O que
leva um juiz a decidir assim ou assado? Certamente não é a letra fria
da lei, até porque leis não são formadas apenas por letras, que dirá
frias, e magistrados não são “a boca que pronuncia as palavras da lei,
seres inanimados, que não podem nem moderar a força ou o rigor
daquelas”, como sustentava o grande Montesquieu, envolto em uma certa
utopia. Juízes, humanos que são, [a maioria, visto haver uns poucos que se consideram 'deuses'.] agem conforme seus conceitos e
preconceitos, certas vezes sob pressão da opinião pública, e, entre nós,
alguns deles, sobretudo os de hierarquia superior, até esquecem o
decoro inerente à toga para, às escâncaras, beneficiarem seus afetos e
prejudicarem seus desafetos, como amiúde debatido neste espaço.
Nos meus anos
mais verdes, deparei, na rotina forense, com uma magistrada, assumida
militante marxista que já conhecia, da mídia nos anos 90, por suas
decisões invariavelmente contrárias às privatizações da era tucana.
Atuando em ações em curso na vara federal por ela capitaneada,
testemunhei sua indisfarçável má vontade em receber causídicos como eu,
que lá iam expor as razões de seus clientes, em geral empresas
multinacionais cujos simples nomes faziam a doutora torcer o nariz.
Já no início
do milênio, tive notícia de uma sessão solene realizada na Alerj, em
celebração aos 82 de fundação do Partido Comunista do Brasil, e, como eu
bem poderia imaginar, lá estava ela, anunciada como juíza e convidada
de honra. Em sua fala de defesa aguerrida do movimento trabalhista,
sustentou que sua condição de magistrada a impedia de ter filiação
político-partidária, embora tenha vibrado com aquele evento partidário, e
proferido, sem hesitação, as seguintes palavras de júbilo: “felicito o
Partido Comunista do Brasil pela importância que tem nas conquistas que
os trabalhadores brasileiros tiveram na legislação e na economia deste
País[1].”
Como ficaria o dever de isenção daquela senhora em eventuais ações, sob
sua jurisdição, que envolvessem a sigla por ela tão festejada?
Da mesma
forma, embaralhando suas funções de togada à paixão pela militância,
veio a integrar a chamada Frente contra a Privatização da Saúde, em cujo
âmbito proferiu uma palestra onde execrava qualquer iniciativa
privatista, afirmando que “o capital é diabólico. Eles querem um lucro
mais livre, portanto não interessa, por exemplo, privatizar o
equipamento do hospital, mas sim o recurso público[2].”
Por óbvio, uma juíza federal, cuja competência abrangia órgãos federais
(incluindo unidades hospitalares) passíveis de serem privatizados, e
que poderia, a qualquer momento, ter de decidir eventuais litígios em
torno da regularidade de processos de privatização, jamais poderia ter
manifestado opiniões ideológicas sobre a matéria. Tal desvio refletiu
uma formulação de juízos apriorísticos sobre casos, fora dos autos, em
uma excrescência mais tolerada, a cada dia, em um país de pouco ou
nenhum apreço a vínculos institucionais.
Algum tempo
após esses eventos, as ondas da atuação forense tornaram a me conduzir à
praia da doutora, à qual aportei, dessa vez, como náufraga a perigo,
até mesmo de perda da minha licença. De fato, depois que eu e outros
colegas à frente de um certo caso ousamos descumprir uma determinação
manifestamente ilegal da togada e apresentar o recurso cabível contra a
decisão, a magistrada, em fúria, representou contra todos nós junto à
OAB, exigindo a suspensão de nossos registros profissionais. Felizmente
para nós, a pretensão da iracunda senhora foi frustrada; porém, ficaram a
inquietação gerada pelo capricho de uma militante de toga e a dor de
experimentar, na pele, o arbítrio impune.
Naquela
época, a doutora se via às voltas com denúncias, perante o CNJ, de
liberação de contas de FGTS por ela autorizada de forma supostamente
fraudulenta, névoas estas que ameaçaram sua indicação ao TRF2[3].
No entanto, como, no Brasil, o corporativismo é tão antigo quanto a
própria arbitrariedade, e, segundo o ditado, “quem tem padrinho não
morre pagão”, o imbróglio não tardou a ser dirimido, e a magistrada
devidamente empossada na segunda instância da nossa justiça federal, com
proventos ainda mais gordos e poderes ainda mais amplos[4].
De lá para
cá, o ovo da serpente eclodiu, e os casos de ativismo, como o da aludida
juíza, se tornaram muito mais frequentes, e sua constatação em níveis
hierárquicos cada vez mais elevada.
Como qualquer sinistro – e creio que
os abusos togados são, no momento, nosso desastre nacional de maior
gravidade! -, essa torrente de desvios se originou a partir de fatores
múltiplos, dentre os quais a natureza branda das punições impostas pela
Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) a togados infratores, destinados,
nas hipóteses de práticas mais gravosas, à aposentadoria compulsória com
a percepção dos nababescos rendimentos, como já debatido em detalhes
neste espaço.
