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quinta-feira, 17 de março de 2022

Duas ferramentas básicas da democracia - Fernão Lara Mesquita

Transcrito do site Percival Puggina

O confronto que está ocorrendo neste momento no campo da educação pública nos Estados Unidos envolve o cerne da definição de democracia que, ao contrário do que pensa a maioria dos brasileiros, não gira em torno da questão "o quê deve ser feito", mas sim de "quem tem o legitimo direito de determinar o que deve ser feito".

A instituição do school boardde par com a do júri, é seminal para o estabelecimento da soberania do povo nas democracias de DNA saxônico. Nem cultura, nem estágio de desenvolvimento econômico são obstáculos para a compreensão da sua importância a quem é oferecida a oportunidade de adotá-las. Elas existem, firmes e fortes, em todos os países de colonização inglesa, dos africanos aos asiáticos, passando pela Índia, pela Austrália e o mais.

Mas, como sói acontecer em tudo, deus ou o diabo estão é nos detalhes. A "democracia brasileira", aquela que parece mas não é, por exemplo, inclui um pedaço da instituição do júri, exclusivamente para processos criminais. Tocqueville, que mesmo antes de visitar os Estados Unidos em 1830, já louvava a importância da instituição do júri na educação do povo inglês para a democracia, conhecia bem a diferença.

O júri nos processos criminais só exige julgamentos sobre questões primárias, dizia. E, além do mais, quase todas as pessoas esperam passar a vida inteira sem sofrer um processo criminal. Quando no juri julgam "os outros". Nos julgamentos civis ocorre o contrário. Todo mundo espera, na vida, enfrentar processos civis. E eles envolvem conceitos muito mais sutis. O juri nesses julgamentos faz com que o direito privado tenha de ser expresso numa linguagem acessível a todos os mortais e que os advogados especializem-se em traduzir as nuances de cada caso para o jurado nas suas argumentações.

Assim, cada membro de cada júri considera, ao exercer esse papel, que amanhã pode estar ele sentado na cadeira de quem está julgando hoje. "O júri, e sobretudo o júri civil serve para dotar todo e qualquer cidadão da experiência de ser juiz, e essa experiência é a que melhor o prepara para ser livre. Ela reafirma, em todas as classes sociais, o respeito pela coisa julgada e pela idéia do Direito. É a maneira mais eficaz de, ao mesmo tempo, fazer o povo exercer o seu poder e aprender a exercer o seu poder numa democracia. Sem essas duas coisas, o amor pela independência transforma-se numa paixão destrutiva".

O juri, mais que uma ferramenta da Justiça, é portanto, para Tocqueville, sobretudo uma instituição política. 

Cabe melhor ainda nessa categoria a instituição do school board. Ele é a representação eleita da menor célula do sistema de voto distrital puro, a única maneira de instituir a verdadeira democracia representativa, e a mais direta e explícita das ferramentas de submissão do Estado à vontade do povo. Refere-se a cada bairro que elege, obrigatoriamente entre seus residentes, os 7 membros do conselho de pais de alunos que controlará, pelos 4 anos seguintes, sempre sujeitos a recall, a escola pública nele instalada. É ele, e não o político de plantão ou o partido que "aparelhou" o sistema quem contrata e demite o diretor de cada escola, aprova ou não os seus orçamentos, os seus programas curriculares, as suas metas anuais e o desempenho de seus professores.

Neste particular momento a esfera dos school boards está francamente conflagrada nos Estados Unidos. A fronteira que separa os contendores é a dos que negociam suas questões com os professores através de sindicatos e os que não aceitam esse sistema e negociam diretamente com seus funcionários, professores incluídos. 

Lá, como em toda parte o setor da educação é o primeiro dos alvos visados pela luta ideológica e os sindicatos de professores os mais abertamente comprometidos com partidos e movimentos radicais. Seu principal argumento de expansão como contrapartida dos school boards é o de toda entidade corporativa: a sua "especialização" em formular e fazer tramitar projetos de educação. O seu principal ponto fraco o de toda representação corporativa: a incoercível tendência de desviar-se da finalidade alegada para a satisfação dos interesses dos encarregados de atingi-la, que faz com que todo o sistema acabe "apropriado" pelos professores em detrimento dos alunos das escolas públicas. 

