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quinta-feira, 7 de abril de 2022

Sérvia e Hungria: Duas vitórias eleitorais para Putin na Europa - Gazeta do Povo

Filipe Figueiredo

Aliados de Vladimir Putin saíram vitoriosos nas duas eleições europeias realizadas no último final de semana
Na Hungria, Viktor Orbán foi reeleito para mais quatro anos como primeiro-ministro, enquanto, na Sérvia, Aleksandar Vucic foi reeleito para um novo mandato de cinco anos na presidência do país. Embora por motivos diferentes e com cada país inserido em um contexto distinto, ambos os governos possuem relações próximas com a Rússia, com vitórias que acenderam alguns alertas pela Europa.

As eleições húngaras foram temas de duas colunas nos últimos seis meses aqui no nosso espaço de política internacional, incluindo a anterior. Explicamos na semana passada que um dos pontos principais da campanha entre a coalizão governista de Orbán e a frente ampla Oposição Unida era a guerra na Ucrânia. O líder da oposição, Peter Márki-Zay acusava Orbán de ser complacente com Vladimir Putin e de agir como “garoto de recados” da Rússia dentro da União Europeia e da OTAN.

O governo Orbán, por sua vez, defende as suas políticas em relação ao conflito como a defesa dos interesses energéticos do país, que importa muito de seu gás natural da Rússia, e manutenção da paz
Acusava a oposição de ser “subordinada” à “políticas belicistas” vindas do estrangeiro ao defenderem, por exemplo, que a Hungria deveria ter maior papel nas sanções contra a Rússia e na coordenação do apoio material aos ucranianos.

Favoritismo e eleitorado
Comentamos também que as pesquisas indicavam favoritismo do governo. Os resultados foram bem mais amplos. Com um comparecimento eleitoral de 69,5% do eleitorado registrado, a coalizão conservadora e nacionalista do Fidesz levou 53,5% dos votos, um crescimento de mais de 4% em relação ao pleito anterior. A oposição ficou com 34,6% dos votos, muito menos do que as pesquisas previam e 12% menos do que a soma dos partidos oposicionistas na eleição anterior.

Com 5,7% dos votos, o Movimento Nossa Pátria, de extrema-direita, vai estrear no parlamento. O partido é formado por ex-integrantes do Jobbik após esse mudar suas posições nacionalistas para uma plataforma mais moderada e pró-UE. O partido promete ser oposição à Orbán, ainda mais à direita que a plataforma do governo. E como a proporção dos votos se traduz na configuração do parlamento? A coalizão de governo terá 135 dos 199 assentos, dois a mais do que antes.

Principalmente, manterá a supermaioria de dois terços, necessária para reformas constitucionais. A Oposição Unida conquistou apenas 56 cadeiras, sete a menos do que a soma dos partidos componentes no parlamento anterior. O mais humilhante para a oposição foi o fato de que Márki-Zay foi derrotado em seu próprio distrito eleitoral, de Hódmezővásárhely, onde é prefeito. O vencedor foi János Lázár, ex-chefe do gabinete de Orbán, com 52,2% dos votos do distrito. Por ser o líder da oposição, Márki-Zay tem direito ao assento no parlamento pela lista do partido.

Fecham o Parlamento as sete cadeiras do Nossa Pátria e uma cadeira para o representante da minoria alemã. Além do início da prevista luta interna na busca por culpados, o pós-eleição foi marcado pelo discurso de vitória de Orbán. Ele afirmou que venceu as eleições lutando contra “uma enorme quantidade de adversários” e que “nunca tivemos tantos adversários ao mesmo tempo"
Dentre os adversários, listou “burocratas de Bruxelas” e o “presidente ucraniano”.

Zelensky e a OSCE
O comentário provavelmente foi o troco por declarações anteriores de Volodymyr Zelensky, afirmando que a Hungria não estava agindo como amiga da Ucrânia. O presidente ucraniano chegou a, retoricamente, perguntar “Viktor, você sabe o que está acontecendo em Mariupol?”, referência ao cerco da cidade portuária por forças russas. Já Putin parabenizou Orbán por sua vitória, afirmando que "apesar da difícil situação internacional, a continuidade da parceria bilateral atende plenamente aos interesses da Rússia e da Hungria."

Na coluna passada, foi mencionado que a Organização para Segurança e Cooperação na Europa enviou uma missão para observar as eleições húngaras. Essa foi apenas a segunda vez na História que a OSCE enviou uma missão para observar as eleições de um país integrante da UE. O relatório preliminar, de 23 páginas com 117 notas diferentes, foi publicado nessa segunda-feira, dia 4 de abril. Ele conclui que o pleito respeitou os procedimentos eleitorais, mas que a disputa não foi balanceada.

Os observadores apontam três aspectos que fizeram a disputa desequilibrada. A falta de transparência dos gastos de campanha; a falta de cobertura independente na imprensa; e, mais grave, que a modificação das regras eleitorais nos últimos anos fez o partido Fidesz se confundir com o aparato de Estado na Hungria. Outros problemas foram a denúncia de tentativa de compra de votos, especialmente visando pessoas roma e a falta de proporção demográfica no registro de candidaturas. O relatório, em inglês, pode ser consultado por qualquer um dos leitores que desejar.

Cruzando a fronteira sul da Hungria, na Sérvia, 58,7% dos eleitores compareceram às urnas e reelegeram Aleksandar Vucic para um novo mandato como presidente. Teoricamente, a Sérvia é um país parlamentarista. Na prática, entretanto, a presidência possui muitos poderes e o país funciona como um semi-presidencialismo, com a primeira-ministra Ana Brnabic indicada pelo presidente e chefiando o gabinete de ministros. O fortalecimento da presidência, inclusive, foi intensificado pelo próprio Vucic. Ele foi premiê de 2014 a 2017, quando foi eleito presidente.

Sérvia e Rússia, “povos irmãos
O candidato governista recebeu 58,5% dos votos, enquanto o segundo colocado, Zdravko Ponos, levou apenas 18,3%. Sua plataforma populista, que soma liberalismo econômico, Estado de bem-estar social e conservadorismo na agenda de costumes, sai menor das eleições, entretanto. Com 120 dos 250 assentos do parlamento, perderam 68 cadeiras comparando com 2020. A eleição foi antecipada por decisão de Vucic, que mantém a maior bancada, embora agora precise de alguma aliança eleitoral para ter maioria.

Em segundo e terceiro lugares ficaram frentes partidárias mistas de oposição, com 37 e 32 cadeiras respectivamente. Outros quatro grupos partidários terão ao menos dez assentos, incluindo a estreia parlamentar do partido conservador monarquista sérvio e um movimento de extrema-direita nacionalista que abertamente reinvidica ligações com as milícias chetniks, que colaboraram com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e cometeram diversas atrocidades durante as guerras dos anos 1990.