Em sociedades humanas, a percepção inequívoca da
impunidade é quase que um chamamento ao crime.
Igualmente
relevante para tamanha catástrofe me parece a atual forma de nomeação
aos tribunais superiores, mediante indicação presidencial, sabatina no
Senado e observância aos vagos requisitos de reputação ilibada e notório
saber.
Ora, se quem decide acerca da probidade e dos conhecimentos são
exatamente os políticos que, por força de sua prerrogativa de foro,
somente poderão ser julgados pelo postulante e seus futuros pares, salta
aos olhos de cada um de nós, cidadãos comuns, o caráter farsesco da
inquirição, em um autêntico “jogo de cartas marcadas”.
A
promiscuidade extrema entre os universos político e jurídico que, em
países mais desenvolvidos, caminham em paralelo, sem pontos de
tangência, aqui deu lugar aos episódios escandalosos protagonizados pela
togada aludida no trecho inicial deste texto. Uma vez banalizada,
tamanha proximidade ensejou eventos bem atuais, que deixam boquiaberto
qualquer cidadão afeito aos valores civilizacionais. Assim foi com o
festim da diplomação do governante de plantão, já comentado aqui[5],
e com o recente convescote do supremo togado Lewandowski no movimento
ultrapartidarizado de extrema esquerda MST, confraternizando com maciça
militância petista[6],
e com críticas ácidas ao que chamou de “democracia liberal burguesa”,
mediante as quais desferiu um golpe mortal em todo o nosso Código Civil e
na legislação que assegura nossas liberdades individuais, a começar
pela Constituição Federal que deveria ser guardada pelo militante de
toga.
Na mesma
toada de escárnio, vieram a público certos “cacoetes” do novo titular da
13ª Vara Federal de Curitiba, a outrora icônica Vara da Laja-Jato, no
momento presidida por um togado que fez doações à campanha do ocupante
do Planalto, e adotou, como sua identificação no sistema eletrônico
judiciário, a sigla “LUL22”[7].
Teria sido um código escolhido ao mero acaso, ao sabor da numerologia,
do tarô ou outras searas místicas?
Tão intrigante quanto a singularidade
desse togado é a passividade do Ministério Público, que, apesar de
fiscal da lei e autor da imensa maioria das ações penais, não divulgou
qualquer movimentação no sentido de arguir a suspeição do magistrado.
Igualmente estarrecedor é o silêncio do CNJ, órgão constituído com o
nobre fim de controlar abusos judiciais, mas que permanece inerte diante
de atitudes acintosas como estas e tantas outras.
Gostos e
preferências, inclusive políticas, são inevitáveis, até mesmo nas
sociedades mais avançadas. Porém, o que diferencia os meninos dos homens
é que, no mundo livre, magistrados costumam abster-se de julgar seus
amigos ou inimigos, e de proferir falas públicas, restringindo suas
manifestações ao mundo dos autos. Lá, esses seres, com os quais
partilhamos a mesma essência humana, inclusive em suas misérias, já
entenderam que tais restrições são mandatórias à manutenção de um pacto
social viável. Aqueles que se sentirem incapazes de tamanha contenção em
virtude do cargo simplesmente buscarão outras carreiras, bem distantes
da magistratura.
Já aqui, onde
o público e o privado se imiscuem desde os tempos da casa grande e da
senzala, muitos dos encarregados da função judicante costumam enxergar
na toga apenas o instrumento para a aquisição de poderes virtualmente
ilimitados, apartados da contrapartida de um rol de deveres.
A mudança
em muitas regras seria bastante salutar, mas insuficiente para o
enfrentamento de tantos abusos, ferida cruenta que continuará a sangrar
enquanto os velhos hábitos promíscuos continuarem os mesmos. Há que ter
paciência e determinação para uma luta em prol das futuras gerações.
[1]http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj2006.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/f91660b49481ec1a83256e8a0069d74f?OpenDocument
[2] https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/movimentos-unem-forcas-contra-a-privatizacao-do-sus
[3] https://www.conjur.com.br/2008-out-02/cnj_suspende_promocao_juizas_trf_regiao
[4] https://www.sedep.com.br/noticias/escalada-garantida-cnj-cassa-liminar-e-libera-promoo-de-juzas-para-o-trf-2/
[5] https://www.institutoliberal.org.br/blog/no-apagar-das-luzes-mais-prisoes-politicas-e-a-soltura-do-rei-do-rio/
[6] https://revistaoeste.com/brasil/em-evento-do-mst-lewadowski-critica-democracia-liberal-burguesa/
[7] https://www.poder360.com.br/justica/novo-juiz-da-lava-jato-se-identificou-como-lul22-em-sistema/
* Publicado originalmente no site do Instituto Liberal, em
https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/uma-era-de-togados-com-partido/
** Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela
FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora
da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de
Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com
Debate no YouTube.