National School Board Association (NSBA), instituição criada em 1940 para zelar pela qualidade da educação pública transformou-se, com o tempo, na grande impulsionadora dos sindicatos de professores como contraparte dos school boards na gestão das escolas públicas. Suas bandeiras vão na linha de extrair salários e aposentadorias cada vez mais altos e menos dependentes de critérios de mérito e banir todas as tarefas paralelas impostas aos professores pelos school boards. Além desse viés para a "insustentabilidade", e do conflito subjacente à ação de sindicatos de funcionários públicos que disputam, com o concurso de outros funcionários públicos, fatias crescentes de dinheiro de impostos e não participações maiores em lucros que contribuíram para que fossem obtidos, seus antagonistas apontam, também, a crescente contaminação do currículo escolar por material e discursos ideológicos. 

Nada, portanto, a que um ouvido brasileiro não esteja totalmente acostumado. No ambiente de extrema polarização que desaguou na derrota de Donald Trump e na eleição de Joe Biden, entretanto, a NSBA cruzou, num rompante, a sagrada fronteira da soberania do povo. E foi só aí que quebrou fragorosamente a cara. 

Enviou uma carta aberta ao presidente eleito em que, alegando "ameaças à segurança dos alunos e dos professores nas escolas públicas", afirmava que "alguns pais deveriam ser considerados como terroristas domésticos" e pedia "legislação federal e outras providências" para impor decisões a todas as escolas públicas independentemente do que pensassem os pais de alunos. O resultado foi que, mesmo tendo-se retratado do erro, e apesar das greves de professores em alguns locais, desde outubro de 2021 (a carta foi publicada em 29 de setembro daquele ano) 20 associações estaduais de school boards já romperam seus contratos de adesão à NSBA. 

Por grave que seja a doença que a afeta a partir do âmbito federal, esta é uma importante medida da saúde da democracia americana, essa ilustre desconhecida de populações isoladas pela língua e submetidas a séculos de "censura estrutural" como a brasileira. Suas raízes estão solidamente plantadas nos equipamentos de materialização dos poderes do povo nas instâncias estadual e municipal. São quase dois países. E pelo menos num deles o debate sobre o que fazer é livre, infindável, inconclusivo e sujeito às intempéries da conjuntura como deve ser em toda democracia. Mas o preceito de que só o povo tem o legitimo direito à decisão final é sagrado.                                                                          Pela mesma razão que quem escolhe a comida é quem está pagando por ela e vai comê-la e não o garçom, quem escolhe o que as escolas públicas e o sistema judiciário vão servir, na democracia americana ainda são o júri popular e os pais dos alunos.

O Vespeiro - Fernão Lara Mesquita 

 

terça-feira, 17 de março de 2020

O xadrez do coronavírus - Nas entrelinhas

“Economistas como Mônica de Bolle e André Lara Resende, antes mesmo do coronavírus, já haviam questionado a absolutização do aspecto fiscal” 

Shahmat em persa quer dizer rei (shab) morto (mat), o antigo nome do xadrez. Por corruptela, e não por acaso, o final do jogo virou xeque-mate (checkmate, em inglês). Foi inventado por um grão-vizir, que criou um tabuleiro com 64 quadros, vermelhos e pretos, cuja peça mais importante era o rei; a segunda peça, o próprio grão-vizir, que foi substituído pela rainha com passar dos anos. É um mistério a razão de um rei aceitar um jogo no qual o objetivo era matá-lo, mas o fato é que o xadrez encantou toda a corte, inclusive o monarca. O rei gostou tanto da invenção que pediu ao grão-vizir para determinar sua própria recompensa.

Conta-nos o físico Carl Sagan, num artigo intitulado O tabuleiro de xadrez persa (Bilhões e bilhões, Companhia de Bolso), que o grão-vizir desejou apenas uma recompensa aparentemente modesta: apontando para o tabuleiro com oito colunas e oito filas, pediu ao rei que lhe fosse dado um único grão de trigo no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa muito insignificante e protestou, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o grão-vizir recusou. Só desejava os montes de trigo.


