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domingo, 3 de novembro de 2019

Aos ‘tresloucados e malucos’ - O Estado de S.Paulo

Eliane Cantanhêde

Os militares não embarcam no AI-5 e no ‘Três Oitão’ dos Bolsonaro

Em entrevista ao Estado, em dezembro de 2016, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, me contou que “tresloucados e malucos” batiam às portas das Forças Armadas pedindo a volta dos militares ao poder e que, de pronto, ele advertia que algo assim tinha “chance zero”. Três anos depois, porém, o clã Bolsonaro arrepia o País com sua apologia a ditaduras.

Villas Bôas relatou que respondia com o artigo 142 da Constituição àquela versão atualizada das “vivandeiras alvoroçadas” que, segundo o marechal Castello Branco, primeiro presidente do regime de 1964, exigiam “extravagâncias” do Poder Militar. Por esse artigo, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Boa lembrança, já que o capitão da reserva Jair Bolsonaro nem completou um ano de mandato e seu filho Eduardo, deputado federal e quase embaixador (em Washington!), choca o País inteiro ao defender a volta do demoníaco AI-5, enquanto o presidente, como informa o repórter Renato Onofre, costura sua filiação ao ainda em gestação Partido Militar Brasileiro. Assim, o novo partido embolaria perigosamente o presidente da República com militares, policiais, a bancada da bala e “tresloucados e malucos” de diversas espécies. E sob o número 38, em referência ao revólver mais conhecido, principalmente entre os bandidos, no bang-bang nacional. O presidente no “três oitão”...

Eduardo Bolsonaro uniu o País inteiro, da esquerda à direita, do PT de Lula ao PSC do Pastor Everaldo, ao defender a volta do demoníaco AI-5. Para o pai Jair, quem fala uma coisa dessas está “sonhando, sonhando, sonhando”. Há quem sonhe com o paraíso, ganhar na loteria, a casa própria ou um bom prato de comida. Fazer apologia a ditaduras não é sonho, é pesadelo — além de crime. [para evitar muitas prisões, gostaríamos que alguém informasse qual artigo e qual lei tipifica o crime de apologia à ditadura?
 
Lembramos que tipificar não é interpretar determinado dispositivo de uma lei como seria nosso desejo  - aí seria uma tipificação legiferante, por enquanto, restrita aos ministros do Supremo, mesmo assim atividade inconstitucional, visto que o STF ainda não fez uma interpretação criativa do texto constitucional que determina a independência e harmonia dos 3 Poderes o texto vigente deixa claro a regra no popular: 'cada poder no seu quadrado'.]

Só não é novidade no clã Bolsonaro, já que o patriarca saiu pela porta dos fundos do Exército após ser acusado de planejar explodir quartéis, passou três décadas no Congresso defendendo ditadores, torturadores, censura e dedicou seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff a Brilhante Ustra, a estrela dos livros sobre tortura no Brasil. Já eleito presidente, Bolsonaro chocou o Paraguai ao elogiar Stroessner e irritou o Chile duas vezes: com loas ao igualmente sanguinário Pinochet e depois atacando o pai da ex-presidente Michelle Bachelet, morto sob tortura. Até o atual presidente Sebastián Piñera reagiu.

Foi assim que Bolsonaro criou os filhos. Eduardo já tinha feito a bravata infantil de que, para fechar o Supremo, bastam um cabo e um soldado. Carlos lidera uma guerra insana pela internet contra tudo e todos. Flávio mantém relações complexas com ex-policiais de má fama no Rio. Perguntei a um oficial muito entrosado com as três Forças como militares reagiam à fala sobre o AI-5 e ele: “Rindo. Só rindo de um absurdo desses”. E disse que “nunca” haverá um partido militar, incompatível com a missão constitucional das Forças Armadas e um retrocesso gravíssimo no longo processo de profissionalização e descontaminação dos quartéis. [nada impede que qualquer cidadão funde um Partido Militar - mesmo que venham a impedir que militares da ativa se filiem, militares da reservar e civis podem se filiar e colocar no 'estatuto do partido' a defesa da filosofia militar, do ideário militar.]

