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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Benefícios repulsivos - Além do seu pagamento ser imoral, o auxílio-alimentação e o auxílio-transporte dão margem a outro expediente que vem sendo utilizado em larga escala pela magistratura para aumentar seus vencimentos líquidos

Magistrados que juraram cumprir a Constituição quando entraram para Judiciário recorrem a subterfúgios para contornar as determinações desse texto legal

Insensíveis à crise orçamentária do Estado e insaciáveis na tentativa de aumentar salários e multiplicar penduricalhos à custa dos contribuintes, vários tribunais não estão medindo esforços para criar novos penduricalhos. A ideia é repor as perdas financeiras causadas em seus holerites pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender o pagamento indiscriminado do auxílio-moradia a toda a magistratura, limitando-o apenas aos juízes que tiverem de atuar fora da comarca de origem e que não têm casa própria no local ou residência oficial à disposição.

Uma dessas cortes é o Tribunal de Justiça do Maranhão, cujos juízes e desembargadores foram autorizados pelo corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, que também é ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a receber R$ 3.546 por mês, a título de auxílio-alimentação. Esse penduricalho foi criado por lei estadual aprovada há 11 anos pela Assembleia Legislativa, com o valor de R$ 726 mensais. Apesar da imoralidade do benefício, a corporação justificou o aumento de quase 500% em nome do princípio da isonomia, uma vez que os promotores e procuradores do Ministério Público estadual já vinham recebendo R$ 3.546 de auxílio-alimentação.

O antecessor de Humberto Martins na chefia da Corregedoria Nacional de Justiça, ministro João Otávio Noronha, havia vetado esse aumento, mantendo-o em R$ 726. Todavia, sob a justificativa de que a Corregedoria Nacional de Justiça não pode interferir na autonomia administrativa e financeira dos tribunais, Martins autorizou sua elevação. Independentemente das limitações orçamentárias da corte, os beneficiários querem que os novos valores comecem a ser pagos em janeiro. A estimativa é de que o aumento custará cerca de R$ 11 milhões por ano para os contribuintes maranhenses.

Na mesma semana e na mesma linha do Tribunal de Justiça do Maranhão, o Tribunal de Justiça do Estado do Acre fixou o valor do auxílio-alimentação de seus juízes e desembargadores em 10% de seus vencimentos. Outra corte envolvida na criação de penduricalhos é o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, cujos membros pressionaram a Assembleia Legislativa a aprovar projeto que instituiu o auxílio-transporte no valor de até R$ 7,2 mil. Esse valor equivale a 20% dos vencimentos da magistratura estadual. Como a lei ainda precisa ser sancionada, os juízes e desembargadores de Mato Grosso do Sul agora estão pressionando o governador Reinaldo Azambuja, que foi reeleito no pleito de outubro. Pelo preço da gasolina no Estado, se Azambuja ceder, cada magistrado poderá comprar cerca de 10,5 mil litros por mês. Esse auxílio é tão absurdo que o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, determinou a abertura de um procedimento para apurar o caso e anunciou que não permitirá sua concessão.

Além de seu pagamento ser imoral, o auxílio-alimentação e o auxílio-transporte dão margem a outro expediente que vem sendo usado em larga escala pela magistratura para aumentar seus vencimentos líquidos. Alegando que esses dois penduricalhos têm o que chamam de “natureza indenizatória”, não constituindo remuneração e sendo pagos sob a justificativa de que são essenciais às “condições funcionais de trabalho” de juízes e desembargadores, seus valores não são levados em conta nem para o cálculo do Imposto de Renda nem para o cálculo do teto do funcionalismo público.

Ou seja, os magistrados que juraram cumprir a Constituição quando entraram para o Poder Judiciário recorrem a subterfúgios para contornar as determinações desse texto legal e não terem, desse modo, de arcar com as obrigações que atingem todos os cidadãos prestantes do País. Por meio de suas associações corporativas, a magistratura – que sempre esteve entre as categorias mais bem remuneradas da administração pública – justifica seus privilégios em nome da “dignidade do cargo”. O argumento é risível, pois quanto mais a corporação é beneficiada por penduricalhos, menor é sua autoridade moral e mais comprometida é sua credibilidade.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Estereótipos e privilégios

Os servidores públicos tornaram-se objeto do ódio invejoso de uma nação em crise

Por inércia, a opinião pública vai-se habituando a chamar de “privilégio” a aposentadoria do servidor público, enquanto, de outra parte, dedica o mais reverencial silêncio às dinheiramas que são transmitidas por herança, praticamente livres de impostos, aos descendentes dos milionários. Se os filhos de ricos não são os maiores privilegiados deste país, os mais protegidos pela estrutura que pereniza a desigualdade, quem, então, é o privilegiado? Um professor que leciona e pesquisa por 30 ou 40 anos para depois se aposentar com proventos à altura do salário? O que dizer de quem herda bilhões sem nunca ter trabalhado, pagando uma ninharia de imposto?

