O mais recente episódio de confrontação entre os poderes, a ameaça do
Ministério da Defesa de representar judicialmente contra Gilmar Mendes,
originou-se da estratégia do ministro do Supremo Tribunal Federal de
levantar barreiras à escalada com a qual o presidente Jair Bolsonaro
busca responsabilizar a Corte, governadores e prefeitos pelos danos à
saúde dos brasileiros e à economia do pais. [A Suprema Corte tomou a decisão de delegar aos governadores e prefeito a execução de medidas de combate à covid-19 incluindo, sem limitar, as duas que podemos chamar de mães de todas as medidas: distanciamento e isolamento sociais.
A execução se revelou um desastre, autêntica demonstração de incompetência e agora a Suprema Corte simplesmente decide que não delegou poderes só àquelas autoridades.
Esquece que dias após as medidas o presidente Bolsonaro liderou uma caravana de empresários ao STF, para deixar registro daquela decisão que restringia ações do Poder Executivo da União no combate à pandemia.]
Já corria 1h30 do debate promovido no sábado à tarde pelo Instituto de
Direito Privado (IDP), do qual é sócio, quando o ministro disse que não
seria mais possível tolerar o que se passa no Ministério da Saúde: “É
péssimo para a imagem das Forças Armadas. O Exército está se associando a
este genocídio”. Gilmar Mendes foi secundado por dois dos palestrantes, o médico Drauzio
Varella, que disse que a entrada dos militares no Ministério da Saúde
“não honra as Forças Armadas do Brasil”, e pelo ex-ministro Luiz
Henrique Mandetta, para quem a intervenção de militares na Pasta,
substituindo todo o corpo técnico, é tão ou mais sério que uma
intervenção do governo na Polícia Federal. [Mandetta fracassou como médico, foi afastado do MS e agora quer dar uma de jurista, baseado em uma interpretação, ainda não provada, de outro ministro expulso do Governo Bolsonaro.] O general Eduardo Pazuello,
que responde pela Pasta desde 15 de maio, com a saída do ex-ministro
Nelson Teich, preencheu todo o segundo escalão com nomes egressos das
Forças Armadas.
A resposta do Ministério da Defesa veio, por nota, na tarde do domingo.
Nesta nota, assinada pela assessoria de comunicação, a Pasta se limita a
prestar informações sobre o envolvimento das Forças Armadas no combate à
pandemia, como, por exemplo, o contingente de 34 mil militares, maior,
como costumam lembrar, do que aquele enviado à Segunda Guerra Mundial. Nesta segunda, porém, veio uma nota mais dura. Assinada pelo ministro
Fernando Azevedo e Silva, além dos três comandantes do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, os signatários, nesta segunda nota, se dizem
“indignados” pelos comentários do ministro do Supremo: “Trata-se de uma
acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana”.
O texto cita a lei do genocídio (2.889), de 1956, para dizer que se
trata de crime “gravíssimo”, no âmbito nacional, como na justiça
internacional, o que, “é de pleno conhecimento de um jurista”. A nota
conclui pela afirmação de que as Forças Armadas, incluindo a Marinha, o
Exército e a Força Aérea, “estão completamente empenhadas justamente em
preservar vidas”. E informa que o Ministério da Defesa encaminhará
representação ao Procurador-Geral da República para a “adoção das
medidas cabíveis”.
O presidente Jair Bolsonaro não se manifestou, mas o vice, Hamilton
Mourão, que já subscreveu críticas ao Supremo Tribunal Federal, reagiu
com a linguagem do polo, esporte do qual é adepto: “Gilmar Mendes não
foi feliz. Ele cruzou a linha da bola. Atribuir essa culpa ao Exército é
forçar uma barra”. Apesar de dura, a resposta da Defesa se destaca por não incluir o
comandante-em-chefe ao lado das Forças Armadas, no empenho em preservar
vidas, e citar um recurso a um instrumento da democracia (representação
judicial), em contraposição às ameaças veladas que o ex-comandante do
Exército, Eduardo Villas-Boas, fazia ao Supremo.
