Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER
Mostrando postagens com marcador school board. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador school board. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 17 de março de 2022

Duas ferramentas básicas da democracia - Fernão Lara Mesquita

Transcrito do site Percival Puggina

O confronto que está ocorrendo neste momento no campo da educação pública nos Estados Unidos envolve o cerne da definição de democracia que, ao contrário do que pensa a maioria dos brasileiros, não gira em torno da questão "o quê deve ser feito", mas sim de "quem tem o legitimo direito de determinar o que deve ser feito".

A instituição do school boardde par com a do júri, é seminal para o estabelecimento da soberania do povo nas democracias de DNA saxônico. Nem cultura, nem estágio de desenvolvimento econômico são obstáculos para a compreensão da sua importância a quem é oferecida a oportunidade de adotá-las. Elas existem, firmes e fortes, em todos os países de colonização inglesa, dos africanos aos asiáticos, passando pela Índia, pela Austrália e o mais.

Mas, como sói acontecer em tudo, deus ou o diabo estão é nos detalhes. A "democracia brasileira", aquela que parece mas não é, por exemplo, inclui um pedaço da instituição do júri, exclusivamente para processos criminais. Tocqueville, que mesmo antes de visitar os Estados Unidos em 1830, já louvava a importância da instituição do júri na educação do povo inglês para a democracia, conhecia bem a diferença.

O júri nos processos criminais só exige julgamentos sobre questões primárias, dizia. E, além do mais, quase todas as pessoas esperam passar a vida inteira sem sofrer um processo criminal. Quando no juri julgam "os outros". Nos julgamentos civis ocorre o contrário. Todo mundo espera, na vida, enfrentar processos civis. E eles envolvem conceitos muito mais sutis. O juri nesses julgamentos faz com que o direito privado tenha de ser expresso numa linguagem acessível a todos os mortais e que os advogados especializem-se em traduzir as nuances de cada caso para o jurado nas suas argumentações.

Assim, cada membro de cada júri considera, ao exercer esse papel, que amanhã pode estar ele sentado na cadeira de quem está julgando hoje. "O júri, e sobretudo o júri civil serve para dotar todo e qualquer cidadão da experiência de ser juiz, e essa experiência é a que melhor o prepara para ser livre. Ela reafirma, em todas as classes sociais, o respeito pela coisa julgada e pela idéia do Direito. É a maneira mais eficaz de, ao mesmo tempo, fazer o povo exercer o seu poder e aprender a exercer o seu poder numa democracia. Sem essas duas coisas, o amor pela independência transforma-se numa paixão destrutiva".

O juri, mais que uma ferramenta da Justiça, é portanto, para Tocqueville, sobretudo uma instituição política. 

Cabe melhor ainda nessa categoria a instituição do school board. Ele é a representação eleita da menor célula do sistema de voto distrital puro, a única maneira de instituir a verdadeira democracia representativa, e a mais direta e explícita das ferramentas de submissão do Estado à vontade do povo. Refere-se a cada bairro que elege, obrigatoriamente entre seus residentes, os 7 membros do conselho de pais de alunos que controlará, pelos 4 anos seguintes, sempre sujeitos a recall, a escola pública nele instalada. É ele, e não o político de plantão ou o partido que "aparelhou" o sistema quem contrata e demite o diretor de cada escola, aprova ou não os seus orçamentos, os seus programas curriculares, as suas metas anuais e o desempenho de seus professores.

Neste particular momento a esfera dos school boards está francamente conflagrada nos Estados Unidos. A fronteira que separa os contendores é a dos que negociam suas questões com os professores através de sindicatos e os que não aceitam esse sistema e negociam diretamente com seus funcionários, professores incluídos. 

Lá, como em toda parte o setor da educação é o primeiro dos alvos visados pela luta ideológica e os sindicatos de professores os mais abertamente comprometidos com partidos e movimentos radicais. Seu principal argumento de expansão como contrapartida dos school boards é o de toda entidade corporativa: a sua "especialização" em formular e fazer tramitar projetos de educação. O seu principal ponto fraco o de toda representação corporativa: a incoercível tendência de desviar-se da finalidade alegada para a satisfação dos interesses dos encarregados de atingi-la, que faz com que todo o sistema acabe "apropriado" pelos professores em detrimento dos alunos das escolas públicas. 

