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segunda-feira, 28 de março de 2022

O Ocidente já perdeu? - Revista Oeste

Kaíke Nanne

Supostamente, os EUA estão em declínio e a civilização ocidental, em ruínas. Será mesmo? 

A água, símbolo dos Estados Unidos, e o dragão chinês | Ilustração: Shutterstock
A água, símbolo dos Estados Unidos, e o dragão chinês -  Ilustração: Shutterstock

É desolador o panorama que se apresenta quando o objeto da análise é a civilização ocidental. Vladimir Putin não teria tentado ressuscitar a Grande Mãe Rússia e iniciado sua estripulia militar sanguinária na Ucrânia se o Ocidente tivesse líderes fortes. A ordem liberal que preconiza o Estado de Direito, a garantia da propriedade privada e as liberdades individuais está em declínio, e o mundo está ficando menos democrático — de acordo com a Edição 2021 do Global Democracy Index, da revista britânica The Economist, apenas 6,4% da população mundial vive em democracias plenas; é o pior resultado desde o início do levantamento, em 2006. Tem mais. Xi Jinping já declarou que o plano do Partido Comunista Chinês é estabelecerum novo modelo de governança global”, seu país investe pesadamente na Nova Rota da Seda, um ambicioso projeto de infraestrutura que implementará um conjunto de novos itinerários comerciais por terra e mar, e a economia chinesa deve ultrapassar a norte-americana em 2033.

A propalada débâcle ocidental não se expressa apenas na política e na economia. Numerosos analistas dão conta de que a guerra cultural já está perdida. Do TikTok ao Fórum de Davos, da Netflix aos comitês de ESG das grandes corporações, das ONGs às big techs, é só chibata. O Oeste entrou num piro dramático de autoflagelação para expiar os pecados capitais denunciados pelos cavaleiros woke identitários, pela turma de movimentos como Antifa e Black Lives Matter. Nas universidades e na imprensa, a civilização ocidental é frequentemente apontada como produtora de exploração impiedosa e desigualdade social, berço de impérios colonialistas carniceiros, racista e criadora de estruturas que subjugam as mulheres e as minorias.

Em 2050, China e Rússia terão uma redução de nada menos que 20% no número de pessoas com capacidade produtiva

Dado o contexto, parece elementar presumir que o farol do Ocidente está com os dias contados. O Império Americano vai ruir em breve. Os Estados Unidos se tornarão apenas uma sombra do que já foram. E, com os Estados Unidos definhando, todo o ideário ocidental fica à míngua, o Oeste vira História, sem futuro.

Podemos encomendar o mausoléu, certo? Calma. Respire fundo. Conte até dez.

Em primeiro lugar, convém considerar que são os jovens e os imigrantes que têm potencial, energia e disposição ao risco para construir um futuro próspero, com inovação, dinamismo e capacidade de atração de talentos. Em 2050, China e Rússia terão uma redução de nada menos que 20% no número de pessoas com capacidade produtiva, segundo projeções da ONU. Em contraste, os Estados Unidos, de acordo com o mesmo estudo, verão sua população em idade ativa crescer 12% — sem o fator imigração, o país teria uma redução de 4,5% no número de indivíduos economicamente ativos.

Diz o escritor indiano-norte-americano Fareed Zakaria, em artigo para o jornal The Washington Post: “Imigração significa uma economia mais robusta. Os Estados Unidos têm administrado a imigração melhor do que a maioria dos outros países. Recebe pessoas de todos os lugares, elas são assimiladas e integradas ao tecido da sociedade, e os novos imigrantes sentem-se tão motivados quanto os velhos”.

Hoje, cerca de 15,5% da população norte-americana é composta de imigrantes — são mais de 50 milhões de pessoas. A China tem pouco mais de 1 milhão de imigrantes, o equivalente a 0,07% da população. O passaporte azul continua tendo um valor infinitamente superior ao do passaporte vermelho. E isso se reflete no interesse pelo aprendizado do idioma. No mundo, mais de 700 milhões de cidadãos têm inglês como segunda língua. No caso do mandarim, são 180 milhões.

