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quinta-feira, 11 de julho de 2019

Vitória ‘terrível’ para Bolsonaro

Perfil de vaga do STF recai sobre o evangélico Bretas

[ao abrir espaço para outros nomes, Bolsonaro preserva Moro, já que agora a imprensa vai procurar queimar possíveis candidatos, começando pelo juiz Marcelo Bretas.]

Publicado no Valor Econômico  
 
No dia em que a Câmara dos Deputados começava a aprovar a reforma mais requisitada pelo mercado, o presidente Jair Bolsonaro iniciou a manhã parafraseando a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a quem já dedicou palavras pouco elogiosas. Em março, Bolsonaro disse que ouve “qualquer ministro, até a Damares”. Comparada a um patinho feio da Esplanada, a pastora – que no discurso de posse afirmou que “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã” – parece ter ganhado e inspirado o coração e a mente do presidente. Em culto realizado na Câmara pela Frente Parlamentar Evangélica, Bolsonaro confirmou ontem o plano: “Poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico”.

Ao arremedar o advérbio tão caro a Damares, o presidente batiza as escolhas de seu governo. Arrisca ser comparado a Ivan, o Terrível (1530-1584), o primeiro czar russo. Autoritário, muito religioso, com mania de perseguição, Ivan teria matado o filho e o neto, depois de espancar e levar a nora ao aborto, porque julgou suas roupas indecentes. Historiadores atribuem a fama de Ivan tanto à crueldade – comum à época – quanto a graves transtornos mentais. Bolsonaro não é o czar. Até porque o codinome “Russo” já foi reservado, pelos procuradores da Lava-Jato, ao ministro da Justiça Sergio Moro, segundo mensagens vazadas pelo site “The Intercept”.

Com a declaração sobre o Supremo, Bolsonaro, quem sabe, até crie esperanças na ministra, que além de pastora é, furtivamente, advogada. Mas é o juiz federal da Lava-Jato no Rio, Marcelo Bretas, quem já se animou. Começa a recair sobre ele a expectativa da indicação. Frequentador da igreja Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, Bretas foi criado numa família evangélica e tem um irmão pastor. Bastante ativo nas redes sociais, 20 das 70 mensagens (28,5%), desde novembro, que constam em seu perfil do Twitter tem conotação religiosa.
Citam versículos de livros da Bíblia (Provérbios, Salmos, Isaías, I Timóteo, Habacuque, Lamentações), mostram sua admiração pela cantora gospel Bruna Karla, elogiam e parabenizam pastores (Marco A. Peixoto e Israel Belo de Azevedo) e reinterpretam, de modo particular, “O espírito das leis” (1748) com a célebre instituição de freios e contrapesos: “A teoria da separação dos Poderes foi mesmo idealizada por Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aprox. 2.500 anos antes dele (por volta de 750 a.C): ‘Porque o Senhor é o nosso Juiz; o Senhor é o nosso Legislador; o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará'”.

É possível que numa eventual sabatina no Senado, algum parlamentar perguntasse a Bretas o que quis dizer com esse tuíte. A teocracia não deve fazer parte das convicções do magistrado. Mas ser indicado ao Supremo é, em suas próprias palavras, “o sonho de qualquer juiz” – foi o que disse em entrevista recente, sobre a possibilidade.  Como revelou em maio, Bolsonaro também tem um acordo com Moro, que teria aceito abandonar a carreira de juiz para ser ministro em troca da vaga no Supremo. “Eu fiz um compromisso com ele. Ele abriu mão de 22 anos de magistratura. A primeira vaga que tiver lá [no STF], estará à disposição”, disse o presidente. O toma-lá-dá-cá, contudo, foi negado logo em seguida por Moro. E, desde então, o ministro da Justiça passou a ser acossado pelas publicações homeopáticas que dão conta de sua suposta parcialidade quando juiz responsável pela Lava-Jato em Curitiba. Com o governo Bolsonaro ancorado na popularidade de Moro – e no titular da Economia, Paulo Guedes – o ministro com o perfil de Bretas ganhou destaque nos planos de Bolsonaro.