Putin parabenizou Vucic afirmando que “considero que suas ações como chefe de Estado continuam favorecendo um reforço da cooperação estratégica que existe entre nossos países. Sem dúvida, isso é do interesse dos povos irmãos da Rússia e da Sérvia”. Ao falar em “povos irmãos”, Putin invoca a aliança histórica entre russos e sérvios, que remonta ao século XIX e foi intensificada nos últimos anos. Principalmente após a independência do Kosovo, que a Rússia utiliza como argumento para legitimar a separação de regiões habitadas por russos em países vizinhos.

Enquanto em vários países europeus ocorreram manifestações pró-Ucrânia nas ruas, em Belgrado ocorreram as principais, das poucas, demonstrações de apoio externo ao governo russo. A torcida organizada nacionalista do clube Estrela Vermelha exibiu faixas condenando a OTAN pelos bombardeios contra a Sérvia e por sua expansão, enquanto sérvios russófilos realizaram manifestações usando a letra “Z”, associada ao exército russo na Ucrânia, e as bandeiras tricolores, de cores similares, dos dois países.

Os dois resultados eleitorais do final de semana certamente são um alento para Putin. Em meio ao conflito na Ucrânia e a crescente condenação internacional contra seu governo, acompanhada de fortes sanções econômicas, ele sabe que terá dois aliados na Europa por mais alguns anos. Um nos Bálcãs, que certamente passarão por momentos de instabilidade em 2022, com as eleições na Bósnia, e outro no seio da UE e da OTAN. Certamente não é uma situação que agrada o governo de Paris, o que lembra que os franceses vão às urnas no próximo final de semana, tema da nossa próxima coluna.

Filipe Figueiredo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


quinta-feira, 24 de março de 2022

Temor de guerra com a Rússia faz Otan limitar ajuda militar à Ucrânia - Folha de S. Paulo

Aliança repete receita de sanções e aumento de entrega de armas mais leves, além de advertir a China

 Após dias falando grosso, a Otan moderou o tom e manteve um receituário convencional na sua reunião realizada para discutir o primeiro mês da guerra de Vladimir Putin na Ucrânia. "Temos responsabilidade de assegurar que o conflito não escale", disse o secretário-geral da aliança militar, Jens Stoltenberg, sem usar o termo Terceira Guerra Mundial.

Assim, foram repetidos anúncios feitos ao longo das duas últimas semanas. Haverá um incremento no envio de armas mais leves, como mísseis antitanque, à Ucrânia, e mais ajuda financeira a Kiev para tocar seu esforço de guerra.

O esperado protocolo de ação em caso de Putin usar armas de destruição em massa (nucleares, químicas ou biológicas) contra os ucranianos não foi divulgado. O norueguês Stoltenberg apenas repetiu que tal uso causaria risco de contaminação a países da Otan vizinhos à Ucrânia, e que isso "teria grandes consequências".

Foi mais próximo de uma ameaça a Moscou em sua fala, apesar de declarações anteriores mais duras. No mais, a Otan irá enviar a Kiev equipamentos de detecção e descontaminação contra o eventual uso dessas armas, seguindo a ativação de regimentos especializados que os usam em todo o Leste Europeu.

O motivo da cautela é o temor dos membros mais ocidentais da Otan de que a crise possa escalar para um conflito mundial. A Ucrânia é aliada, mas não membro da aliança, mas um ataque a um país do clube ou o envolvimento direto dele nos combates poderia levar, como disse o presidente americano, Joe Biden, à Terceira Guerra Mundial.[o que nenhum país do mundo deseja; uma escalada na guerra atual, localizada e podemos considerar 'administrada', levaria a última guerra mundial = os países ocidentais, para felicidade dos habitantes do planeta Terra, são bem conscientes para não esticar demais a corda. O ex-comediante precisa aceitar que se for necessário o Ocidente o forçará a aceitar uma paz nas condições impostas pela Rússia. 
Entre Zelensky e Putin, este é o mais odiado, mas o que tem condições de impor sua presença ao Ocidente.]

"Seria mais devastador do que agora", disse Stoltenberg, uma obviedade mesmo sem incluir o fato de Rússia e EUA detêm 90% das armas nucleares do mundo - na Otan, França e Reino Unido também têm as suas.

Ainda assim, ele citou algo que irá ser ouvido Moscou: a promessa de colaborar com planejamento de defesa de países como Geórgia, onde Putin lutou uma guerra com sucesso para evitar a entrada da nação na aliança em 2008, e na Bósnia, que se vê ameaçada pelos aliados do russo na Sérvia.

Duas reuniões subsequentes do G7 (grupo de países ricos) e da União Europeia discutirão mais sanções à Rússia, o outro instrumento usado pelo Ocidente e aliados até aqui para pressionar Putin. Biden, por sua vez, desembarcou com uma promessa de receber 100 mil refugiados nos EUA e de doar US$ 1 bilhão em ajuda humanitária a Kiev, que já viu 3,5 milhões de cidadãos fugirem do país.

Antes do começo da reunião, a aliança ouviu por vídeo o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em seu enésimo pronunciamento para pedir mais ajuda ocidental e alertar para os riscos que a Otan corre.Ele havia trazido como cartão de visitas um ataque inédito a navios russos em um porto ocupado no sul de seu país, enquanto um aliado de Putin, o norte-coreano Kim Jong-un, causou surpresa ao fazer seu maior teste de míssil nuclear capaz de atingir dos EUA até aqui. "Eu tenho certeza de que vocês sabem que a Rússia não pretende parar na Ucrânia. Membros orientais da Otan [serão os próximos]. Estados Bálticos e Polônia, com certeza", disse, atiçando nações do clube militar que mais temem Moscou.

Com efeito, ele não citou o pedido pela implantação de uma zona de exclusão aérea sobre seu país, que equivaleria a uma declaração de guerra à Rússia --e o temor, explicitado por Biden mas não muito compartilhado por exemplo pelos poloneses, de um conflito mundial.

Zelenski lembrou, contudo, a rejeição dos EUA à oferta de Varsóvia de entregar jatos de combate MiG-29 para Kiev. "Vocês podem nos dar 1% dos seus aviões, Um por cento de seus tanques. Um por cento!", falou, lembrando a necessidade de sistemas antiaéreos mais potentes.

A aliança tem 3.890 caças e aviões de ataque e 9.460 tanques de guerra principais. Antes da guerra, a Ucrânia tinha 116 jatos de combate e 858 tanques, e a Rússia, 1.021 e 3.300, respectivamente, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. Por óbvio, os números dos dois beligerantes já mudaram.

