A
ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
pautou para hoje o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 442, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)
em 2017, com a pretensão de que a Corte declare a inconstitucionalidade
dos artigos 124 e 126 do Código Penal e descriminalize a interrupção da
gravidez até a 12.ª semana de gestação. Quando a ação foi ajuizada, Rosa
Weber, sua relatora, afirmou que o tema precisava de “amadurecimento”,
mas prometeu que o tribunal não deixaria a sociedade sem resposta. À
época, como agora, contudo, a única resposta que a sociedade espera da
Corte é que ela respeite a decisão dessa mesma sociedade.
Os
termos da disputa sobre o aborto são bem conhecidos. Resumidamente, os
favoráveis alegam o direito das mulheres de dispor do próprio corpo.
Sem
negar essa liberdade, os contrários afirmam que ela termina quando
começa o direito à integridade de outro corpo, no caso do nascituro.
[ditado antigo, válido, sempre atual e correto: "O seu direito termina onde começa o do outro".]
Cada um é livre para advogar quem deveria ter direito a quê.
O que é
incontroverso é que, num Estado Democrático de Direito, quem determina
quem efetivamente tem direito a que é o povo, seja indiretamente,
através de seus representantes eleitos, seja diretamente, através de
plebiscito.
A
determinação em vigor, consagrada pelo Legislativo no Código Penal de
1940, estabelece a prevalência do direito à vida do feto em detrimento
do direito de escolha da mulher, exceto quando a gravidez é não só
indesejada, mas forçada (estupro), ou quando há risco de vida da
gestante. Posteriormente, o STF autorizou o aborto de fetos
anencefálicos, dada a inexistência de expectativa de vida extrauterina.
A
Constituição não dispôs especificamente sobre o aborto. Não se trata de
descuido do Poder Constituinte.
Sua decisão foi delegar ao legislador
infraconstitucional a competência sobre o tema, mas, ao assegurar a
inviolabilidade do direito à vida, recepcionou a tipificação dos crimes
contra a vida do Código Penal.
Para contornar esse inconveniente, o PSOL
pariu a hermenêutica bastarda de que o ser humano, antes de nascer, não
teria direitos fundamentais, porque não seria uma “pessoa
constitucional”, só uma “criatura humana intrauterina”. O Código Civil,
porém, estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa no
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro”.
Um
eventual deferimento da ação traria como consequência incontornável o
acréscimo de mais uma excludente de ilicitude às já estabelecidas na
lei. Ou seja, o Judiciário estaria legislando, em flagrante violação à
prerrogativa do Legislativo.
A
única resposta cabível da Corte à ação deveria ter sido dada já em
2017, pela própria Rosa Weber: negar conhecimento para que a questão
fosse tratada pelo Poder Legislativo.
De lá para cá, intensificaram-se,
frequentemente com razão, as críticas ao Judiciário por intrometer-se na
competência dos outros Poderes.
Agora, a Corte tem mais uma vez a
oportunidade concreta de demonstrar respeito ao princípio da separação
dos Poderes.
Mas o risco de que, mais uma vez, o desrespeitará não é
pequeno.
De
fato, alguns ministros até se anteciparam. Já em 2016, num caso pavoroso
de teratologia jurídica, o ministro Luís Roberto Barroso extrapolou o
objeto de um julgamento sobre um habeas corpus e extraiu a
fórceps da Constituição um período de três meses de gestação dentro do
qual o aborto não seria ilegal, no que foi seguido por Edson Fachin e
pela própria Rosa Weber.
Não
há nada na Constituição que deslegitime a legislação vigente. Tampouco
há algo que impeça a sua eventual mudança.
O aborto pode ser legalizado,
assim como a sua proibição pode ser constitucionalizada, e inclusive há
várias propostas num sentido e no outro tramitando no Congresso.
Nesse
debate, cada 1 dos 11 ministros do STF certamente tem sua convicção
sobre o que deve ou não ser normatizado. Mas essa convicção vale
exatamente o mesmo que a de cada um dos mais de 150 milhões de eleitores
brasileiros, não menos e, sobretudo, não mais.