Fernando Schüler
Ganha força o espectro de um centro político que pode se mover a meia distância da esquerda e do bolsonarismo
O
ministro Luiz Eduardo Ramos disse que os aliados do governo venceram as
eleições. Mencionou o crescimento
de prefeituras do DEM, PP e PSD, bem como o encolhimento do PT e
concluiu: a turma que segue as “pautas e ideias” de Bolsonaro ganhou o jogo. Há
vários problemas aí. O primeiro é saber exatamente quais são as pautas e ideias
do governo. Por vezes o suporte do governo, e em particular do presidente, à
sua própria agenda de reformas se parece com o apoio
de Bolsonaro ao prefeito Crivella: “Se não quiser não vota, tranquilo”.
É verdade que os partidos tradicionais foram vencedores. A Folha identificou uma tendência significativa de deslocamento à direita dos novos prefeitos. Há muitos significados nisso. Um deles diz simplesmente que esta foi uma eleição de baixa propensão a risco. É a tese levantada pelo professor Carlos Pereira: diante da pandemia e do espectro da morte, o eleitor tende a recuar da lógica do confronto e se afastar das “saídas polares”.
Há
uma explicação mais pragmática: DEM, PP e PSD trabalharam forte e foram os
partidos que mais cresceram com o troca-troca partidário entre as eleições. Só
o DEM passou de 272 para 456 prefeitos, já antes das eleições, basicamente
puxados por governadores eleitos pelo partido, em 2018. O resultado obtido
agora é em boa medida uma consequência disso. O
ponto é que a interpretação dada pelo ministro Ramos põe um detalhe para baixo
do tapete: o bolsonarismo virtualmente não apareceu nessas eleições. É evidente
que há candidatos identificados com Bolsonaro, alguns com relativo sucesso. Nas
18 capitais com segundo turno há no mínimo cinco com candidaturas claramente
identificadas com o presidente e seu estilo. Mas, cá entre nós, frente ao que
vimos há dois anos, é muito pouco. [não esqueçamos que a campanha não foi para escolher Bolsonaro - situação vivida em 2018 e esperada em 2022.]
O
próprio bolsonarismo reconhece isso. Filipe Martins, assessor internacional de
Bolsonaro e geralmente visto como ideólogo do grupo, pediu “autocrítica” aos
conservadores e conclamou a turma a “recuperar os ideais e bandeiras de 2018”. Vai
aí o problema. O que a eleição revela é que os tais princípios de 2018 talvez
não tenham lá grande profundidade. O conservadorismo de Bolsonaro nunca
produziu muita coisa, no governo, e o que se anunciava como sua agenda no
Congresso (escola sem partido, redução da maioridade penal, liberação do porte
de armas) nunca andou. [o nosso presidente sofreu um boicote intenso, e prejudicial ao Brasil, sempre que procurou concretizar sua agenda (um Poder Legislativo pautado por Alcolumbre e Maia, um Poder Judiciário ávido por protagonismo e receptivo à excessiva judicialização impediram o seguimento das propostas do presidente Bolsonaro) mas em 2021, com a pandemia sob controle e o Brasil recuperando seu crescimento econômico, o Congresso sob nova direção, e o Poder Judiciário cuidando de julgar e não de legislar, a pauta voltará, passo a passo.]
No Brasil recente, se confundiu conservadorismo com palavras de ordem do tradicionalismo de costumes (não raro misturado com religião). Vem daí o completo desinteresse de Bolsonaro em criar a Aliança pelo Brasil e sua acomodação junto aos partidos do centrão.
O mesmo vale para a agenda econômica. Paulo Guedes pode ser um histórico do liberalismo brasileiro e de algum modo ainda funciona como fiador da pauta de reformas junto ao mercado, mas vamos convir: terminamos o ano com menos consenso sobre reforma tributária do que parecíamos ter antes da pandemia; a reforma administrativa, além de tímida, se arrasta, e as privatizações, dois anos depois, quando muito prosseguem como um “ideal” do governo.
Em meio a este quadro, Bolsonaro resolveu improvisar. Bem a seu estilo, mencionou alguns candidatos, em suas lives, fez escolhas erradas, desconsiderou aliados políticos no Congresso e colheu um resultado melancólico. O que estas eleições fizeram foi acender uma luz amarela no Planalto. A avaliação positiva de Bolsonaro caiu entre 15% e 20% desde o início da campanha, a agenda de reformas está parada e não há sinal sobre o que o governo fará com o auxílio emergencial a partir de janeiro.
Talvez o governo se dê conta disso e comece a trabalhar com algum senso de urgência no Congresso. O recado das urnas parece claro: ganha força o espectro de um centro político que, sabendo capturar a agenda reformista, pode começar a se mover por conta própria e produzir uma alternativa para 2022, distante simultaneamente da esquerda e do bolsonarismo.
Para Bolsonaro, que depende da lógica da polarização para sobreviver, este é o principal recado que surge das urnas.
Fernando Schüler, professor - Folha de S. Paulo