Além dos dados relacionados à imigração, a conta do PIB per capita também precisa ser considerada. Embora a economia chinesa, como um todo, vá superar a norte-americana na próxima década, a geração de riqueza por indivíduo continuará muito maior nos Estados Unidos: em 2050, vai transpor a faixa dos US$ 80 mil por ano, ante pouco mais de US$ 20 mil na China.

No campo da disputa por corações e mentes, os US$ 10 bilhões que o Partido Comunista Chinês gasta por ano na difusão da cultura do país não têm sido suficientes. Aulas de kung fu para jovens africanos e conferências sobre a sabedoria confucionista em universidades ocidentais geram interesse, óbvio, mas não parecem ter o poder de mudar o tal do mindset. Ou você imagina que em Buenos Aires ou Kampala, em Johannesburgo ou Jacarta, a pré-estreia de um filme como A Batalha do Lago Changjin, a mais bem-sucedida produção chinesa de 2021, atrairá um público maior que o lançamento do novo Batman?

Um grupo de analistas internacionais acredita que as aspirações chinesas de dominação mundial podem estar sendo anabolizadas pela maior parte dos observadores — sem má-fé, apenas pelo alarmismo atávico dos que atuam no métier. Segundo essa interpretação contrária ao senso comum, a China estaria mais interessada em assegurar sua ascendência estratégica no leste da Ásia e ampliar seus negócios com todos os países, independentemente do eixo de influência ao qual estejam associados, do que em criar uma nova ordem planetária. O mencionado “novo modelo de governança global” seria um alerta retórico para o Ocidente não criar dificuldades e deixar o país expandir seu comércio sem travas, como regulações ambientais impeditivas.

Fatos e dados sobre a mesa, é bastante provável que os Estados Unidos sigam como o farol do mundo, malgrado o eventual ocupante da Casa Branca, hoje e no futuro — nesse sentido, a guerra na Ucrânia pode até fortalecer a aliança ocidental liderada pelo país e trazer a China para perto. Para uma certa classe média alta bem-pensante, que tem o luxo de discutir os prognósticos distópicos para a civilização ocidental entre taças de pinot noir, os Estados Unidos podem até estar caminhando para o desfiladeiro. Mas, para quem quer produzir e gerar riqueza, viver em liberdade e educar bem os filhos, a América é e será por muitos e muitos anos o melhor lugar. Até porque, embora milhões de indivíduos se submetam contingencialmente a regimes autoritários, a vocação para ser livre está no DNA da nossa espécie. 

Kaíke Nanne é jornalista. Foi publisher nos grupos Abril, Time Warner e HarperCollins. Atuou como repórter, editor e diretor em diversas publicações, entre elas Veja, Época, Playboy, Claudia e Oeste

Leia também “Para que correr tanto?”

Kaíke Nanne,  jornalista - Revista Oeste


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Anistia Internacional denuncia tortura, horror e morte em prisões sírias



A organização de defesa de direitos humanos defende ainda que tem de ser permitido imediatamente o acesso livre e sem quaisquer restrições de observadores independentes a todos os locais de detenção na Síria

 Relatos assustadores de pessoas que foram detidas e torturadas em prisões na Síria estão no relatório It breaks the human: torture, disease and death in Syrian prisons (No limite do humano: tortura, doença e morte em prisões sírias, em tradução livre), divulgado nesta quinta-feira (18/8) pela Anistia Internacional (AI), uma organização global presente em mais de 150 países que luta para garantir e proteger os direitos humanos no mundo.


De acordo com o documento, desde o início da crise no país, em março de 2011, pelo menos 17.723 pessoas foram mortas em centros de detenção, sob a tutela das forças de segurança sírias, o que significa uma média de 300 mortos por mês. No entanto, acredita-se que o número real de mortes seja muito maior, considerando as dezenas de milhares de pessoas vítimas de desaparecimentos forçados que se encontram em instalações prisionais por todo o país. Através de relatos de 65 sobreviventes, a Anistia Internacional reconstituiu as experiências de milhares de presos que sofreram abusos brutais e estiveram expostos a condições desumanas em prisões na Síria.