Se na primeira vez em que abordou o assunto, em 31 de maio, o presidente deu um tom de conjectura – “Será que não está na hora de termos um ministro do STF evangélico?” – agora Bolsonaro afirma se tratar de um “compromisso”. Não à toa. Com a indicação, o presidente agradará ao segmento do eleitorado que lhe é mais fiel. Segundo a pesquisa do Datafolha do fim de semana, o país está dividido em três, igualmente, entre os que amam, os que detestam e os que acham a administração Bolsonaro apenas regular. No meio evangélico, porém, o apoio praticamente dobra.
Para o presidente também faz sentido usar o STF como moeda de troca substituta. A maior promessa de campanha feita aos evangélicos – a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém – é algo improvável e que Bolsonaro vem empurrando com a barriga, para a irritação nem sempre discreta dos líderes pentecostais.

A primeira das duas vagas a que Bolsonaro terá direito a preencher será a do decano Celso de Mello, que se aposenta em novembro do ano que vem. Antes de ser evangélico, contudo, o indicado deverá ser, com toda probabilidade, “terrivelmente” bolsonarista. Pelo Twitter, Bretas publica mensagens que jogam água no moinho do governo – como o apoio às manifestações de 26 de maio -, retuíta e responde posts de bolsonaristas como os deputados federais Carlos Jordy (PSL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, agradece condecoração na Assembleia Legislativa proposta por deputada do PSL, estampa foto de Bolsonaro com o presidente americano Donald Trump e corrobora posições polêmicas do ocupante do Planalto, como a defesa do trabalho infantil. Quem precisa indicar Moro quando se tem Bretas?

Nova relação
Sem citar nominalmente Bolsonaro, nem Paulo Guedes, mas com menções ao ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e ao Centrão, o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) fez de seu discurso da vitória, na aprovação da reforma da Previdência, uma declaração de independência do Parlamento, demonstração de força e desabafo. Com o placar elástico de 379 a 131 – 71 votos acima do necessário – Maia foi aclamado pela Casa e ‘roubou’ o resultado do Planalto, a quem deu o recado: “Vamos precisar construir uma relação diferente daqui para frente”. Lacrou.


Cristian Klein

 

sábado, 13 de outubro de 2018

A pena de morte [inclui, sem limitar, o aborto, seja legalizado ou permitido, entre as modalidades de homicidio praticadas pelo Estado.]

Nenhuma modalidade de homicídio, em especial a praticada pelo Estado, é admissível

Tal e qual diz aquela canção do Nelsinho Motta, nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará; a vida vem em ondas, como o mar! E sempre, digo eu, uma coisa puxa a outra. Tenho em minhas mãos, agora, um livro de Ary dos Santos publicado em Lisboa, em 1935. Tomei um baita susto, pois sei que o Ary nasceu em dezembro de 1937, em Lisboa, e se foi, também de Lisboa, em janeiro de 1984.

Descobri em seguida que o primeiro o do livro – foi um advogado lisboeta que escreveu sobre a morte do feto (tenho seu livro comigo porque cá estou a pensar no tema da pena de morte). O segundo Ary, declamador e poeta, nada tem que ver com esse tema. Ouvi-lo declamando As portas que Abril abriu me fascina e enternece. Vá ao YouTube, você que está a ler estas linhas agora, e ouça seu poema, declamado por ele mesmo. Será bem melhor do que me ler.

Retorno, contudo, ao tema a respeito do qual me dispus a escrever e, entre os textos que separei, encontro um belo artigo do bisavô do meu amigo Nelsinho. Cândido Nogueira da Motta foi professor catedrático nas Velhas Arcadas do Largo de São Francisco até 1937. Tal como seu filho, Cândido Motta Filho, também ministro do Supremo Tribunal Federal. As Velhas Arcadas, o STF e meu afeto por Nelsinho nos aproximam. Se tivéssemos a mesma idade e o ontem fosse hoje, agora, frequentemente atravessaríamos o Largo de São Francisco e a Praça do Ouvidor para almoçarmos, os quatro, no Itamaraty.

