Dorrit Harazim
Experimentos
Reparações históricas e desculpas oficiais costumam vir na rabeira da própria História. E com frequência nada reparam
À época, a mãe-coragem de Emmett obrigara o país a encarar o que restara do filho: uma massa disforme e desumanizada exposta em caixão aberto, sem retoques. Como já relatado neste espaço, a atrocidade serviu de catalisador para o Movimento pelos Direitos Civis que galvanizaria o país na década seguinte.
Passaram-se quase 70 anos. Desde então, 12 presidentes ocuparam a Casa Branca. Ainda assim, Biden achou necessário explicar ao país o motivo de um memorial nacional para os dois corpos negros.— Vivemos tempos em que se tenta banir livros, enterrar a História — disse o presidente. — Por isso queremos deixar bem claro e cristalino: embora a treva e o negacionismo possam esconder muita coisa, não conseguem apagar nada. Não devemos aprender somente aquilo que queremos saber. Devemos poder aprender o que é preciso saber.
Reparações históricas e desculpas oficiais costumam vir na rabeira da
própria História. E com frequência nada reparam. Ainda assim, acabam
compondo um retrato das feridas de cada nação. No caso atual, a
iniciativa de Biden não deve ser descartada como mero artifício
eleitoreiro visando ao pleito de 2024. Há também uma real preocupação
com um surto de apagamento histórico em curso na América profunda e
retrógrada. Quando governadores extremados como Ron DeSantis, da
Flórida, ou Greg Abbott, do Texas, ordenam escolas e bibliotecas
públicas a varrer das estantes clássicos da literatura negra e LGBTQIA+,
um monumento nacional à coragem de Mamie Till chega em boa hora.[o que mais evidencia o caráter eleitoreiro da iniciativa do democrata cujo governo prima pela INcompetência e desacertos.]
Oito deles, já quase nonagenários, estavam no Salão Leste da Casa Branca em maio de 1997 quando o então presidente Bill Clinton pediu desculpas públicas pelo horror cometido. Em discurso marcante, falou em nome do povo americano: — O que foi feito não pode ser desfeito. Mas podemos acabar com o silêncio, parar de desviar do assunto. Podemos olhá-los de frente para finalmente dizer que o que o governo dos Estados Unidos fez foi uma ignomínia, e eu peço desculpas.
Tudo isso e muito mais faz parte do pesado histórico de abuso de corpos negros, até mesmo em nome da ciência. Não espanta, portanto, a rejeição quase atávica à obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19 manifestada pela população negra em tempos recentes. A retirada de circulação ou dificuldade de acesso a livros que narram essas vivências deveriam ser impensáveis em 2023. É sinal de uma sociedade adoecida pelo medo de livros.
Dorrit Harazim, colunista - O Globo