Juízes e procuradores não gostam de contestações fora do ritual dos processos
O presidente do Supremo Tribunal Federal disse que vai "checar" o texto
de um artigo do procurador Diogo Castor para decidir se representa
contra ele junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Tomara que a
checagem desestimule o doutor. Alguns ministros do STF incomodaram-se
com as críticas feitas ao tribunal e a outras esferas do Judiciário. No
seu artigo, Castor denunciou um "novo golpe à Lava Jato" e em dois
momentos mencionou uma "turma do abafa".
Fala de freira, se comparada à oratória de Gilmar Mendes na sessão do
STF do dia 14, quando se referiu a procuradores da Lava Jato como
"gentalha", "gente desqualificada", "despreparada", "covarde",
"gângsteres", "cretinos", "infelizes", e "reles", porque "integram
máfias, organizações criminosas". Numa hipérbole, foi além:
"força-tarefa é sinônimo de patifaria".
Como já ensinou o próprio Gilmar Mendes, "ninguém se livra de pedrada de
doido nem de coice de burro". Apesar de sua rotina empolada, o Supremo
Tribunal Federal já ouviu coisas piores. No início do século passado, o
ministro Epitácio Pessoa referiu-se em artigos ao seu colega Pedro Lessa
como "cavalgadura" e "alimária". Negro, com bigodes de oficial inglês,
Lessa seria um "pardavasco alto e corpanzudo, pernóstico e gabola (que)
raspa a cabeça para dissimular a carapinha". O próprio Gilmar ouviu
poucas e boas: "O senhor é uma mistura do mal com o atraso e pitadas de
psicopatia", disse-lhe o ministro Luís Roberto Barroso.
Como diria Gilmar Mendes, aqui se trata de discutir os limites da
liberdade de expressão. Juízes e procuradores não gostam de contestações
fora do ritual dos processos. Quando veem discutidas suas decisões,
falhas ou incompetências, buscam a proteção do corporativismo e
transformam as críticas em ataques às instituições a que pertencem.
Seria mais razoável que cada um recorresse aos tribunais, como devem
fazer aquelas pessoas a quem ninguém chama da "excelência". Pedro Lessa
poderia ter processado Epitácio Pessoa pelo que escreveu, ou ainda por
ter se aposentado em 1912 por motivo de saúde, aos 47 anos. (Tornou-se
presidente da República aos 53 e morreu aos 77.)
A defesa corporativa jogou sobre a mesa do ministro Alexandre de Moraes o
que será uma investigação escalafobética para apurar a origem de
ataques ao Supremo, inclusive em redes sociais. Sabe-se lá o que será
essa investigação. Mais difícil é saber por que os ministros investigam
as pedradas que levam, enquanto os outros bípedes ficam na várzea. No
caso da checagem das palavras do procurador Castor pode-se argumentar
que o Ministério Público está obrigado a respeitar normas disciplinares
da corporação. Nesse caso, vem aí um bonito debate para se medir o
alcance da liberdade de expressão.
Em tempo: Não vale dizer que os militares não podem falar, pois eles
entraram para uma carreira regida pelo rigor da disciplina. Sem
disciplina não há organização militar. Com mordaça, não há Judiciário.
Noutra instituição regida pela fé e pela disciplina, o papa Francisco
quebrou o manto de silêncio que protegia a Cúria Romana e com isso
fortaleceu o catolicismo. Já houve tempo em que o Vaticano queimava as
pessoas por muito menos.
A catilinária de Gilmar Mendes contra os procuradores da Lava Jato foi
um capítulo do debate, assim como artigo de tom conventual do
procurador. Calado, Gilmar Mendes faria falta, mas calando-se quem
desperta sua ira as coisas pioram. O naufrágio da iniciativa da turma de
Curitiba ao tentar criar uma fundação mostrou que a luz do sol continua
a ser o melhor detergente.
Elio Gaspari, jornalista - O Globo