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sábado, 9 de setembro de 2023

A perseguição religiosa chegou de vez ao Brasil - Gazeta do Povo

Vozes - Crônicas de um Estado laico
 

Intolerância

Casal que não gostou de música com teor religioso insultou e depois agrediu motorista de aplicativo em Minas Gerais.| Foto: Melonemond/Pixabay

Já falamos aqui que o laicismo não tem nada a ver com o Estado laico e se caracteriza por um movimento de expurgo da religião do espaço público, limitando-a à residência dos fiéis e a suas igrejas. 
 Por outro lado, o Estado laico se caracteriza pela separação entre o Estado e o fenômeno religioso, garantindo liberdade de atuação de cada um, em suas respectivas esferas de competência, permitindo que os fiéis vivam sua vida, no público e no privado, de acordo com as suas crenças. 
A laicidade possui variações, desde a norte-americana, que se caracteriza pelo wall of separation between church and State, até a colaborativa, na qual este “muro” não existe, possibilitando a colaboração do Estado com a igreja e vice-versa, um reflexo da ideia tomista e escolástica de que a fé e a razão devem andar juntas.
 
No Estado laico as pessoas não são laicas; a maioria delas tem uma fé e a exerce em casa, na igreja e no espaço público, ou seja, onde quer que elas estejam. O Estado tem uma postura neutra de não interferir e nem se relacionar com a religião, como nos EUA. 
Em outras situações, o Estado tem uma conduta cooperativa, de auxiliar a igreja, sobretudo a principal, como acontece na laicidade italiana por meio do Acordo de Villa Madama, com a Igreja Católica.  
Temos, ainda, o Estado que é colaborativo com o fenômeno religioso e possui uma atitude benevolente e positiva com todas as fés, colaborando com elas em prol do interesse público – é o caso brasileiro, como diz o artigo 19, I da Constituição.
 
Em nenhum desses exemplos há uma conduta negativa do Estado para com a religião. Essa conduta é típica de países laicistas, que bebem da fonte francesa, onde religiosos perdiam suas cabeças e freiras eram estupradas por não concordarem com o regime da fraternidade francesa do século 18 e a imposição de sua religião positivista. 
O Brasil, como já dito, não é laicista; basta olhar para sua bandeira e ver nela a Cruz de Cristo; temos os feriados religiosos, nomes de estados e cidades em homenagens a santos, referências religiosas na heráldica das maiores cidades brasileiras e por aí vai. 
 Entretanto, existe um movimento cada vez maior de pessoas laicistas no Brasil. Pensam elas: “Já que a história do Brasil, os símbolos nacionais, a Constituição, o ordenamento jurídico e tudo o mais têm uma atitude simpática com a religião, especialmente o cristianismo, e já que infelizmente existem liberdade religiosa e Estado laico colaborativo por aqui, serei eu o laicista; vamos censurar algum padre ou pastor, fechar alguma igreja, e processá-los todos nem sei pelo quê!”

    No Estado laico as pessoas não são laicas; a maioria delas tem uma fé e a exerce em casa, na igreja e no espaço público, ou seja, onde quer que elas estejam

Esse pensamento se popularizou não só entre indivíduos, mas também entre grupos ativistas. O caso mais recente é de uma motorista de aplicativo de caronas, de 27 anos, que foi vítima de agressão verbal e física durante uma viagem entre um bairro de Belo Horizonte e Contagem (MG), de acordo com informações divulgadas pelo portal R7. 
Os agressores, um jovem de 25 anos e uma mulher de 22 anos, teriam iniciado o ataque após questionar a religião da motorista e proferir xingamentos devido à música que tocava no rádio do veículo. A motorista solicitou que o casal desembarcasse do carro em frente à Unidade de Pronto-Atendimento JK, na cidade de Contagem, mas os passageiros, em vez de seguir a solicitação da motorista, teriam iniciado a agressão física. 
Um espectador tentou intervir para proteger a vítima e impedir a continuação da agressão. 
A Guarda Civil Municipal de Contagem, que estava posicionada nas proximidades da unidade de saúde, foi alertada pelos gritos de socorro e testemunhou o crime, corroborando a versão apresentada pela motorista.

Eis uma aplicação do pensamento laicista francês: “você não pode escutar essas músicas religiosas em um transporte público, mesmo que o carro seja seu; e, já que você insiste, vou descer-lhe a porrada”.

Uma reflexão sobre o caso
A agressão, em qualquer uma de suas formas, seja ela física, psicológica ou verbal, é algo profundamente lamentável e merece ser condenada veementemente. 
O caso envolvendo a motorista de aplicativo em Minas Gerais, insultada devido à música religiosa que estava ouvindo e, depois, agredida fisicamente, lança um alerta preocupante sobre os crescentes casos de intolerância na sociedade. Intolerância que se manifesta pelo pensamento segundo o qual, “já que o Estado tem uma postura positiva com a religião, vamos nós persegui-la”.
 
A intolerância, antes restrita a xingamentos e manifestações nas redes sociais, parece estar ganhando espaço na forma de violência física no cotidiano das pessoas. 
O fato de um casal de passageiros ter insultado a motorista por sua escolha musical é inaceitável, ainda mais quando a música está ligada à crença de quem a está ouvindo e que, ainda por cima, é o proprietário do carro. 
O desdobramento dessa situação, que culminou na necessidade de a motorista pedir que os agressores deixassem o veículo, seguido de agressão física, torna o caso ainda mais grave.