O ucraniano não falou sobre a questão da entrada de seu país na Otan, possibilidade que é motivo central declarado por Putin para sua guerra. Ele já admitiu que isso não deve ocorrer, ainda que Stoltenberg tenha citado que a política de "portas abertas" da aliança segue valendo. Até aqui, a Otan manteve um fluxo de armas para a guerrilha empreendida por Kiev: mísseis antitanque e antiaéreos portáteis, de fácil manuseio e boa eficácia.

Stoltenberg seguiu o que Biden fizera na semana passada e advertiu a China a não apoiar, nem militarmente, nem economicamente, a aliada Rússia na guerra. Não elaborou, contudo, sobre quais sanções Pequim enfrentaria neste caso.[a duvida é: será que a China está considerando as ameaças do representante da Otan?]

Ele reafirmou que a Otan deverá dobrar a capacidade militar no seu flanco leste, que hoje tem cerca de 40 mil soldados sob comando da aliança. Falou em aumentar o número de unidades multinacionais com novas bases na Bulgária, Eslováquia e Romênia. Citou a presença de dois grupos de porta-aviões, um britânico e outro norte-americano, nas águas em torno do continente, e prometeu mobilizar mais caças e sistemas antiaéreos.

Ele, que deixaria o cargo que ocupa desde 2014 neste ano e teve o mandato prorrogado até setembro do ano que vem, não deu números ou prazos exatos para esses movimentos, que alimentarão o discurso de Putin de que o Ocidente está tentando cercar a Rússia desde que expandiu-se sobre o antigo espaço da União Soviética após o fim da Guerra Fria, há 30 anos.

O Kremlin ainda não fez comentários. Na quarta (23), uma reunião do seu Conselho de Segurança foi coalhada de falas duras, com o ex-presidente Dmitri Medvedev ameaçando o Ocidente com uma escalada, talvez nuclear. O tema está na praça por cortesia de Putin. Cinco dias antes da guerra, ele comandou um grande exercício de forças estratégicas, e seu pronunciamento anunciando a invasão sugeriu que quem se intrometesse no conflito poderia sofrer um ataque atômico. Três dias depois do início das hostilidades, colocou suas forças nucleares em prontidão.O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, repetiu a doutrina nuclear russa à rede CNN na terça: se houver um risco existencial, e um confronto com a Otan, o botão atômico pode ser acionado. 

Mundo - Folha de S. Paulo/UOL


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

É dura a vida do canguru - Revista Oeste

Guilherme Fiuza 

Nossa meta é limpar tudo. E se prepare porque chegará o momento de vacinar os cangurus” 

Placa de trânsito na Austrália
Placa de trânsito na Austrália | Foto: Petr Kratochvila/ Shutterstock

– Onde o senhor vai?

Não sei ainda. Estou passeando.

– O senhor precisa informar o seu destino.

– Como assim? Eu vou aonde eu quiser.

– Não é bem assim. De qualquer forma, é necessário reportar a rota que o senhor pretende fazer.

Que história é essa? Nunca foi assim.

– Agora é.

– Por quê?

– Segurança.

– Segurança de quem?

– De todos. Segurança sanitária.

– Ok. Se é para o bem de todos…

– Qual o seu destino, então?

Deixa eu ver… Bem, vou até aquela árvore grande lá no final.

– Vai fazer o que lá?

– Descansar.

– Positivo. Seus documentos, por favor.

– Ué, preciso apresentar documentos pra descansar debaixo de uma árvore?

– Sim. Para estar em qualquer lugar, o senhor precisa mostrar seus documentos.

– Quais?

– Basta o passaporte vacinal.

– Não tenho.

– Então o senhor está preso.

Preso por quê? Ninguém me disse que eu precisava me vacinar.

– O senhor não lê jornal? Não vê televisão?

– Não.

– Por quê?

– Porque sou um canguru.

– Ah, perfeitamente. Não tinha reparado.

– Tudo bem.

– De qualquer forma, preciso prosseguir com a abordagem: o que o senhor tem nessa bolsa?

– Nada. Já falei, sou um canguru.

– Entendo. Mas os cangurus não guardam nada na bolsa?

– Às vezes carregamos nossos filhos.

– O senhor não tem filhos?

– Não é da sua conta.

– Assim vou ter que detê-lo por desacato.

– Não quis ofendê-lo.

– Ok. Já vou encerrar a abordagem. Só mais uma pergunta: o senhor joga tênis?

– Não. Cangurus não jogam tênis.

– Entendo. Mas o senhor conhece um elemento chamado Novak?

– Novak de quê?

– Novak Djokovic.

– Ele é canguru?

– Não. É um humano negacionista.

“Se o senhor estiver me escondendo algum vínculo com o elemento Djokovic, depois vai ser pior”

Nem sei que espécie é essa. Só conheço cangurus.

– Estranho. Não se relaciona com mais ninguém?

– Por quê? Deveria? Nasci aqui mesmo, sempre me bastaram os cangurus.

– Estranho. Bem, de qualquer forma, saiba que se o senhor estiver me escondendo algum vínculo com o elemento Djokovic, depois vai ser pior.

– Pior que essa conversa?

– Sim. Teremos de recolhê-lo aos campos de covid.

– A Austrália mudou mesmo.

– E ainda vai mudar mais.

– Imagino.

– Nossa meta é limpar tudo. E se prepare porque chegará o momento de vacinar os cangurus.

– …

– Por que o senhor está pulando?

– Porque sou um canguru.

– Mas ainda não liberei a sua ida para debaixo da árvore.

– Não estou mais indo pra lá.

– Para onde o senhor está indo, então?

Para a Sérvia.

Leia também “A Síndrome de Melbourne”

Guilherme Fiuza, colunista - Revista Oeste

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Get up, stand up - Verso e reverso: você conhece alguém a favor do racismO? - Gazeta do Povo

 Paulo Polzonoff Jr

No mundo civilizado, não há um só líder minimamente relevante que defenda abertamente a superioridade de uma raça sobre a outra. Tampouco há qualquer líder atraindo multidões com a promessa de eliminar determinada raça. Simplesmente não há. Pode haver um ou outro maluco, assim como pode haver muito racista enrustido. Mas racismo assim declarado, explícito, usado como plataforma de governo não existe.



Marcus Garvey: admirador de Hitler e de Mussolini que virou guru de Bob Marley e do reggae jamaicano.| Foto: Reprodução/ Wikipedia

Todo mundo é contra o racismo. Todo mundo. Até aquelas pessoas que insistem no comentário racista. Na piadinha racista. Até aquela pessoa que acha que sua empresa não deve contratar pessoas “de cor”. Até quem usa expressões como “de cor”. Até quem fala “criado mudo”, “nas coxas” e “denegrir”. Eu o desafio a dar uma voltinha pelo quarteirão e encontrar uma só pessoa que seja a favor do racismo. Tente. Vá lá. Eu espero. (Mas tem que ser na vida real, e não na Internet, onde os racistas covardes se sentem protegidos pra exporem o lado mais vil de seu vil caráter).