Antes, no entanto, de ir ao artigo do bisavô do Nelsinho recorro a Cesare Beccaria, extraindo de um trecho de Dos Delitos e das Penas a seguinte lição: a pena de morte é funesta para a sociedade em razão da crueldade; se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis – cujo fim é suavizar os costumesdeveriam multiplicar essa barbárie? Não é absurdo que as leis que punem o homicídio ordenem um morticínio público? O que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da Justiça arrastarem um culpado à morte, com cerimônia, tranquilidade, indiferença? E enquanto o infeliz espera o golpe fatal, por entre convulsões e angústias, o juiz que acaba de o condenar deixar friamente o tribunal para ir provar, em paz, as doçuras e os prazeres da vida e talvez louvar-se, com secreta complacência, pela autoridade que acaba de exercer; não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania?

Partindo exatamente de Beccaria, Amadeu de Almeida Weinmann afirma em seu Pena de Morte e o Sistema de Penas no Brasil ser ela, porque irrevogável e definitiva, imperdoavelmente ímpia. A justiça humana convive com a possibilidade do erro ao pretender impor essa pena. Pena que, executada, não admite correção, caracterizando, digo eu, um homicídio público, estatal. A ninguém, incluídos os juízes e tribunais, se pode admitir a capacidade de decidir quem não é titular do direito de existir. A pena de morte é absoluta, impedindo a possibilidade de comprovação – hoje, amanhã ou depois – de algum possível erro judicial. Bem a propósito Weinmann lembra o terrível equívoco que levou à execução de Sacco e Vanzetti, nos Estados Unidos, e outros mais. 

Retornando ao belo texto do professor Cândido Nogueira da Motta, publicado na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, dou-me conta de que tantas são as suas lições que aqui não as posso transcrever literalmente, limitando-me a rememorar dois dos seus ensinamentos. O primeiro na afirmação de que, se a pena deve ser exemplar, a prisão por toda a vida preenche esse fim melhor do que a pena capital. Isso porque oferece uma lição sempre presente e o último suplício é esquecido em poucos dias. Ademais, inúmeras vezes a pena de morte é imposta a partir de simples presunções e circunstâncias, resultando de provas que não são cabais, o criminoso algumas vezes não sendo nem mesmo de todo imputável. Consubstanciando pena irreparável quando imposta em razão de erro judicial, Cândido Nogueira da Motta lembra o caso de John Brown, que acabou no cadafalso porque propugnava, nos Estados Unidos, pela liberdade dos escravos, proclamada poucos anos depois. O remorso dos juízes, diz ele, há de ter sido eterno. 

O outro, nas derradeiras linhas do seu texto, página 200 do volume XXIV da revista da minha Faculdade de Direito, no qual refere a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, então vigente, maio de 1928: "A Const. Federal, nos §§ 20 e 21 do art. 72, aboliu a pena de galés e a de morte, reservadas, quanto a esta, as disposições da legislação militar em tempo de guerra. Queiram ou não os inimigos das nossas instituições políticas vigentes, esse benefício verdadeiramente cristão se deve à nossa bem-amada República que, para a defesa social, não precisa mais de que de medidas razoáveis e humanas e jamais empregou outras".  

Lembro ainda, quase a encerrar este texto, uma afirmação do cardeal Óscar Maradiaga reproduzida em entrevista publicada pelo jornal O Globo, em 21 de setembro de 2018: a pena de morte não pode ser aceita porque vai contra Deus e, "se não se aceita a pena de morte, não se pode aceitar o aborto, que é a pena de morte para um inocente que não pode se defender". 

Nenhuma modalidade de homicídio, seja lá quem o pratiqueem especial o Estado, ao aplicar penas de morte é admissível. Mesmo o bom juiz, que – qual afirma Santo Agostinho – nada faz por seu próprio arbítrio, pronunciando-se segundo as leis, não em busca de justiça. A plena compreensão do que ensina o profeta Isaías (32,15-17) antecipa momentos de paz que um dia alcançaremos, a lex permanecendo no deserto e a Justiça (Jus) predominando nas terras que estavam desertas, passando a reinar em campos férteis, propiciando-nos repouso e segurança para sempre. 

Eros Grau -  Advogado, professor titular, ex-ministro do STF - Opinião - O Estado de S.Paulo