Demétrio Magnoli
Carl Jung escreveu que “contemplar o mal absoluto é uma rara e
avassaladora experiência”. Genocídio é Auschwitz, o mal absoluto. Gilmar
Mendes não tem o direito moral — nem mesmo a pretexto de formular uma
crítica urgente, justa e necessária— de mobilizar frivolamente o
conceito. Genocídio é a figura histórica e jurídica que tipifica a operação
deliberada, conduzida pelo Estado ou por forças em armas, de extermínio
físico de uma população singular inteira. Contam-se, no século 20, além
do Holocausto, três grandes eventos genocidas: o armênio, o do Camboja e
o de Ruanda.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido para processar crimes
contra a humanidade, classificou os massacres de muçulmanos bósnios no
enclave de Srebrenica, em 1995, como “intenção de genocídio” e indiciou o
ex-presidente sudanês Omar Bashir por crimes de genocídio cometidos na
Guerra de Darfur, a partir de 2003. A invocação do crime dos crimes para
fazer referência às imposturas do governo Bolsonaro diante da pandemia
tem graves implicações filosóficas e práticas.
Filosoficamente, percorre-se a trilha da banalização do mal. Conrado
Hübner sugere que o maior dos crimes “libertou-se das amarras do
conceito jurídico-penal”, passando “a se referir a ações e omissões
difusas que multiplicam a morte em grupos sociais específicos” (Folha,
7/7). Conceitos, porém, não cultivam o hábito de se “libertar” sozinhos,
e o TPI continua a exigir a deliberação de extermínio para qualificar o
genocídio. Daí, é forçoso concluir que a tentativa de diluir o conceito
não passa de um truque de linguagem imerso nas polêmicas ideológicas
circunstanciais.
No super-Estado de Oceania, de Orwell, o Partido suprimiu os registros
históricos objetivos, fazendo de sua narrativa a fonte exclusiva de
informação sobre o mundo exterior. Desse modo, instalou um presente
perpétuo, no qual “o inimigo do momento sempre representou o mal
absoluto”. A linguagem das redes sociais, que abomina a história,
reproduz parcialmente o cenário orwelliano. Nessa moldura, a finalidade
da palavra já não é nomear precisamente um fenômeno, mas causar
escândalo, gerar comoção instantânea, marcar a ferro o alvo da hora. Nem
mesmo juristas, que deviam saber mais, escapam à tentação.
O esporte tem consequências. Prevenindo-se de investigações por crimes
de guerra, o governo dos EUA saltou do mero boicote para sanções
diplomáticas contra o TPI. Para Trump, nada mais útil que a inundação da
corte internacional por denúncias vazias de genocídio, baseadas em
“ações e omissões difusas”. A transformação do tribunal em câmara de eco
de controvérsias políticas nacionais significaria a desmoralização do
instrumento principal de punição do mal absoluto.
Banalizar o genocídio é uma forma de vestir a omissão com os andrajos do
radicalismo retórico. Na prática, troca-se a obrigação de abrir
processo contra agentes de crimes definidos na lei por falsas exibições
de coragem. Se o policial que assassinou George Floyd não fosse
denunciado por homicídio qualificado, mas por genocídio, seria
certamente absolvido. Quando um juiz da corte suprema aventa o crime
maior, de competência do TPI, exime-se do dever de apontar os crimes
efetivos do governo, que estão sob a jurisdição do STF. [se eximiu motivado pelo fato da não existência de crimes.]
Os juristas do grupo Prerrogativas alegaram que o ministro do STF
limitou-se a manipular o recurso da “hipérbole”. Dias depois de sua
manifestação hiperbólica, Gilmar Mendes telefonou para Bolsonaro e, na
sequência, para Pazuello, fumando o cachimbo da paz com os supostos
agente e cúmplice de genocídio. Ninguém será denunciado à corte de Haia.
O governo seguirá, impunemente, violando o direito constitucional à
saúde dos cidadãos. Os heróis da resistência já inscreveram seus nomes
no panteão das redes sociais.