A expulsão do tenista Novak Djokovic da Austrália gerou uma crise diplomática entre os governos do país e da Sérvia                             Djokovic e a briga retórica entre Sérvia e Austrália

Não encontrou, né? Eu disse! Na pior das hipóteses, se você mora perto de uma universidade federal, é possível que tenha encontrado um ou outro maluco pregando a superioridade racial dos negros sobre os brancos, quando não a necessidade de extermínio dos branquelos a fim de que haja reparação histórica. Mas são apenas uns jovens lunáticos cheios de gogó e que não abdicam da mesada do papai. O bom é que esse tipo de discurso é como acne e desaparece com a idade.

Veja bem: não estou dizendo que o racismo (verso & reverso) não exista. Pelo contrário. Há muita gente que ainda acredita que há diferenças relevantes entre brancos e negros a ponto de justificar o subjugo de uma raça por outra.  
Mas ninguém em sã consciência jamais teria coragem de expor essa ideia ao escrutínio público. E não porque seja contra a lei, como certamente pensam os positivistas que me leem neste momento. Ninguém mais bate no peito para se dizer racista porque fazer isso é social e moralmente inaceitável.

Mas a esquerda progressista identitária, sabemos, não é conhecida pela capacidade de reconhecer avanços de quaisquer tipos. Definitivamente "gratidão" não é uma palavra que faça parte do vocabulário dela. Pelo contrário. Quanto mais ressentimento houver, melhor para essas pessoas que vivem do rancor e do desejo de vingança. Daí porque em vez de ressaltar as mudanças positivas pelas quais o mundo passou nos últimos cem anos (um negro presidiu os Estados Unidos da América, cara!), a esquerda progressista identitária prefere chafurdar no passado, a fim de reparar um dado para o qual simplesmente não há reparo.

Pior: para a esquerda progressista identitária esse desejo de vingança mal-disfarçada de reparação só pode se dar por meio das (um Engov antes) políticas públicas (um Engov depois). Isto é, por meio da ação abrangente do Estado. Mas não um Estado qualquer. Estamos falando, aqui, de um Estado policialesco que se considera capaz de entrar na cabecinha dos racistas residuais, isto é, dos ignorantes, malcriados e mau-caracteres (a Internet ensina que este é o plural correto e quem sou eu para discordar?).

Aliás, aproveitando o assunto que eu mesmo levantei, são muitas as (justas) pautas da esquerda progressista identitária que avançaram no último século, sem que essa mesma esquerda progressista identitária tenha sido capaz de reconhecer tais avanços. No mundo civilizado, ninguém mais prega que mulheres fiquem em casa ou que não tenham direito a voto ou a salários iguais aos dos homens. Ninguém mais defende a prisão ou a pena de morte para homossexuais. Até travestis têm direito a mudar de nome.

A gritaria, porém, continua. E tem que continuar. Afinal, se não houver gritaria é porque o mundo lentamente vai tentando encontrar algum tipo de equilíbrio natural. E isso é inadmissível para a esquerda progressista identitária, que quer tudo “pra ontem” e da forma mais artificial e violenta possível. De preferência sob as ordens de um “déspota de bom coração” que vai mandar aquele seu tio que usou os pronomes errados para se referir a um trans negro gordo para um campo de reeducação – de onde ele sairá, oh, transformado. Com sorte, transformado justamente no trans negro gordo e anão que até outro dia mesmo feria de morte ao chamá-le de “ele”. Veja só.

No mais, quero encerrar este texto fazendo uma referência a Antônio Risério e seu artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo” – uma obra-prima da provocação jornalística. No texto, que tem gerado histeria entre a esquerda progressista identitária, Risério faz referência a “Marcus Garvey admirador de Hitler (seu antissemitismo chegou a levá-lo a procurar uma parceria desconcertante com a Ku Klux Klan) e de Mussolini—, que virou guru de Bob Marley e do reggae jamaicano, fiéis do culto ao ditador Hailé Selassié, o Rás Tafari, suposto herdeiro do Rei Salomão e da Rainha de Sabá”.

Um negro antissemita que deu origem a um culto que idealizava um ditador que se dizia herdeiro do rei Salomão.
Uau! Como não há nenhum filme ou série (de comédia, claro) sobre esse personagem abjeto, mas fascinante e, na boa, completamente maluco? Aí é que está: em se tratando de racismo, verso e reverso, a história nos brinda com esses personagens para que aprendamos com os erros deles – e não para que repitamos os mesmos erros. Mas há quem prefira derrubar estátuas.

 Paulo Polzonoff Jr, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

domingo, 2 de maio de 2021

Batalha diplomática das vacinas opõe China e Rússia - O Globo

Quando a Anvisa rejeitou o registro da vacina russa Sputnik V, houve comemoração em Pequim. Para além dos aspectos comerciais na competição entre laboratórios, está em curso uma guerra diplomática da vacina, que Rússia e China travam globalmente diante da omissão das potências ocidentais. Poder e influência são os objetivos. Conta para Pequim que a CoronaVac esteja na liderança na imunização no Brasil, à frente da AstraZeneca, desenvolvida pelo laboratório anglo-sueco em parceria com a Universidade de Oxford. Mas conta mais ainda que os rivais russos sejam mantidos à distância.

Em análise recente, a Economist Intelligence Unit (EIU) rastreia o enfrentamento global entre Rússia e China na tentativa de fornecer vacinas a países emergentes e pobres. A vacina se tornou uma oportunidade única para aproximação diplomática, persuasão, conquista de influência e, naturalmente, também negócios. O poder de barganha do fabricante é grande. Na medida em que o coronavírus se tornar endêmico, haverá a necessidade de vacinação anual. A capacidade de desenvolver imunizantes será moeda de troca ainda mais forte no mercado da diplomacia e questão prioritária de segurança nacional.

Não há melhor exemplo que os embates políticos em torno da vacinação no Brasil, um dos focos mais atingidos no mundo pelo novo coronavírus. Em outubro passado, o presidente Jair Bolsonaro mandou o ainda ministro Eduardo Pazuello voltar atrás na aquisição de 46 milhões de doses da CoronaVac. Era uma tentativa de, ao mesmo tempo, atingir rivais dentro e fora do Brasil. A CoronaVac foi desenvolvida na China, é fabricada no Instituto Butantan, em São Paulo, e trombeteada pelo arquiadversário João Doria. O avanço da pandemia forçou Bolsonaro a ceder, e hoje a CoronaVac responde por mais de 80% das vacinas já aplicadas no Brasil.