A manifestação do oficial está perfeitamente de acordo com o que me disse naquela entrevista o brilhante general Villas Bôas, ao descartar aventuras golpistas e apelos de vivandeiras: “Nós aprendemos a lição. Estamos escaldados”. Só que o presidente e seus filhos talvez não. A Câmara, por corporativismo ou preguiça, apenas advertiu o deputado Jair, que em 1999 queria fechar o Congresso, disse que “o erro do regime militar foi (só) torturar, não matar” e lamentou que o então presidente Fernando Henrique não tivesse sido fuzilado. Parecia só bravata e, impune, Jair acabou presidente. Como a Câmara vai reagir agora ao deputado Eduardo? [nada fazendo, absolutamente nada;
o deputado Eduardo Bolsonaro não cometeu nenhum crime, não pratico nenhum ato antiético e não feriu o decoro parlamentar.]

Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo


quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Militares tutelam o governo como partido

Há que separar a euforia do emprego da euforia política


Com tantos generais nos gabinetes próximos do presidente e ao longo da Esplanada, Jair Bolsonaro, mesmo que discordasse, não teria como levar adiante uma reforma da Previdência Social que os atingisse. Mas ele, além disso, concorda plenamente e encoraja o tratamento diferenciado a essa categoria, a sua, vez que é capitão da reserva. [criticar dizendo que uma categoria tem tratamento diferenciado e fundamentar a crítica, com argumentos sólidos, 'desmontando' as razões que são invocadas para justificar o tratamento considerando diferenciado, é a crítica gratuita, o criticar por criticar.]

O Exército, a Marinha e a Aeronáutica não ocuparam o governo em vão. Não vão deixar escapar a única disputa em que realmente se envolvem desde sempre, além daquela batalha anual por mais verbas: a de evitar a mudança do seu sistema de aposentadoria. Nos últimos dias, com tantas posses e transmissão de comando nas três forças, além das trocas de ministros nos gabinetes do Palácio do Planalto e de vários ministérios, seus interesses reais ficaram mais expostos.

Expressam, sem censura, a alegria de ter voltado ao poder, – “agora pelo voto”, como apregoam. E não se fazem de rogados quando questionados sobre a reforma da Previdência. Dizem que são disciplinados e acatarão ordens, mas logo fica claro que estão marcando distância da vala comum: “Somos diferentes”. [diferença que consta da famosa 'constituição cidadã', que não foi promulgada pelos militares, ou mesmo redigida.]
Livrando-se os militares das novas regras, outros funcionários públicos devem também se sentir especiais e reivindicar uma saída exclusiva para outras categorias. Com certeza, a Polícia Militar, a Polícia Civil, delegados em geral, agentes penitenciários em particular, entre outros que se submetem a riscos semelhantes em sua carreira, unidos pela atividade de segurança.  Daí para outras categorias do funcionalismo também mostrarem que seu caso é singular, o caminho é curto, rápido e até justo, como se pode achar, a princípio, embora muitos discordem dessa última condição. Uma vez tirados os militares, o justo será deixar saírem todos os demais cujas atividades são análogas. Ao arrastarem consigo outras categorias do funcionalismo, os militares fragilizam institucionalmente e politicamente a reforma da Previdência.

Automaticamente levam consigo, no mínimo, a Polícia Militar, considerada uma força auxiliar do Exército. Como dar tratamento especial ao Exército e não à PM, além de outras atividades a que estão amarrados pela atividade de risco? Não há como separar as Polícias Militares das Forças Armadas.  As sessões da Comissão Especial que aprovou a reforma da Previdência do ex-presidente Michel Temer mostraram como pode funcionar o lobby militar na votação. Seus representantes nas discussões eram os mais reativos, os que se manifestaram de forma muitas vezes agressiva.

