse se manifestar. A vítima e seus familiares têm direito à
informação, ela tem direito a ser ouvida, ela tem direito a ser acolhida
pela Justiça, é só isso. Deixa ela falar, eu só gostaria que ela
falasse o que aconteceu”.
Não é à toa que o Poder Judiciário é a instituição que mais perde prestígio, confiança e credibilidade perante a população.
Seguiu-se uma confusão, com o juiz aparentemente repreendendo
ainda mais a mãe com um tom exaltado de voz, em mais uma bela lição de sua
suposta inteligência emocional, a mesma que exigiu da mãe enlutada (!),
enquanto a promotora continuou a protestar.
Sylvia então se levantou, jogou um
plástico que segurava fora e disse ao réu: “Da Justiça dos homens você escapou,
mas da Justiça de Deus não escapa”.
E foi nesse
momento que o juiz deu voz de prisão à Sylvia. Isso mesmo, você leu
corretamente. Deu voz de prisão. Para a vítima. Não para o réu, que
seguia sem punição 7 anos depois do crime.
Ao comentar o caso mais
tarde, Sylvia explicou como se sentiu: “Me senti muito humilhada e
caluniada. Eu estava ali só pela justiça do meu filho. Você chega na
frente de um juiz, de uma autoridade que é estudada para isso, para
poder te defender, mas você é julgada por uma coisa que não fez. Você
recebe voz de prisão”.
Segundo
Sylvia, ela jamais imaginou que poderia sair presa da audiência de
instrução do homicida de seu filho – pelo contrário, ela achava que, na
frente do juiz, seria ouvida, acolhida e defendida.
Sylvia acreditava
que o Poder Judiciário seria um local seguro para ela se expressar e
onde poderia falar sem ser interrompida. “Eu espero que a justiça seja
feita, porque não teve justiça de lado nenhum. Eu espero também que o
doutor juiz, que ele reconheça que ele errou. Ele errou comigo. Eu não
deveria ser presa, isso me dói muito porque eu fiquei com muita
vergonha. Eu fiquei com vergonha. Eu fiquei triste. Eu fiquei magoada.
Porque era pra ele me defender. Eu estava ali na esperança de que ele me
defendesse. E ele não me defendeu. Ele não me defendeu”, concluiu
Sylvia, com a voz embargada e lágrimas escorrendo pelo rosto.
A
história já é demais revoltante, mas piora, ela beira o inacreditável.
Em vez de reconhecer o erro, o juiz disse que irá representar Sylvia por
crime contra a honra.
A mãe enlutada não apenas não recebeu justiça
pela morte do filho.
Em cima da injustiça praticada contra sua família
por um criminoso, veio uma segunda e uma terceira injustiças: a do
Estado, pelas mãos do próprio juiz, primeiro com a prisão e depois com
uma investigação e possível punição por crime contra a honra.
No
Brasil, o mau exemplo sempre veio de cima: abusos, arbitrariedades,
corrupção e ilegalidades. Se os ministros do STF podem, por que os
demais juízes não?
No
segundo caso, um desembargador do Tribunal Regional Federal do Trabalho
da 8ª Região cassou a palavra de um advogado enquanto ele utilizava a
tribuna para defender o seu cliente, dizendo: “Agora não vai se
manifestar. Antes a democracia daqui do que a do Hamas, mas, se quiser, a
gente adota a do Hamas também”, disse o desembargador.
Esse mesmo
magistrado já havia viralizado poucos dias antes com
uma outra polêmica: ele negou um pedido de adiamento de audiência que
uma
advogada fez em razão de ela estar entrando em trabalho de parto.
O
desembargador respondeu grosseiramente: “Gravidez não é doença.
Adquire-se por
gosto”.
Em ambos os casos, o
Conselho Nacional de Justiça
(CNJ)
anunciou a abertura de reclamações disciplinares para apurar as
condutas dos magistrados. Mas não parece suficiente, porque não é.