Os russos também viram na pandemia uma oportunidade de ampliar sua influência na América Latina. A Sputnik V já lhes permitiu iniciar negociação na Bolívia para explorar reservas de “terras raras”, minerais usados na manufatura de produtos de alta tecnologia. Fecharam acordo com a Argentina e, no Brasil, se aliaram a políticos do Centrão e à União Química, laboratório comandado por um ex-deputado ligado ao bloco. A rejeição da Anvisa foi um revés, mas a batalha ainda não está encerrada. [ao nosso modesto entendimento o assunto está encerrado, já que desde os seus primeiros passos a Sputinik V conseguiu ser mais hermética que a chinesa, quis impor nas negociações com possíveis interessados regras draconianas de sigilo total e perdeu a confiabilidade;

a chinesa, que não começou com grande credibilidade - afinal, era uma 'cortina de ferro' x uma de 'bambu' - mas, pelo menos a FASE III foi realizada no Brasil - a Sputinik V não realizou essa fase nem na própria Russia.

A chinesa não foi autorizada por nenhuma agência merecedora de credibilidade mundial - tipo FDA, NHS (entendemos que a aprovação da Coronavac por agência chinesa e da Sputinik por agência russa, deve ser sempre considerada com reservas) situação que também ocorre com a  russa. O fato da Coronavac estar sendo utilizada no Chile soma alguns pontos ao seu score.

Restrições pontuais são feitas a todas as marcas disponíveis. Ainda que em percentuais ínfimos. Com isso é confiar em DEUS, na Anvisa e usar o que temos. Felizmente, o alerta dado ao Supremo, especialmente àqueles ministros que fanáticos por decisões monocráticas,  para NÃO INTERFERIR em assunto de Saúde Pública,  foi levado a sério e as atribuições da Anvisa não foram desautorizadas.

Tentaram abalar a credibilidade da Anvisa, fracassaram e agora é torcer para que tudo dê certo. Por estar entre as mais aplicadas, fica uma garantia que a vacina chinesa não causa mortes, o que em termos de imunizantes é uma boa garantia. Aqui o Prontidão Total, devido a maior parte estar classificada como 'antigo', temos a dizer que grande parte da higidez que a maior parte dos nossos desfruta é consequência de vacinas aplicadas no passado.

A título de incentivo, vários aqui do Blog já foram vacinados - usando as duas marcas disponíveis (no meu caso, CH, fui de CORONAVAC,  e já recebi a segunda dose, sem intercorrência.

Permanece aquela perguntinha chata, que não quer calar: quando será conhecido de forma confiável, científica, a validade de cada imunizante? A única pista que temos é sobre o usado no Reino Unido, cuja imunização começou em dezembro passado, o que leva a dedução de que os primeiros vacinados já contam com cinco meses de validade. ]

A Rússia avança também pela Europa, em especial nos ex-satélites da União Soviética. De acordo com a EIU, a alemã Angela Merkel e o francês Emmanuel Macron trataram com o russo Vladimir Putin sobre a possibilidade de a Sputnik V ser produzida na União Europeia (UE), onde a vacinação avança mais lentamente que o necessário. Se a Agência Europeia de Medicamentos aprovar, será a maior vitória de Moscou.

A diplomacia da vacina tem esbarrado em entraves geopolíticos. A Sérvia, fora da UE, deu um salto na vacinação com a Sputnik e despertou o interesse dos vizinhos. Hungria e Eslováquia fizeram encomendas da vacina russa, contrariando regra da UE de negociação única com Moscou. A Ucrânia, que tem relação tensa com os vizinhos, não deverá comprá-la. Política, negócios e saúde se misturam.

Na disputa global, a China leva a vantagem de ter em andamento, segundo a EIU, 17 projetos de vacinas contra a Covid-19, duas já em uso: CoronaVac (privada) e outra da estatal Sinopharm. Instalou uma robusta capacidade industrial de produção do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), o princípio usado em vacinas. Não apenas chinesas. O IFA da vacina de Oxford-AstraZeneca produzida em Bio-Manguinhos, no Rio, vem da China.

Os chineses têm distribuído seus imunizantes para compensar Camboja e Laos pelo apoio em disputas territoriais no Mar do Sul da China, e o Paquistão em troca da aprovação de projetos ligados à Nova Rota da Seda, empreendimento estratégico que reúne obras de infraestrutura. As vacinas de Pequim têm servido para criar um ambiente positivo para relações bilaterais futuras e também facilitar a recuperação econômica de países que já exportam commodities para a China. 
Não é coincidência que o edital da telefonia celular de quinta geração (5G) no Brasil tenha lhes aberto espaço, apesar da resistência de Bolsonaro.
Por ter a pandemia sob controle casos diários de Covid não passam de 200 há um ano —, a China conta com muita munição para gastar na diplomacia da vacina: no início de abril, aplicou internamente 115 milhões de doses e exportou a mesma quantidade, incluindo doações, a cerca de 90 países.
O avanço de russos e chineses se dá em detrimento das próprias populações.  
De acordo com a EIU, tanto Rússia quanto China têm aplicado apenas uma dose diária a cada 500 habitantes, um terço de França e Reino Unido e um quinto dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os países mais ricos tratam de imunizar primeiro suas populações, deixando o flanco aberto a russos e chineses no resto do mundo. Em regimes democráticos, não poderia ser diferente. 
Um primeiro movimento americano foi o anúncio de Joe Biden de que poderá compartilhar até 60 milhões de doses. Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia anunciaram que americanos e japoneses financiariam 1 bilhão de doses da vacina da Johnson & Johnson para o Sudeste asiático. Não se espera que seja distribuída antes do final de 2022. China e Rússia ainda aproveitam o vácuo.
  
A vantagem da disputa é fazer chegar vacinas a países pobres e menos desenvolvidos, que dependem do consórcio Covax, da OMS. Mesmo assim, os países mais ricos sairão primeiro da pandemia. Terminarão de vacinar ainda este ano, enquanto, no Brasil, vacina para todos, segundo a EIU, só em 2022. [sendo imparcial, fica fácil perceber que estamos no quarto mês do ano, e que um acréscimo inercial fará que até inicio de agosto, tenhamos vacinado mais de 150.000.000 de brasileiros - descontando a turma de até 18 anos, teremos alcançado os 90% da população-alvo.]

Opinião - O Globo 

 

 

sábado, 11 de abril de 2020

A democracia em quarentena - Revista Época

Guilherme Amado

Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental

Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.

Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.

Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.  Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos
Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. 
Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. 
No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.

Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.

Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas. Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.

No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.

Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando. “Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.

Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.  As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.