    Quando a intolerância atinge o ponto de agressão física devido a diferenças religiosas ou à escolha de uma religião específica, temos um claro ataque aos valores democráticos e à coexistência pacífica na sociedade

Este incidente ressalta a importância da liberdade religiosa e da tolerância em uma sociedade pluralista. A liberdade religiosa é um princípio fundamental em sociedades democráticas, que garante a todos o direito de praticarem sua religião ou crença, no público ou no privado; não se limita apenas à liberdade de culto, mas também engloba a liberdade de expressão e manifestação de suas crenças.
Portanto, é crucial que todos os cidadãos compreendam e respeitem a diversidade religiosa e cultural que enriquece nossas comunidades, podendo evidentemente discordar com relação a dogmas, práticas e liturgias, mas sem suprimir o direito do outro, muito menos agredi-lo. A disseminação do que é conhecido como “marxismo cultural”, que expande a luta de classes a diversas outras formas de divisão, está começando a mostrar seus efeitos mais alarmantes, minando a coesão social e prejudicando a convivência harmoniosa entre os indivíduos, fragmentando totalmente a sociedade.

Expressamos nossa solidariedade à motorista de aplicativo e desejamos sua recuperação emocional e física. Esperamos que as medidas legais adequadas sejam tomadas para responsabilizar civil e criminalmente os agressores, de acordo com as evidências apresentadas no devido processo legal. Mais do que nunca, é essencial que a sociedade reafirme seu compromisso com a liberdade religiosa, garantindo que todos possam viver em paz, independentemente de suas crenças.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Thiago Rafael Vieira, colunista - Gazeta do Povo -
Crônicas de um Estado laico

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A EMPERRADA INDICAÇÃO DE ANDRÉ MENDONÇA - Percival Puggina

Completou 90 dias, ontem, a indicação de André Mendonça para ocupar a cadeira vaga no STF. Cabe ao presidente da CCJ do Senado, Davi Alcolumbre, marcar data para que o candidato seja ouvido, em “sabatina”, pelos membros da Comissão.

Nunca houve algo assim, ao menos no meu horizonte de memória. Todas as indicações, inclusive as mais despropositadas pela inadequação e despreparo da pessoa à função, foram aprovadas após breves passeios dos indicados pelos gabinetes da Casa. As sabatinas eram indulgentes, os pré-requisitos desconsiderados e o notório saber substituído por notoriedades bem menos úteis à nação.

Assim, Lula e Dilma empacotaram uma dúzia de companheiros para o Supremo. Dos oito designados por Lula, cinco já se aposentaram. Dentre os cinco apontados por Dilma houve uma defecção por morte. Dos atuais, portanto, sete passaram pelo crivo ideológico de José Dirceu. Com essa orquestra, por si majoritária, afina-se, de uns tempos para cá, Gilmar Mendes (indicado por FHC) e com ela se perfilou, caneta em riste, Alexandre de Moraes (indicado por Michel Temer). É um autêntico rolo compressor que não se constrange com os malabarismos jurídicos e estripulias repressivas em curso na Casa.

Por outro lado, quem conhece o Congresso Nacional sabe que quando algo não tramita porque surgem “dificuldades”, “facilidades” estão à venda e a demora eleva o preço. Infelizmente, devemos ter ciência e consciência de ser assim que funciona o parlamento brasileiro. Não, leitor, não creia que os obstáculos enfrentados pelo indicado André Mendonça tenham algo a ver com más credenciais. É diante as boas que eles se levantam.

Pesa contra ele uma posição religiosa, a adesão a certos valores que vêm sendo combatidos dentro do STF, alguns dos quais fazem parte da preocupante “agenda internacional do Supremo”. 
Pesa contra ele ser indicado pelo presidente Bolsonaro, algo que, para muitos senadores de critérios rasos, é considerado vício de origem. Outros, sempre receosos do STF, veem a aprovação como algo que possa causar desagrado ao tal rolo compressor. [uma outra, pequena, insignificante pela pequenez que demonstra, não pode ser olvidada - o nome do senador que preside a CCJ tem se tornado presença constante na mídia - situação que não ocorria antes do travamento da indicação de André Mendonça.]

***

Há um laicismo militante segundo o qual a moral não pode influenciar o Direito e esse laicismo está bem sentado dentro do Supremo e do Congresso. Segundo ele, a única convicção que pode influenciar o Direito é a laicista, diagnóstico que não consigo fazer sem achar muito engraçado.

Desde meu modesto posto de observação, é exatamente essa concepção que permite aos poderes de Estado agir de um modo que põe a moral para fora pela mesma porta pela qual entram, soberanos, os interesses particulares, políticos e partidários de qualquer ordem. O desprezo a princípios e valores dos candidatos enche os plenários de indivíduos que os mesmos eleitores, se os conhecessem bem, não convidariam para jantar em casa.

Para mim, a resistência à indicação de André Mendonça se converteu em sua mais insigne credencial.

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.