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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Get up, stand up - Verso e reverso: você conhece alguém a favor do racismO? - Gazeta do Povo

 Paulo Polzonoff Jr

No mundo civilizado, não há um só líder minimamente relevante que defenda abertamente a superioridade de uma raça sobre a outra. Tampouco há qualquer líder atraindo multidões com a promessa de eliminar determinada raça. Simplesmente não há. Pode haver um ou outro maluco, assim como pode haver muito racista enrustido. Mas racismo assim declarado, explícito, usado como plataforma de governo não existe.



Marcus Garvey: admirador de Hitler e de Mussolini que virou guru de Bob Marley e do reggae jamaicano.| Foto: Reprodução/ Wikipedia

Todo mundo é contra o racismo. Todo mundo. Até aquelas pessoas que insistem no comentário racista. Na piadinha racista. Até aquela pessoa que acha que sua empresa não deve contratar pessoas “de cor”. Até quem usa expressões como “de cor”. Até quem fala “criado mudo”, “nas coxas” e “denegrir”. Eu o desafio a dar uma voltinha pelo quarteirão e encontrar uma só pessoa que seja a favor do racismo. Tente. Vá lá. Eu espero. (Mas tem que ser na vida real, e não na Internet, onde os racistas covardes se sentem protegidos pra exporem o lado mais vil de seu vil caráter).

A expulsão do tenista Novak Djokovic da Austrália gerou uma crise diplomática entre os governos do país e da Sérvia                             Djokovic e a briga retórica entre Sérvia e Austrália

Não encontrou, né? Eu disse! Na pior das hipóteses, se você mora perto de uma universidade federal, é possível que tenha encontrado um ou outro maluco pregando a superioridade racial dos negros sobre os brancos, quando não a necessidade de extermínio dos branquelos a fim de que haja reparação histórica. Mas são apenas uns jovens lunáticos cheios de gogó e que não abdicam da mesada do papai. O bom é que esse tipo de discurso é como acne e desaparece com a idade.

Veja bem: não estou dizendo que o racismo (verso & reverso) não exista. Pelo contrário. Há muita gente que ainda acredita que há diferenças relevantes entre brancos e negros a ponto de justificar o subjugo de uma raça por outra.  
Mas ninguém em sã consciência jamais teria coragem de expor essa ideia ao escrutínio público. E não porque seja contra a lei, como certamente pensam os positivistas que me leem neste momento. Ninguém mais bate no peito para se dizer racista porque fazer isso é social e moralmente inaceitável.

Mas a esquerda progressista identitária, sabemos, não é conhecida pela capacidade de reconhecer avanços de quaisquer tipos. Definitivamente "gratidão" não é uma palavra que faça parte do vocabulário dela. Pelo contrário. Quanto mais ressentimento houver, melhor para essas pessoas que vivem do rancor e do desejo de vingança. Daí porque em vez de ressaltar as mudanças positivas pelas quais o mundo passou nos últimos cem anos (um negro presidiu os Estados Unidos da América, cara!), a esquerda progressista identitária prefere chafurdar no passado, a fim de reparar um dado para o qual simplesmente não há reparo.

Pior: para a esquerda progressista identitária esse desejo de vingança mal-disfarçada de reparação só pode se dar por meio das (um Engov antes) políticas públicas (um Engov depois). Isto é, por meio da ação abrangente do Estado. Mas não um Estado qualquer. Estamos falando, aqui, de um Estado policialesco que se considera capaz de entrar na cabecinha dos racistas residuais, isto é, dos ignorantes, malcriados e mau-caracteres (a Internet ensina que este é o plural correto e quem sou eu para discordar?).

Aliás, aproveitando o assunto que eu mesmo levantei, são muitas as (justas) pautas da esquerda progressista identitária que avançaram no último século, sem que essa mesma esquerda progressista identitária tenha sido capaz de reconhecer tais avanços. No mundo civilizado, ninguém mais prega que mulheres fiquem em casa ou que não tenham direito a voto ou a salários iguais aos dos homens. Ninguém mais defende a prisão ou a pena de morte para homossexuais. Até travestis têm direito a mudar de nome.

A gritaria, porém, continua. E tem que continuar. Afinal, se não houver gritaria é porque o mundo lentamente vai tentando encontrar algum tipo de equilíbrio natural. E isso é inadmissível para a esquerda progressista identitária, que quer tudo “pra ontem” e da forma mais artificial e violenta possível. De preferência sob as ordens de um “déspota de bom coração” que vai mandar aquele seu tio que usou os pronomes errados para se referir a um trans negro gordo para um campo de reeducação – de onde ele sairá, oh, transformado. Com sorte, transformado justamente no trans negro gordo e anão que até outro dia mesmo feria de morte ao chamá-le de “ele”. Veja só.

No mais, quero encerrar este texto fazendo uma referência a Antônio Risério e seu artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo” – uma obra-prima da provocação jornalística. No texto, que tem gerado histeria entre a esquerda progressista identitária, Risério faz referência a “Marcus Garvey admirador de Hitler (seu antissemitismo chegou a levá-lo a procurar uma parceria desconcertante com a Ku Klux Klan) e de Mussolini—, que virou guru de Bob Marley e do reggae jamaicano, fiéis do culto ao ditador Hailé Selassié, o Rás Tafari, suposto herdeiro do Rei Salomão e da Rainha de Sabá”.