Guilherme Amado, jornalista - Época


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Na Suprema loteria, o azar de Lula e a sorte de Dirceu [situações completamente distintas]

Antes de ser preso pela última vez, em maio, José Dirceu organizou um jantar de despedida. Aos 72 anos, o ex-ministro temia não sair nunca mais da cadeia. Hoje se vê que ele exagerou no pessimismo. Logo mais, deve receber amigos em casa para assistir ao duelo entre Brasil e Sérvia.   A reviravolta aconteceu na Segunda Turma do STF, onde se decide o futuro dos réus da Lava-Jato. Nos últimos tempos, o colegiado tem sido mais generoso com os acusados do que com os acusadores. Ontem, deu decisões favoráveis a políticos do PT, do PSDB e do PP.

O caso de Dirceu seguiu a regra. O relator Edson Fachin, que tem sofrido derrotas em série, ficou isolado mais uma vez. Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski aprovaram a soltura do petista por três votos a um. O decano Celso de Mello não estava presente.  A sessão foi tensa. Ao perceber que perderia a disputa, Fachin pediu vista do processo, numa tentativa de adiar a conclusão do julgamento e, ao mesmo tempo, a libertação do ex-chefe da Casa Civil.


O resultado deu um sinal claro de que a Segunda Turma estava pronta para tirar Lula da cadeia. Isso não ocorreu ontem devido a outra manobra explícita de Fachin. Para evitar a derrota, o ministro direcionou o recurso do ex-presidente ao plenário do tribunal. [nesta decisão - que apesar dos seus méritos bagunça a 'segurança jurídica' - Fachin foi orientado por forças do BEM e com isso o condenado Lula ficará preso até agosto;

determinar a data da votação - ou seja, pautar a votação - é competência da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia e, obviamente, tem outras processos já pautados para aquele mês,  o que inviabiliza o julgamento pelo  excelso Plenário de mais um habeas corpus do presidiário Lula nos primeiros dias de agosto, não sendo improvável a ilustre presidente só encontrar data disponível para setembro.

O absurdo é que habeas corpus pedindo a liberdade do presidiário Lula ainda mereçam aceitação.
Só o ministro Fachin já indeferiu mais de 50 HC e todos sempre com a mesma argumentação - não há fatos novos a serem apresentados. ]

Desta vez, conseguiu empurrar a decisão para agosto, o que manterá o petista preso em Curitiba. Dirceu teve sorte, Lula teve azar. Assim tem se decidido a vida dos réus no Supremo, onde decisões importantes passaram a obedecer à lógica da loteria. A depender do sorteio inicial, os advogados costumam saber de antemão o que vai acontecer com seus clientes.  Alguns ministros falam abertamente sobre a divisão da Corte. A Primeira Turma, mais rígida, é chamada de “câmara de gás”. A Segunda Turma, mais garantista, de “Jardim do Éden". Quase todos fazem política com a toga, o que aumenta a sensação de que a balança da Justiça anda desregulada. [face que a lei é uma só para ambas as turmas e que soltar bandido - especialmente condenado, no caso de Lula até a própria ONU ratificou a sua condenação - é contra a lei, fica fácil concluir que Segundona é que está errada.]

Bernardo Mello Franco - O Globo
 

sábado, 12 de maio de 2018

Precisa disso?

O foro privilegiado não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55.000 pessoas em todo o Brasil


Nunca aconteceu em nenhuma democracia do mundo, em nenhuma época, um caso de político que tenha sido preso por fazer política. Alguém sabe de algum parlamentar da Inglaterra,  por exemplo, punido por fazer um discurso contra o governo? Ou de um deputado da França, Estados Unidos ou Alemanha cassado por desfilar numa passeata, fazer um comício ou organizar uma reunião com militantes do seu partido? Ou por brigar com uma autoridade qualquer? É claro que ninguém jamais ouviu falar de nada disso, nem vai ouvir falar, porque numa democracia a atividade política é livre. Ou seja: nenhum político precisa de “foro privilegiado” ou “imunidade parlamentar” para se proteger de qualquer tipo de perseguição quando está no exercício legítimo dos seus direitos e funções ─ venha a perseguição do Executivo, do Judiciário ou de onde vier. Ao mesmo tempo, segundo a lógica mais simples, vai ser processado como todos os demais cidadãos se roubar o cofre do governo ou der um tiro na cabeça do vizinho.

Crime político? Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta. O que existe é crime mesmo, previsto no Código Penal, e quando alguém comete um crime tem de responder por ele na Justiça comum. Tanto faz se for deputado, governador ou astronauta. Se é acusado de um ato criminoso, que arrume um advogado e vá se defender. Se não fez nada proibido nas leis penais, não precisa de imunidade nenhuma. Qualquer Zé Mané entende isso em dois minutos. Só não entendem os políticos, magistrados e intelectuais que raciocinam em bloco e aparecem na mídia ensinando como funciona o mundo. Na verdade, não querem entender. O que eles querem, isto sim, é impedir que os homens públicos corram o risco de ir para a cadeia ─ e não apenas por corrupção, como é normal esperar de um indivíduo que entra na vida política brasileira, mas por qualquer crime já concebido e praticado pelo ser humano desde que Caim matou Abel.

Se você estiver achando que há algo errado com essa comédia degenerada, espere pelo segundo ato. O “foro privilegiado” não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55.000 pessoas em todo o Brasil. É impossível pensar num país sério no qual existam 55.000 sujeitos que têm uma licença virtual de praticar crimes ─ pois o “foro privilegiado”, na vida real, torna praticamente impunes os criminosos que contam com esse privilégio, como diz o próprio nome da tramóia. É por isso, exatamente, que o Brasil não tem a menor chance de ser confundido com um país sério. Entram neste cardume prodigioso, além do presidente da República e do vice, todos os ministros de Estado, os comandantes das três armas e os governadores. Junte aí deputado federal, senador, prefeito, mais a ministrada dos “tribunais superiores”: o STF, o STJ, o militar, o eleitoral e até o do “trabalho”. Também estão a salvo os conselheiros dos tribunais de contas, os procuradores federais e estaduais, os desembargadores e juízes federais, os desembargadores e juízes estaduais ─ enfim, é um milagre que não tenham enfiado aí os juízes de futebol e os bandeirinhas.

Quem poderia acabar com essa aberração? A última tentativa foi feita, ao que parece, no STF. Mas não foi. No mundo das coisas práticas, mais uma vez, houve muita falação, muita data vênia e muita cara séria fazendo discurso sobre o “estado de direito” ─ mas ação mesmo, que é bom, nada. Como sempre, ficaram ciscando durante horas a fio numa língua que poderia ser o servocroata (pior: se fosse em servocroata um cidadão da Sérvia ou da Croácia, pelo menos, iria entender alguma coisa), e no fim acabaram não indo nem para diante, nem para trás e nem para os lados. Qual é o problema dessa gente? 

