Vilma Gryzinski
Pela narrativa dominante, Brian Sicknick foi abatido a golpes de extintor de incêndio na cabeça, mas os fatos não batem com a versão
O que é verdade e o que é mentira? Ou o que parece mais ser verdade? Jornalistas lidam com estas questões o tempo todo, é a parte mais fundamental de sua profissão. Como todos os outros seres humanos, eles também são influenciados por aquilo que acham ser a verdade. Quando descobrem que erraram, precisam se corrigir.
Uma história assim está acontecendo em relação ao caso mais dramático da invasão ao Congresso por partidários de Donald Trump no dia 6 de janeiro: a morte de Brian Sicknick, integrante da polícia do Capitólio, a força de segurança encarregada especificamente de zelar pelos membros do Congresso americano. A versão dominante foi dada pelo New York Times: Sicknick morreu por causa dos golpes de um extintor de incêndio na cabeça, desferidos por um ou mais dos invasores. Fonte: dois agentes da lei que falaram em off.
Devido à reputação do jornal – e, também, ao desejo de que isso fosse verdade, o que confirmaria a perversão dos trumpistas -, a versão se espalhou por outros veículos, como se fosse um fato incontestável. No clima de alta volatilidade emocional e política que se seguiu, Sicknick virou um mártir. Joe Biden, pouco antes de tomar posse, foi a seu velório solene.
Todos os veículos que tinham passado meses condenando, coletivamente, as forças policiais durante os protestos raciais desencadeados pela morte de George Floyd, transformaram-se em apologistas dos homens da lei. Felizmente, uma imprensa saudável sempre tem os mecanismos de verificação que flagram as inconsistências.
Sobrou Sicknick como vítima inconteste da malta. Até agora, não saiu a causa mortis oficial. Quando falou sobre o caso, um irmão do policial disse que, na noite do dia 6, Sicknick tinha sido atingido por spray de pimenta, mas estava bem. Nada de corte na cabeça causado por extintor.
Foi uma reportagem na CNN – justo a emissora que colocou os invasores do Congresso numa categoria pior do que a dos hunos de Átila – que levantou a lebre, apontando a “falta de evidência” para enquadrar os possíveis responsáveis pela morte do policial. Não existe lugar mais cheio de câmaras de segurança do que o Congresso americano. A invasão do Congresso também foi amplamente documentada pelos próprios trumpistas, orgulhosos – e, em muitos casos, espantados – por terem conseguido entrar no Capitólio quase que sem resistência.
Daí o mistério: Como morreu o policial? Quem ou o que o atingiu? Onde estão os autores da agressão? Qual o resultado da autópsia? Por que as autoridades estão mantendo uma cortina de silêncio até agora? É inconcebível que tudo não venha a ser esclarecido. Apurar os acontecimentos que cercam o caso – inclusive a nuvem de dúvidas – e “insistir na precisão factual”, segundo disse corretamente Greenwald, não significa ter simpatias pelos invasores ou querer favorecê-los.
Se Sicknick foi morto de alguma outra maneira, isso não altera sua posição de vítima de abusos praticados pela malta. A investigação criminal não muda muito. Mas os fatos não devem ser maquiados. O mistério da morte do policial Brian Sicknick será esclarecido e o New York Times, que se retratou muito discretamente, é o principal candidato a dar o furo: com os brios atingidos, tem o máximo interesse em apurar a versão mais parecida com a verdade que conseguir descobrir. E vai dar filme ou série de TV.
Blog Mundialista - Vilma Gryzinski, jornalista - VEJA