Continuaremos a assistir casos e mais casos de abuso judicial
enquanto o
maior abuso judicial de todos estiver acontecendo: aquele em curso
atualmente no Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário.
Casos
como a prisão da Sylvia ou a grosseria do desembargador são apenas
sintomas de um mal maior, que vem de cima, e que tem irradiado Supremo
abaixo para toda a hierarquia do Poder Judiciário como uma enchente que
devasta a terra após a abertura de uma barragem. No Brasil, o mau
exemplo sempre veio de cima: abusos, arbitrariedades, corrupção e
ilegalidades.
Se os ministros do STF podem, por que os demais juízes
não?
O descrédito do
Poder Judiciário continuará a aumentar e a crescer ano após ano a não
ser que reformas profundas sejam feitas no STF e em nosso sistema de
Justiça.
Não
basta o Judiciário brasileiro ser o mais caro do mundo (custando 1,5%
do PIB quando na OCDE a média é 0,5%) e ser um dos mais inefetivos (a
Justiça Criminal brasileira é a oitava mais inefetiva segundo o World
Justice Project).
Nos últimos meses, temos visto exemplos de perseguição
e punição de adversários políticos do governo, de agentes que lutaram
contra a corrupção, incomodando poderosos, e até mesmo – pasmem! – das
vítimas dos crimes.
Não é à toa que o Poder Judiciário é a instituição
que mais perde prestígio, confiança e credibilidade perante a população.
Num dos levantamentos mais recentes, a pesquisa A Cara da Democracia,
publicada em setembro deste ano pelo Instituto da Democracia
(IDDC-INCT), observa-se que 36% dos brasileiros não confiam nem um pouco
no STF, percentual que no levantamento anterior, de um ano atrás, era
de 32%.
Se somarmos os 20% que confiam mais ou menos
no STF, assim como os 15% que confiam pouco, os números indicam que pelo
menos 67% dos brasileiros não conseguem ter plena confiança no Supremo,
o que é um vexame para a Corte – uma verdadeira medalha de descrédito.
A
avaliação da Justiça Eleitoral, representada pelo TSE,
braço eleitoral do Supremo,
não é diferente: 31% não confiam nem um
pouco na Justiça Eleitoral, enquanto que
14% confiam pouco e
30% confiam
mais ou menos. O
descrédito do Poder Judiciário continuará a aumentar e a crescer ano
após ano a não ser que reformas profundas sejam feitas no STF e em nosso
sistema de Justiça, tanto pela própria Corte quanto pelo
Congresso Nacional,
que parece ter acordado, recentemente, para a escalada inaceitável dos
arbítrios e desequilíbrio entre Poderes.
Os donos do poder que corroem
por dentro a nossa democracia fariam bem em lembrar uma anedota do
regime militar que traz preciosa lição. Antes da assinatura do AI-5,
decreto ditatorial que restringia direitos fundamentais, o
vice-presidente Pedro Aleixo se virou para o general Costa e Silva, que
na época era presidente da República, e explicou por quais motivos ele
se recusava a assinar o AI-5. “Não é o presidente que eu temo, mas, quando o arbítrio e o
autoritarismo se instalam no topo da cadeia, eles descem em cascata até o
guarda da esquina, e a esse eu temo. Então, não assino”.
A diferença é que, no
cenário atual, o STF é que é temido por parcela relevante da população.
E o
arbítrio é contagiante.
Ironicamente, a escalada do
arbítrio judicial “em nome da democracia” corrói a fé na própria
democracia e tende a produzir exatamente o STF afirma que pretende
evitar: governantes autoritários que prometem colocar o STF no seu
lugar.
O tribunal está se colocando como um problema cada vez maior e os
tempos produzirão soluções.
Que não seja tarde demais para encontrarmos
soluções verdadeiramente democráticas.
Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School - coluna Gazeta do Povo - VOZES
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