National School Board Association (NSBA), instituição criada em 1940 para zelar pela qualidade da educação pública transformou-se, com o tempo, na grande impulsionadora dos sindicatos de professores como contraparte dos school boards na gestão das escolas públicas. Suas bandeiras vão na linha de extrair salários e aposentadorias cada vez mais altos e menos dependentes de critérios de mérito e banir todas as tarefas paralelas impostas aos professores pelos school boards. Além desse viés para a "insustentabilidade", e do conflito subjacente à ação de sindicatos de funcionários públicos que disputam, com o concurso de outros funcionários públicos, fatias crescentes de dinheiro de impostos e não participações maiores em lucros que contribuíram para que fossem obtidos, seus antagonistas apontam, também, a crescente contaminação do currículo escolar por material e discursos ideológicos. 

Nada, portanto, a que um ouvido brasileiro não esteja totalmente acostumado. No ambiente de extrema polarização que desaguou na derrota de Donald Trump e na eleição de Joe Biden, entretanto, a NSBA cruzou, num rompante, a sagrada fronteira da soberania do povo. E foi só aí que quebrou fragorosamente a cara. 

Enviou uma carta aberta ao presidente eleito em que, alegando "ameaças à segurança dos alunos e dos professores nas escolas públicas", afirmava que "alguns pais deveriam ser considerados como terroristas domésticos" e pedia "legislação federal e outras providências" para impor decisões a todas as escolas públicas independentemente do que pensassem os pais de alunos. O resultado foi que, mesmo tendo-se retratado do erro, e apesar das greves de professores em alguns locais, desde outubro de 2021 (a carta foi publicada em 29 de setembro daquele ano) 20 associações estaduais de school boards já romperam seus contratos de adesão à NSBA. 

Por grave que seja a doença que a afeta a partir do âmbito federal, esta é uma importante medida da saúde da democracia americana, essa ilustre desconhecida de populações isoladas pela língua e submetidas a séculos de "censura estrutural" como a brasileira. Suas raízes estão solidamente plantadas nos equipamentos de materialização dos poderes do povo nas instâncias estadual e municipal. São quase dois países. E pelo menos num deles o debate sobre o que fazer é livre, infindável, inconclusivo e sujeito às intempéries da conjuntura como deve ser em toda democracia. Mas o preceito de que só o povo tem o legitimo direito à decisão final é sagrado.                                                                          Pela mesma razão que quem escolhe a comida é quem está pagando por ela e vai comê-la e não o garçom, quem escolhe o que as escolas públicas e o sistema judiciário vão servir, na democracia americana ainda são o júri popular e os pais dos alunos.

O Vespeiro - Fernão Lara Mesquita 

 

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A verdade que nos libertaria

Nos EUA, há conselhos diretores das escolas públicas, independentes do Estado e grupos políticos (e você sonhando com "escola sem partido")


Funciona na Inglaterra ou no Quênia, na Austrália ou na Índia, na Nova Zelândia ou nos Estados Unidos. Em todas as democracias de DNA saxônico apoiadas no sistema de eleição distrital pura, a célula básica é o school board. Esses conselhos diretores das escolas públicas são diretamente eleitos pelos pais dos alunos do bairro ao qual cada escola serve. Normalmente têm sete membros, eleitos de dois em dois anos de carona nas eleições municipais ou nacionais, em grupos alternados três numa eleição, quatro na seguinte para mandatos de quatro anos. Como acontece com todo funcionário diretamente eleito nessas democracias, eles podem sofrer uma retomada de mandato (recall) a qualquer momento se seus eleitores acharem por bem fazê-lo.

O elo de ligação entre os eleitores e cada membro desses conselhos é o endereço. Tanto os candidatos quanto os eleitores têm de ser moradores do bairro. O conselho eleito nomeará o diretor da escola e aprovará ou não os seus orçamentos anuais e os seus planos educacionais, de forma totalmente independente do estado e do grupo político que o estiver controlando no momento (e você sonhando com “escola sem partido”…).