Juntamente com um grupo de peritos da agência de investigação Forensic Architecture, da Universidade de Londres, foi criado um modelo digital 3D da prisão militar de Saydnaya, localizada nos arredores de Damasco. A partir de modelos arquitetônicos e acústicos, recriados através das descrições feitas por ex-detidos sírios, o projeto visa mostrar vividamente o terror diário que as pessoas presas pelo governo sírio enfrentam e as condições horríveis de detenção a que são sujeitas. "O leque de histórias de terror apresentadas neste relatório demonstra, em pavoroso detalhe, os abusos terríveis que os detidos sofrem todos os dias desde o momento da detenção, ao longo dos interrogatórios e enquanto ficam presos atrás das portas fechadas das mais infames instalações dos serviços secretos na Síria. É uma experiência frequentemente fatal, com os detidos permanentemente em risco de morte sob a tutela das forças de segurança”, disse o diretor da Anistia para o Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

Luther apelou à comunidade internacional, em particular à Rússia e aos Estados Unidos, que copresidem os diálogos de paz na Síria, para colocarem estes abusos como prioridade na agenda das discussões, tanto com as autoridades sírias como com os grupos armados que atuam no país e pressioná-los a acabar com as práticas de tortura e maus-tratos.
“Há anos que a Rússia usa o direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas para proteger o seu aliado, o governo sírio, e para impedir que os responsáveis individuais tanto no governo como nas forças militares do país sejam julgados por crimes de guerra e crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional. Isto é uma vergonhosa traição da humanidade diante de um enorme e devastador sofrimento – e tem de acabar imediatamente”, afirma Luther.  A organização de defesa de direitos humanos defende ainda que tem de ser permitido imediatamente o acesso livre e sem quaisquer restrições de observadores independentes a todos os locais de detenção na Síria.

Cheiro da tortura

O relatório traz depoimentos chocantes de detidos que descrevem abusos que começam antes mesmo de chegarem aos centros de detenção.  Espancamentos brutais, choques elétricos, violações sexuais e queimaduras com água fervente e cigarros são apenas alguns exemplos dos horrores experimentados pelos presos na Síria. Superlotação, péssimas condições sanitárias, exposição a temperaturas extremas e ausência de alimentação ou de cuidados médicos constituem tratamento cruel, desumano e degradante dos detidos, expressamente proibido pela lei internacional.

O relato de um homem que esteve preso em Damasco descreve que a ventilação nas instalações dos serviços secretos militares deixou de funcionar um dia e sete pessoas morreram sufocadas. “Começaram a nos dar pontapés para ver quem reagia, quem estava morto ou vivo. Pediram a mim e a um outro detido que também sobreviveu para ficarmos de pé… só aí é que percebi que havia sete pessoas mortas no chão, que eu tinha dormido rodeado por sete cadáveres. E depois vi outros, caídos no corredor, cerca de 25 corpos”.

Em um outro depoimento, um advogado que passou mais de dois anos preso em Saydnaya conta que, quando o levaram para a prisão, sentiu o cheiro da tortura. “É um cheiro muito particular, uma mistura de umidade, sangue e suor; é o cheiro da tortura”. Ele descreveu ainda como os guardas espancaram até à morte um instrutor de kung fu após terem descoberto que o homem estava treinando outros presos em sua cela. “Espancaram ele e outros cinco até matarem, assim que descobriram que treinavam. Depois continuaram com mais outras 14 pessoas. Ao fim de uma semana estavam todos mortos. Nós vimos o sangue correr pelo chão da cela”. De acordo com Philip Luther, a natureza deliberada e sistemática da tortura e dos maus-tratos na prisão de Saydnaya é a forma mais básica de crueldade e demonstra total falta de humanidade.

Fonte: Agência Brasil