Existem no mundo coisas permitidas e coisas proibidas. As coisas proibidas não podem ser feitas ─ nenhum cidadão pode cometer estupro, guiar embriagado ou assaltar um banco. Não há exceções. Em lugar nenhum está dito que há dois tipos de estupro, por exemplo ─ o cometido por um indivíduo comum e o cometido por um dos 55.000 portadores de “foro privilegiado”. Se o senador, o conselheiro de contas ou o “juiz do trabalho” praticarem algum destes crimes, paciência. Vão ter de ser indiciados em inquérito policial, denunciados, julgados e punidos. Fim de conversa.

Não aqui. Aqui as leis são feitas para a conversa não acabar nunca. Os leigos podem não entender isso ─ mas é preciso preservar os “agentes do Estado” de acusações injustas, não é mesmo? Se não for assim o Brasil vai acabar virando uma baderna.

J R Guzzo - Publicado na edição impressa de VEJA

 

domingo, 21 de agosto de 2016

Equipe masculina de vôlei vai em busca de mais uma medalha de ouro para o Brasil

Onde ver os brasileiros no último dia do Rio-2016

Depois de mais de duas semanas de muita emoção, os jogos olímpicos do Rio-2016 chegam ao fim na noite de hoje. Com seis ouros, seis pratas e seis bronzes até agora, o Brasil já fez a sua melhor campanha em Olimpíadas e ainda tem mais uma medalha garantida na final do vôlei de quadra masculino, quando o Brasil enfrenta a Itália em busca de mais um ouro. 
 
E mais: o dia começa com a maratona masculina e segue repleto de finais importantes, no basquete, no handebol masculino e na ginástica rítmica.

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Atletismo: a prova da maratona masculina acontece na manhã desse domingo, às 9h30. A largada é no sambódromo e o pelotão segue por diversos bairros da cidade. Solonei da Silva, Marílson Gomes dos Santos e Paulo Roberto de Paula são o Brasil na corrida. 
 Vôlei: depois de passar dificuldade na fase de grupos, onde enfrentou a França num jogo de vida ou morte, a seleção brasileira masculina de vôlei encontrou o seu melhor jogo e chegou na final depois de uma vitória convincente sobre a Rússia. Hoje eles enfrentam a Itália, uma das seleções que derrotou o Brasil na primeira fase, em busca da sua terceira medalha de ouro olímpica, a partir de 13h15m.

Basquete: a favoritíssima seleção de basquete masculina americana enfrenta a Sérvia em busca de mais um ouro olímpico, às 15h45, enquanto Austrália e Espanha se enfrentam para ver quem fica com o bronze, a partir de 11h30m.

Handebol: outra modalidade que terá sua final nesse domingo, a partir das 14h. França e Dinamarca se enfrentam para ver quem fica com a medalha dourada.

A FESTA OLÍMPICA NA CIDADE
No Porto Maravilha:
20h - Exibição da cerimônia de encerramento, nos palcos Encontros e Tendências
18h - Festa baile charme do Viaduto de Madureira, no palco Amanhã

No Parque Madureira:

18h - O encontro de carnavais recebe a Mangueira e o Cordão do Boitatá
20h - Transmissão da cerimônia de encerramento, no palco Madureira

Fonte: O Globo

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Vôlei: lamentavel, China para o trem do Brasil

Time de Lang Ping derrota a seleção brasileira até então invicta da Olimpíada e fará semifinal contra estreante Holanda; Zé Roberto não comentou sobre sua permanência como treinador

O sonho do tricampeonato olímpico da seleção brasileira feminina de vôlei virou pesadelo. Na noite desta terça-feira, o Brasil perdeu para a China por 3 a 2 (25/15, 23/25, 22/25, 25/22 e 13/15), após campanha em que sequer havia perdido sets. Essa seria a sétima vez seguida que a seleção avançaria às semifinais. O Brasil termina o Rio-2016 na quinta colocação, a pior campanha desde Seul-1988, há 28 anos.

— Vejo uma coisa mais pontual, foi o jogo mesmo. Num geral, elas foram melhores. E hoje foi um dia negativo para a maior parte da delegação brasileira. Handebol, futebol, polo, a Larissa (vôlei de praia). A gente fica triste em ver que está todo mundo sofrendo. Todo mundo torce por todo mundo, mas não pode influenciar (os outros resultados) e não foi o caso — disse o técnico Zé Roberto, que ao final da partida, foi consolar o neto Felipe, de seis anos, que estava chorando na arquibancada. — Quando ele chegou chorando lá, lógico que aperta mais o coração. Mas o avô tem que ficar firme. O que expliquei para ele foi que isso faz parte da vida, um dia a gente ganha, no outro a gente perde. Que ele tem de aprender isso também, que o outro time jogou melhor e mereceu. O mais bonito, disse a ele, era a festa que todo mundo estava fazendo. A gente só tem que agradecer de estar aqui com todo mundo, uma emoção enorme, e a gente precisa treinar mais para ganhar.

Quem viu o primeiro set, em que as chinesas fizeram apenas 15 pontos, não entendeu como o jogo virou a favor das rivais. As brasileiras erraram demais e deixaram de forçar os saque. As chinesas, por sua vez, acreditaram no jogo e não deixaram a bola cair. O passe do Barsil não foi tão efetivo como o passae chinês, que isolou Ting Zhu aparenas para pontuar. Ela marcou 28 pontos e foi o destaque do jogo.

A China enfrenta, nesta quinta-feira, às 22h15, a Holanda que venceu a Coreia por 3 a 1 (25/19, 25/14, 23/25 e 25/20). A outra semifinal será entre Sérvia e EUA, às 13 horas. As sérvias derrotaram a Rússia por 3 a 0 (25/9, 25/22 e 25/21) e as americanas ganharam do Japão por 3 a 0 (25/16, 25/23 e 25/22). 

As quatro seleções da chave A, a mesma do Brasil, foram eliminadas nas quartas de final. Para Zé Roberto, o fato da chave ter sido a mais fraca não foi o motivo das eliminações. Segundo ele, a questão foram os confrontos. 

Ao final da partida, ele disse que agradeceria suas jogadoras pelo trabalho do ciclo olímpico inteiro.— Eu vou agradecer por todo o trabalho que elas fizeram. Não pode se jogar no lixo uma história linda que elas têm dentro do esporte no Brasil — comentou o treinador, que também agradeceu a torcida que valorizou o empenho de suas atletas. — O povo brasileiro valoriza o esforço, quando vê que o time corre e se dedica. Isso sempre se valorizou. As pessoas aplaudem e isso é gratificante. Nós estamos vivendo um clima na Olimpíada com o povo valorizando o desempenho dos atletas mesmo na prata ou no bronze.