Apesar da nota dura, a cúpula das Forças Armadas já havia concluído que
uma parte da fatura da pandemia cairia em seu colo. Por isso, a
permanência do general Pazuello como ministro-interino desagrada a
instituição. Um general próximo ao comandante Edson Leal Pujol diz que o
Exército não responde pela decisão do general de aceitar o cargo. Pazuello está sendo pressionado a tomar o mesmo rumo do ministro da
Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, que gostaria de
encerrar sua carreira como comandante militar do Leste, no Rio, mas irá
para a reserva antes do que desejava. A transferência deverá ser
efetivada até sexta-feria. Restaria ainda Flávio Rocha, almirante quatro
estrelas da Marinha, que hoje exerce o cargo de secretário de Assuntos
Estratégicos, subordinado diretamente à Presidência da República.
A nota marca ainda uma reaproximação do ministro da Defesa e dos
comandantes militares, estremecidos desde que Azevedo e Silva
referendou, em nome deles, a participação do presidente em manifestações
de apoio em plena pandemia. Desta vez, foram os comandantes que fizeram
questão de subscrever a nota em resposta ao ministro do Supremo. Indagado se Pujol voltaria a receber Gilmar Mendes, como o fez há um
mês, um general do gabinete do comandante disse: “O ministro está em
Portugal e nós estamos aqui trabalhando pelo povo brasileiro”.
Desde ontem, Azevedo e Silva e o ministro Dias Toffoli, a quem
assessorava antes de ir para o governo Bolsonaro, têm discutido uma
forma de pacificar a tensão entre Supremo e Forças Armadas, a partir da
percepção comum de que Gilmar Mendes exagerou nas tintas. De Portugal, onde não fez mais declarações, o ministro tem dito a quem o
procura para comentar o episódio, que já havia alertado, no plenário do
Supremo, sobre a armadilha que Bolsonaro preparara para as Forças
Armadas, ao usá-las para um papel, no Ministério da Saúde, que nenhum
médico ou profissional que preze por sua reputação, se presta a cumprir.
A opinião foi referendada, no Valor, por Maria Elizabeth Rocha, ministra
do Superior Tribunal Militar: “É cômodo para o presidente escolher
militares para compor o alto escalão, preenchendo lacunas que,
politicamente, talvez ele não conseguisse manejar. São pessoas que nunca
vão confrontá-lo, pois ele é o chefe supremo das Forças Armadas”. Gilmar Mendes tampouco está isolado na sua Corte. O ministro Luis
Roberto Barroso já disse que o presidente Jair Bolsonaro, ao povoar o
governo de militares, está levando o Brasil a uma “chavização” da
política, o seja, transformando o país numa Venezuela de Hugo Chávez.[Considerando que a Corte tem onze ministros!!!]
Desde que chegou a Portugal, Gilmar Mendes tem ficado impressionado com
as referências negativas da imprensa europeia ao Brasil. Chegou a
comentar que o presidente Jair Bolsonaro não deve pisar na Europa sob o
risco de ser notificado pelo Tribunal Penal Internacional.
É na reação a este cerco que o ministro firmou convicção de que
Bolsonaro jogará, cada vez mais, sobre o Supremo e os governadores, a
responsabilidade pelos crimes da pandemia. Bolsonaro nunca aceitou a
decisão da Corte de que a União não podia impor aos Estados as
diretrizes para o combate à covid-19, como o uso da cloroquina, uma vez
que a Constituição prevê a gestão compartilhada para o Sistema Único de
Saúde.
No Supremo não se descarta que governadores que hoje se veem
prejudicados por uma distribuição sem critérios técnicos dos recursos da
Saúde, venham a interpelar a Corte com uma Ação de Preceito
Fundamental, contra o Ministério. Foi sob este fogo cruzado que os
militares, pela presença de um general da ativa no comando da Pasta, se
colocaram. Ao acusar os militares de terem se deixado usar pelo presidente no que
chamou de “genocídio”, o ministro pagou pra ver o que será a reação
fardada quando a acusação for formalizada contra o presidente. Na nota,
os militares saem em defesa da corporação mas não estendem a blindagem ao presidente.