O Estado de S. Paulo
O quadro eleitoral americano parece confirmar as previsões para nossa política externa
Profissional de carreira que é, pode-se assumir que o embaixador
brasileiro em Washington já cultive contatos com os democratas que
provavelmente vão assumir junto com Joe Biden. Talvez áreas do governo
como Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, além das
pastas militares, possam ajudá-lo. O pessoal da área internacional
“pura” do atual governo só tem os números da turma ligada a Trump.
Se as eleições fossem hoje Trump estaria fora, e as relações do Brasil
com Washington em precária situação. A opção preferencial pela pessoa do
Trump feita por Jair Bolsonaro configura-se um desastre de proporções
inéditas na história da nossa política externa. Não há exemplo de
“alinhamento automático” tão mal conduzido. Mesmo na Guerra Fria o
regime militar brasileiro levou nossos negócios em relação aos EUA de
forma mais autônoma.
Cristalizaram-se nos últimos dias dois dilemas geopolíticos que se
tornaram ainda piores devido ao apego de Planalto a Trump. O primeiro é o
fato de que Joe Biden, o candidato democrata que hoje derrotaria Trump
apresentou um ambicioso programa de recuperação econômica dos Estados
Unidos baseado na “economia verde”, o que inclui a volta dos Estados
Unidos ao Acordo de Paris (que o Brasil, macaqueando Trump, maltratou).
Procura jogar a ainda maior economia do mundo numa larga avenida de
investimento em energias renováveis, novas tecnologias e provavelmente
exercendo ainda maior pressão política e comercial sobre o Brasil e suas
políticas ambientais. Biden não vai conseguir fazer o relógio voltar
para trás, mas promete retomar muito do “multilateralismo”
(“globalismo”, como preferem dizer os bolsonaristas) e restituir parte
da importância de agências que Trump fez questão de tentar destruir,
como as da ONU (em alguns casos, com implícita colaboração brasileira).
A outra questão geopolítica é a participação da gigante de
telecomunicações chinesa Huawei na infraestrutura brasileira do 5G, uma
decisão que se aproxima para legisladores e governantes brasileiros, e
que já causa notável angústia. O ministro Paulo Guedes resumiu há pouco o
problema: “o ideal seria deixar a competição progredir, americanos
contra chineses, mas surgiu essa questão geopolítica”. Trata-se da
cobrança para o Brasil seguir o mesmo caminho que o Reino Unido, que foi
banir a gigante chinesa de telecomunicações.
O 5G vai colocar também a cúpula militar brasileira contra a parede.
Nossos militares no momento celebram, e com razão, um entendimento com
os americanos que promete aplainar o acesso a tecnologias de ponta na
área de defesa. Mas os sinais vindos de Washington são inequívocos:
parcerias estratégicas no campo de defesa vão depender do comportamento
do Brasil em relação ao uso de tecnologia e equipamentos chineses.
Conter a China é um consenso entre republicanos e democratas nos EUA,
com a diferença do mau humor em relação ao Brasil que se pressupõe
inicialmente de uma administração democrata – que ainda por cima tem
boas chances de conquistar nas urnas em novembro também o Senado. Boa
parte do nosso governo acredita que a China precisa comer e não vai
retaliar o Brasil, um de seus principais fornecedores de commodities
agrícolas. É uma perigosa zona de conforto mental. A China tem condições
de nos causar muita dor.
Na figura do general Hamilton Mourão, vice presidente e coordenador das
políticas para a Amazônia, o governo brasileiro admitiu no Senado esta
semana que a guerra das narrativas está perdida para nós, que o Brasil
está na defensiva, e que precisa apresentar resultados ao mundo para
“sair das cordas” (Mourão). O que deixa Bolsonaro diante de um problemão
formidável de política externa pelo qual só pode culpar a si mesmo.
William Waack, colunista - O Estado de S. Paulo