ESTREANTES
Essa é a primeira vez que a Holanda, 11.ª do ranking mundial, e a Sérvia, sexta, chegam à zona de medalha na Olimpíada. Já a China, chega pela sexta vez na disputa das semifinais. Foi campeã em Atenas-2004 e Los Angeles-1984. E tem prata em Atlanta-1996, bronze em Pequim-2008 e Seul-1988.

A melhor colocação da Holanda foi um quinto lugar em Atlanta-1996 (foi sexto em Barcelona-1992). Já a Sérvia ficou em quinto lugar em Pequim-2008 (e 11.º em Londres-2012).
Perguntado se continuaria à frente da seleção, Zé Roberto disse que era cedo para falar.
— Sinceramente eu não sei. Tenho que conversar com as pessoas da Confederação, avaliar tudo o que aconteceu. Difícil dizer. Estou muito triste para falar alguma coisa de futuro. Minha família sempre apoiou, elas estão sempre junto, próximas, isso nunca foi nem será um empecilho

Fonte: O Globo
 

domingo, 18 de outubro de 2015

O pianista

Ahmad se decidiu pelo êxodo no dia em que fez 27 anos. Naquela madrugada não conseguira alimentar o filho faminto

Música não precisa de tradução nem visto de entrada. É linguagem universal. Além de suas outras utilidades mil, ela serve de bálsamo para vidas à deriva, atravessa muros e fronteiras, fura bloqueios e não pesa na bagagem. Que o diga o jovem sírio Ayham Ahmad.

Domingo passado, apesar do frio do cão que prenuncia um inclemente inverno europeu, 24 mil pessoas participaram de um concerto ao ar livre na monumental Königsplatz de Munique. Cantaram, dançaram, fizeram selfies e foram felizes durante mais de duas horas na histórica praça traçada dois séculos atrás para concorrer com a Acrópole de Atenas, e de grande serventia para mastodônticos comícios nazistas.

Só que, desta vez, a galera tinha a cara de uma Alemanha nova. Metade era refugiada de guerra exaurida pelo êxodo e recém-aportada na Baviera; a outra metade era de voluntários alemães que os acolheram ou queriam expressar solidariedade. Organizado em menos de duas semanas e intitulado “Danke-Konzert” (concerto de gratidão), o megashow reuniu as bandas indie mais populares do país. O próprio prefeito da cidade se encarregou de empunhar uma guitarra e entoar “Não somos apenas nós”, canção pró-refugiados que o público parecia conhecer. “O mundo é grande o suficiente. Não somos só nós. Alô, Nova York, Rio, Rosenheim (sede administrativa da Baviera), participem também”, incentivou ele, referindo-se à transmissão on-line.

Ahmad nunca tocara para tamanho mar de gente. Muito menos para um mar de caucasianos com cartazes a proclamar que “Nenhum ser humano é ilegal”. Enrolado ao tradicional keffieh palestino no pescoço, ele subiu ao palco como atração principal — seis meses atrás sua imagem tocando um piano detonado entre os escombros de Yarmouk, na Síria, havia corrido mundo. Ele se tornara o cancioneiro do sofrimento sírio e sua música era ouvida como trilha sonora do horror.

Domingo passado, Ahmad tocou canções de sua gente num Yamaha acústico CP de última geração. Todos entenderam o misto de dor e alegria, mesmo quem não entendia árabe. Sua mulher, dois filhos pequenos, o piano carbonizado e o bairro de refugiados palestinos onde nascera haviam ficado para trás. Ele teve sorte. Só no mês passado morreram afogados no Mar Egeu 144 refugiados da mesma travessia — 44 eram crianças. E dois dias atrás morreu a primeira vítima de um dos países europeus que lhes são hostis — foi baleada pelas forças policiais da Bulgária.

A Yarmouk do pianista fora erguida seis décadas atrás nas franjas de Damasco, capital da Síria, como campo de acolhimento para palestinos fugidos de Israel. Consolidada como bairro, chegou a abrigar quase 700 mil pessoas. Hoje, restam no máximo 18 mil a vagar entre ruínas. Ahmad se decidiu pelo arriscado êxodo em abril deste ano, no dia em que completava 27 anos. Naquela madrugada não conseguira alimentar o filho faminto. “Saí de lá porque a vida ali cessou”, explicou à repórter do “Huffington Post” que o perfilou.

Sobrevivera com a família a quatro anos de guerra civil com destruição e morte por toda parte. Primeiro, foram os bombardeios da Síria e o estrangulamento de Yarmouk por bloqueio total, levando os moradores a se alimentarem de plantas, gatos, cachorros e macacos. Depois, já de joelhos, o bairro-cidade foi ocupado pelos homens de preto — os jihadistas do Estado Islâmico (EI). A água acabou, a farinha e o pão sumiram e a música, considerada haram (infiel), foi proibida.

Filho de violinista, Ahmad tocava piano desde os 6 anos de idade e havia estudado música em Homs até a guerra civil inviabilizar qualquer atividade. De volta à Yarmouk destruída, ele decidiu instalar a céu aberto seu surrado piano e passou a tocar entre escombros, para aliviar a alma de quem o ouvisse. Outros músicos de ocasião se juntavam a ele para cantarolar a céu aberto sobre a vida. Com a ocupação do EI, a vida para ele cessou.

Ahmad ainda tentou camuflar o piano numa carreta improvisada coberta por papelão ao partir para Damasco, onde deixou a família. Mas os jihadistas interceptaram o comboio, encharcaram de gasolina o instrumento e o incendiaram à sua frente.  O resto da saga do músico se assemelha a de tantos outros. De Damasco, ele seguiu sozinho a pé, de ônibus, barco inflável, navio grande, trem: Homs, Hama, Dikili, Lesbos, Atenas, Macedônia, Bulgária, Sérvia, Croácia, Áustria e, por fim, Munique, onde chegou em setembro, cinco meses depois de partir.

Como ele mesmo explica, na terra em que morava, a opção era juntar-se a alguma facção ou esperar pela morte. Decidiu esperar pela morte tocando piano e cantando. Agora em terra estrangeira, continua tocando piano e cantando. Espera pela vida ao lado da mulher e filhos. Um dia talvez. “Quero dizer ao mundo que somos apenas civis, que amamos a música”.

Em tempo — Decretado o fim de fotos de mulheres nuas na “Playboy”, quem continuar a comprá-la pode dizer, agora sem cinismo, que o faz para ler as entrevistas de qualidade da revista. Já quem é adepto de obscenidades hard core na vida real basta acompanhar a política praticada em Brasília.

Por: Dorrit Harazim, jornalista