Um negro antissemita que deu origem a um culto que idealizava um ditador que se dizia herdeiro do rei Salomão.
Uau! Como não há nenhum filme ou série (de comédia, claro) sobre esse personagem abjeto, mas fascinante e, na boa, completamente maluco? Aí é que está: em se tratando de racismo, verso e reverso, a história nos brinda com esses personagens para que aprendamos com os erros deles – e não para que repitamos os mesmos erros. Mas há quem prefira derrubar estátuas.

 Paulo Polzonoff Jr, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

sábado, 30 de maio de 2020

Demétrio Magnoli: Substitua-se na bandeira o lema ‘Ordem e Progresso’ por ‘Não repara a bagunça’

Folha de S. Paulo - Uol

Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página

Na bandeira, substitua-se o lema positivista “Ordem e Progresso” por “Não repara a bagunça”, a inevitável saudação brasileira às visitas, escrita assim mesmo, do jeito bagunçado que as pessoas falam. A sugestão irônica, triste e afetuosa, circulava entre nós, nos tempos de faculdade. Hoje, 40 anos depois, a crise do coronavírus revela sua atualidade.

Um presidente negacionista decidiu que a Covid é “uma gripezinha”, recusou-se a organizar o respaldo econômico à emergência sanitária, fechou o Ministério da Saúde, engajou-se em atos de sabotagem das regras de distanciamento social. O STF reagiu transformando o país numa confederação de 27 entidades territoriais mais ou menos independentes. Na ausência de coordenação nacional, governadores, prefeitos e até juízes intrometidos costuraram uma colcha de retalhos de medidas sanitárias incongruentes. A bagunça esvaziou menos as ruas que o sentido das palavras. Do Maranhão ao Ceará, quarentenas parciais ganharam o nome de “lockdown”.

O governo paulista anunciou uma “quarentena inteligente”, confessando involuntariamente que experimentamos dez semanas de quarentena burra. Na etapa da burrice, fechou-se às pressas a economia de centenas de cidades do interior quase livres da epidemia. Na da inteligência, essas áreas serão desconfinadas, justamente na hora da chegada do vírus. A bagunça é, às vezes, cálculo eleitoral. O prefeito paulistano, um administrador que executa antes para depois planejar, o gênio de bloqueios viários e megarrodízios, clamou por um “lockdown” imposto pelo governador, sobre quem recairia o peso do fracasso, antes de girar 180 graus, temendo a paralisação de obras de apelo eleitoral.

Na capital paulista, ninguém pode andar em parques, atividade saudável e segura, mas todos já podem visitar os shoppings. No Rio, cidade que declina sem elegância, as praias continuam proibidas, mas o prefeito puro e santo excetuou as igrejas, permitindo aglomerações nos templos. Há jornalistas que culpam o povo pela dissolução das quarentenas. [o governador Ibaneis, eficiente administrador e governador do DF, foi o primeiro a declarar quarentena meia boca; - agora,  passo a passo, diante do crescimento (INFELIZMENTE) contínuo e crescente da curva que ele prometia achatar antes do final de abril, aderiu à politica do abre tudo combinada com o isolamento vertical (este defendido por Bolsonaro e repudiado pelos 'especialistas' =  e agora começando a ser aceito pelos que foram vítimas sem direito a ser ouvidos.

Comparando: isolamento vertical defendido por Bolsonaro = tudo aberto com restrição aos integrantes dos grupos de risco;
O do Ibaneis e sendo adotado por outros estados =  tudo aberto, mas com restrição aos integrantes dos grupos de risco. 
Exemplo: igrejas abrem a partir de 3 de junho, sendo proibido o ingresso de maiores de 60 anos e outros que integram o grupo de risco.]
Às vezes, a bagunça é método. No estado do Rio, sob um governador-juiz que prega a eliminação extrajudicial de suspeitos, a corrupção adaptou-se celeremente ao cenário epidemiológico. Seguindo a clássica receita de autoajuda dos investidores, de converter crises em oportunidades, firmaram-se contratos fraudulentos para a construção de hospitais de campanha.

Saúde antes de tudo. O extinto Ministério da Saúde, reduzido à condição de acampamento militar, foi colonizado por curandeiros charlatães. Curvado às ordens presidenciais, ele recomenda o uso indiscriminado da cloroquina em pacientes de Covid, contrariando as conclusões de investigações científicas abrangentes. Às vezes, a bagunça é crime. Não damos sopa para o azar. Os países europeus, bagunceiros, só exigem o uso de máscara em lugares fechados. No Brasil, somos ordeiros, rígidos, implacáveis: a Câmara estendeu a obrigação aos espaços abertos. Obedientes, as pessoas percorrem as calçadas com o apetrecho na testa ou no pescoço, manuseando-o irrestritamente, enquanto as máscaras dos motoqueiros se cobrem de películas de fuligem. Fazemos leis para chinês ver.

Nunca relaxamos. O fechamento geral de escolas é medida de eficácia improvável no combate ao coronavírus, concluiu um estudo publicado pela Lancet, revista médica de referência. Na Europa, a reabertura escolar figura entre as medidas pioneiras da flexibilização, pois a longa interrupção atinge devastadoramente famílias e alunos pobres. Mas, por aqui, isso foi relegado ao epílogo do cronograma das autoridades. “Vire-se, povinho!” —eis a mensagem de governantes tementes a Deus ou à “Ciência”.
Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página. Temos tempo para substituir o lema que atravessa a esfera azul celeste da bandeira tão amada. 

Demétrio Magnoli, sociólogo - Folha de S. Paulo



sexta-feira, 29 de maio de 2020

Algumas notas para resistir - Fernando Gabeira

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