Nos EUA, esses conselhos têm ainda a prerrogativa de emitir títulos de dívida para fazer melhoramentos, comprar equipamentos, construir novos prédios ou mesmo contratar mais professores ou aumentar os salários deles. O estado só interfere para aumentar verbas das escolas das comunidades sem condições de bancar as próprias melhorias. Seguindo uma norma de alcance nacional, a emissão de qualquer título de dívida pública tem de vir acompanhada de um projeto mostrando quanto dinheiro vai ser captado para fazer exatamente o que, em quanto tempo e a que custo o título vai ser resgatado, quem e como vai pagar a operação. Normalmente a fórmula usada para pagar investimentos em escolas é adicionar um aumento temporário no imposto territorial do bairro (IPTU) servido por ela. 

Tudo definido, o projeto aparecerá na cédula da próxima eleição nacional ou municipal para um “sim” ou um “não” somente da comunidade afetada (controlado pelo endereço de cada eleitor).  O mesmo princípio aplica-se aos distritos eleitorais e às obras e serviços públicos municipais ou estaduais. No sistema de eleição distrital pura, divide-se o número total de habitantes pelo número de representantes desejados para cada instância câmaras de vereadores ou assembleias legislativas, por exemplo. A unidade contada é sempre o número de habitantes, e não o de eleitores, porque é obrigatório que o distrito eleitoral tenha uma correspondência com um elemento físico que possa ser aferido. Como na média nacional a um determinado número de indivíduos, habitações ou famílias corresponde um mesmo número médio de eleitores, o que vale é o endereço. Um distrito eleitoral municipal será, portanto, uma soma de distritos escolares. Uma soma de distritos municipais dará um distrito estadual e uma soma de distritos estaduais dará um distrito nacional. Com 513 congressistas teríamos distritos de mais ou menos 400 mil habitantes neste Brasil de 207 milhões. Nos EUA, com 325 milhões e 435 deputados, cada distrito federal tem aproximadamente 700 mil habitantes. Todos esses distritos e subdistritos serão desenhados sobre o mapa da nação e, uma vez feito isso, só poderão ser alterados com base no censo nacional, a cada 10 anos. Cada candidato a uma função pública seja ao conselho diretor de uma escola, a uma câmara de vereadores, a uma assembleia legislativa ou ao congresso nacional só poderá concorrer por um distrito eleitoral. E cada distrito eleitoral elegerá apenas um representante.

Assim, cada representante eleito saberá exatamente o nome e o endereço de cada um dos seus representados, e vice-versa. O congressista americano não é o representante do estado fulano, é o representante do distrito eleitoral número tal. Não há vices nem suplentes. Em caso de vacância será convocada uma eleição extraordinária somente naquele distrito para eleger o substituto.  Qualquer eleitor pode iniciar uma petição de retomada de mandato (recall) do seu representante. Cada bairro, cidade ou estado as instâncias até onde vale esse recurso estabelece o número mínimo de assinaturas necessárias para qualificar uma retomada (em geral algo entre 5% e 10% dos eleitores de um distrito). O secretário de estado municipal ou estadual, funcionário que existe só para organizar essas “eleições especiais” que acontecem a toda hora, confere as assinaturas. O distrito então decide no voto, do orçamento da escola publica do bairro à construção de uma nova estrada no seu estado, a compra de mais carros da polícia da sua cidade ou o salário dos seus funcionários. Tudo, sempre, votado e pago diretamente só pelos cidadãos afetados. Espaço zero para roubalheiras.

Juízes também. Ninguém é onipotente. A cada quatro anos o nome de cada um deles aparecerá na cédula da eleição na sua comarca com a pergunta: O juiz fulano fica mais quatro anos?“. “Sim” ou “não“.  Leis de iniciativa popular cuidando desde casamento gay e maconha até leis penais ou proibição de aumento de impostos sem aprovação de quem vai pagá-los passam por esse mesmo processo. Coleta de assinaturas e qualificação e subida à cédula da próxima eleição para aprovação direta.

Para a eleição de novembro agora, quase 180 questões de alcance estadual se qualificaram para aparecer nas cédulas de todo o país. Milhares de outras de alcance municipal leis, processos de retomadas de mandatos de conselheiros escolares e funcionários eleitos (todos os que têm função de fiscalização do governo ou contato direto com o público) também estarão nelas. O povo, senhor absoluto e irrecorrível dos políticos, decide tudo no voto.  Assim, na próxima vez que você vir a sua eleição nacional ser apurada em duas horas, não fique todo orgulhoso. Você está sendo enganado. Isso que existe por aqui tem uma vaga semelhança com democracia, mas não é.


Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)

Blog do Augusto Nunes - Veja