Por que seria diferente agora, com líderes do governo e líder do partido do presidente, um é major, o outro delegado?  Aberta a porteira para Forças Armadas e Polícia Militar, cria-se a brecha no muro e todos podem sair. É essa a discussão a ser levada em torno da ideia de não mexer na Previdência dos militares. Sem razão para argumentar contra sua inclusão na reforma, os militares, infinitamente mais fortes hoje do que ontem, são cem por cento fiadores do governo Bolsonaro e têm razão, desta vez, sim, de estarem eufóricos com isso.  Eufóricos por terem recuperado o poder e, já de posse do trono, sentirem-se à vontade para responder perguntas sobre a reforma prioritária.

Sem dúvida, estão mesmo no comando. Jair Bolsonaro não tem quadros no seu partido, não conhece equipes que atuem em universidades e institutos, não tem correntes de especialistas da academia, não tem militância. Se falta um porta-voz, é anunciado logo um general; se há expectativa sobre quem será o líder do governo no Congresso lá vem um major de primeiro mandato. [Bolsonaro é o presidente da República e nomeia para o seu Governo quem ele entender que atende melhor os interesses da Nação brasileira e dentro dos principios legais - até o presente momento, nenhuma nomeação foi feita em desacordo com as leis.]
Até o momento, no primeiro escalão, assumiram: o general Hamilton Mourão, na vice-presidência [o general Hamilton Mourão é vice-presidente da República, cargo para o qual foi eleito com quase 60.000.000 de votos.]  o general Augusto Heleno no Gabinete de Segurança Institucional; o general Santos Cruz na Secretaria de Governo; o general Maynard Santa Rosa, na Secretaria de Assuntos Estratégicos; o general Otávio Santana do Rêgo Barros, porta-voz da Presidência, ainda não oficialmente nomeado. Rêgo Barros é ligado ao general Eduardo Villas Bôas, que deixou o comando do Exército e não vai para casa, assumirá um cargo no Gabinete de Segurança Institucional no Planalto.

Há, ainda, no primeiro escalão, ministros egressos das Forças Armadas: Fernando de Azevedo e Silva (Defesa), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), Bento Costa Lima (Minas e Energia), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Wagner Rosário (Controladoria Geral da União); general Franklin Ribeiro de Freitas (Funai).
O ex-comandante da Marinha, assim como o ex-comandante do Exército, ingressou na equipe: o almirante Eduardo Bacellar Leal Ferreira foi indicado por Bolsonaro para presidir o Conselho de Administração da Petrobras. [uma análise atenta dos citados, nesta matéria e em outras, só permite a descoberta de uma fundamentação para ser contra as nomeações: o 'crime' de ser militar. Visto que, apesar do desejo de muitos, ser militar não é crime, ao contrário é uma honra que dignifica, vale a famosa frase do Zagallo: 'vão  ter que engolir...'.]

No discurso de transmissão do cargo de comandante do Exército, o general Villas Bôas, marcou a nova era com um exagero. Para ele, os dois maiores brasileiros são Bolsonaro e Sergio Moro, os homens capazes de mudar a agenda do país, de restaurar o patriotismo. Estava, porém, exaltando terem finalmente chegado ao topo.  É preciso separar a euforia do emprego da euforia da política, do mando. Bolsonaro deu emprego para todos. O seu partido terminou virando, na prática, um partido de duas alas: a ala dos negócios da Economia, tocada por Paulo Guedes, que tinha sua própria equipe adotada pelo presidente, e o partido do Quartel.

As três Forças assumiram as suas missões como quadros de um partido. E foram tomando gosto: eles querem e a eles é permitido controlar o governo.
Há muito pouco tempo, Jair Bolsonaro era visto no alto comando do Exército como uma caricatura. Aos poucos, as tropas da reserva, que apoiavam sua candidatura, foram conquistando as da ativa até formar um partido militar bolsonarista que tem o governo sob tutela.

Rosângela Bittar, Valor Econômico