Privilégio? Tomemos cuidado com as palavras. Elas são signos ideológicos, ensinava Bakhtin. Todas as palavras. Exemplos não faltam. Quando chamamos de “vândalos”, “baderneiros” ou “criminosos” os mascarados que atiram pedras nas vitrines no calor das manifestações de rua no Brasil, enquanto, de outra parte, chamamos de “jovens rebeldes” os também mascarados que praticam os mesmíssimos atos nos protestos em Caracas, quem fala em nossa fala é a ideologia, e nós não nos damos conta (a ideologia tem disso: ou é inconsciente, ou não é ideologia).

Cuidado com as palavras. Uma trama de escolhas se esconde sob a superfície do léxico e o falante fala sem saber o que fala. A vida é assim. Há quase um século, o jornalista Walter Lippmann fez o diagnóstico preciso: nós nos comunicamos por estereótipos, que funcionam como rótulos simplificadores, mais ou menos como caricaturas, pelos quais a língua vai definindo as coisas de forma rasa, opaca, chapada e altamente eficiente. Palavras como “folião”, “torcedor”, “evangélico” e “sem-teto” são estereótipos. Servem para resumir os tipos humanos. Ao mesmo tempo, reduzem e apequenam a descrição desses mesmos tipos humanos. Não há como ler o mundo sem a ajuda dos estereótipos, mas, ao mesmo tempo, quem vê o mundo pela lente dos estereótipos, e só por ela, perde de vista as contradições que estão por baixo da superfície, ou seja, perde a visão do todo.

Agora um novo estereótipo vem sendo martelado nos meios de comunicação para enxovalhar o funcionário público. As palavras “privilégio” e “privilegiado” são os alicerces de uma campanha de desmoralização do funcionalismo. A campanha é oficial. Trata-se de uma ação deliberada de ninguém menos que o governo federal. Isso mesmo: os servidores brasileiros são caluniados pelos seus superiores hierárquicos (os governantes). Estamos diante de uma infâmia.

Sabemos todos que reformar a Previdência é uma agenda inadiável e imprescindível. Ninguém de posse da razão deixará de reconhecer essa verdade. O problema está, mais do que nas propostas mal costuradas, na propaganda insidiosa pela qual o governo alega defender a causa da reforma. O discurso oficial – endossado, estimulado, emulado e patrocinado por amplos setores do capital e da sociedade civil escalou para o papel de vilão os funcionários públicos, que aparecem na foto como os causadores da “conta que não fecha”. Segundo a campanha, é preciso acabar com os “privilégios” que travam o desenvolvimento do Brasil. Não, o governo e seu coro não se estão referindo aos faraós do nosso crony capitalism de abadá, nem às celebridades hiperempreendedoras viciadas nas mamadeiras do BNDES. Para o governo, “privilegiados” são os que fizeram carreira no serviço público e se aposentaram.

Temos, enfim, que o funcionalismo é o novo vilão nacional. Mas que vilão é esse? São brasileiros comuns, que sobrevivem medianamente e um dia acreditaram na promessa do Estado de que, se topassem trabalhar recebendo proventos limitados, sem os altos benefícios e os bônus elevados que podem ser alcançados na iniciativa privada, teriam, no final da vida, uma aposentadoria digna. Agora, o mesmo Estado, que antes pedia renúncias no presente em nome da segurança futura, o mesmo Estado que afirmava, com base na lei, que a aposentadoria um pouco melhor era um direito, passa a estereotipar seus servidores como “privilegiados”.

Isso não está certo. Por mais que existam distorções algumas aviltantes – nos holerites do funcionalismo, essa generalização não é justa. Em nome do respeito humano e da honestidade intelectual, temos o dever de questionar os bordões dessa campanha. O governo federal, secundado por seus corneteiros, que orientam, reverberam ou multiplicam a campanha, está conseguindo pregar na testa dos servidores o rótulo de sanguessugas, aproveitadores, parasitas; está conseguindo substituir o velho estereótipo do funcionário público, que já era muito ruim – o estereótipo do “barnabé”, do incompetente, do acomodado –, pelo novo estereótipo de chupim endinheirado. Chegamos, com isso, ao arremate caprichoso de um processo industrial de fabricação de estereótipos que consagrou uma certa ideologia – ela mesma um estereótipo obtuso que só vê o Estado como fator de atraso e só vê virtude no mercado sem lei.

Ninguém aqui vai negar que o serviço público acomoda rapinagens inaceitáveis, como essa gambiarra criptojurídica, mal disfarçada sob a rubrica esperta de “auxílios” (auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-isso, auxílio-aquilo), cujo propósito é burlar o teto constitucional. Essas distorções têm de acabar, é claro. Mas essa campanha corrosiva não quer acabar com as distorções. O propósito dela é outro: ela quer acabar com a respeitabilidade do servidor público no Brasil. Para quê? Talvez para esconder a real responsabilidade pelo rombo que aí está, responsabilidade que é dos governos e dos legisladores, sempre omissos, e não do funcionalismo.

E o truque está dando certo. Por obra de uma prestidigitação publicitária paga com recursos públicos, os servidores estão levando a culpa e se converteram no objeto do ódio invejoso de uma nação em crise. Onde está o privilégio?

Eugênio Bucci é jornalista, é professor da Eca-Usp (e, portanto,servidor público)