Entretanto, quando o administrador do celeiro real começou a contar os graus, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1024… Quando chegou na última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões. Quanto pesa cada grão de trigo? Se cada um tiver um milímetro, pesariam 75 milhões de toneladas métricas, muito mais do que havia nos armazéns reais. “Se o xadrez tivesse cem quadrados (dez por dez), em vez de 64, a quantidade de grãos teria pesado o mesmo que a Terra”, compara Carl Sagan. Os persas foram pioneiros na matemática.

O físico norte-americano usou a fábula para chamar a atenção para a importância de se levar em conta os números exponenciais na análise da escala dos mais variados assuntos, da Aids à proliferação de armas nucleares. É o caso da pandemia de coronavírus, que chegou ao Brasil para ficar, pois a chamada “transmissão comunitária” já começou em São Paulo e no Rio de Janeiro, os dois estados com a maior e melhor rede de saúde do país. Todos os estudos até agora mostram que o crescimento geométrico do número de casos aumenta a letalidade da doença, que se propaga muito rapidamente deixando em colapso os sistemas de saúde, como aconteceu na Itália, até que algo interrompa a proliferação da Covid-19. É um jogo de xadrez com a morte, como ilustra foto do filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman.

A solução chinesa, que adotou medidas radicais de confinamento e isolamento, foi a mais eficaz para conter a escalada do coronavírus. Alguns países asiáticos, porém foram bem-sucedidos com medidas intermediárias. A Coreia do Sul conseguiu controlar a doença e reduzir sua letalidade para 0,6%. Por quê? Por causa da qualidade do sistema de saúde e do gerenciamento da crise. Estatisticamente, de cada 100.000 pessoas doentes, 20.000 necessitarão hospitalização, dos quais 5.000 de UTI e 1.000 máquinas de respiração. No Brasil, se a epidemia atingir essa escala, será o caos no sistema de saúde, que já é pressionado por outros fatores: acidentes de trânsito, balas perdidas, acidentes domésticos, outras epidemias, tentativas de feminicídio.

Darwinismo
Para mitigar a progressão da epidemia, é preciso adotar seriamente a distância social. É o que países como Irã, França, Espanha, Alemanha, Suíça e EUA terão que fazer para reduzir a taxa de transmissão de 2,5% para 1% e neutralizar a curva exponencial. A Itália foi obrigada a confinar a população e restringir drasticamente a circulação de pessoas porque entrou em colapso; melhor fazer quase isso antes do colapso. Essa é a questão posta na mesa pelos sanitaristas para os governantes aqui no Brasil. Para a economia, teria menos impacto uma epidemia de curta duração com alta letalidade, um perverso darwinismo social: sobreviveriam os mais saudáveis; muito idosos, cardiopatas, diabéticos e pessoas com baixa imunidade faleceriam numa escala muito maior do que a registrada até agora. A taxa de mortalidade na China está hoje entre 3,6% e 6,1%, dependendo da região, mas converge para aproximadamente 3,8% e 4%, mais do que o dobro da estimativa atual e 30 vezes mais do que a gripe.

Para a sociedade, porém, a melhor solução é “achatar” a curva, retardando a propagação da epidemia, o que tem muito mais impacto na economia. É aí que algumas questões que estão na ordem do dia precisam ser levadas em conta. Por exemplo, o veto ao aumento para um salário-mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que hoje garante meio salário-mínimo para cada idoso ou deficiente sem renda, exatamente os que terão mais dificuldades para enfrentar a epidemia. O que é mais importante, a vida dessas pessoas ou o Teto de Gastos, num cenário em que o mundo deve entrar em recessão por causa do coronavírus? Alguns economistas, como Mônica de Bolle e André Lara Resende, antes mesmo do coronavírus, já haviam questionado a absolutização do aspecto fiscal na política econômica do ministro Paulo Guedes, mas esse era um assunto blindado no Congresso. Agora, não é mais. Como vivemos numa democracia e o Brasil é uma federação, ninguém vai segurar governadores e prefeitos na hora que o povo exigir medidas mais enérgicas para conter a
propagação do coronavírus.

Luiz Carlos Azedo - Nas Entrelinhas - Correio Braziliense


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Capitalismo político - O Estado de S.Paulo

William Waack

A modernidade do choque no Brasil entre economia ‘liberal’ e autoritarismo político

O debate se a Lava Jato destruiu empresas e empregos ou se salvou a “ética” que permite o funcionamento virtuoso de instituições públicas e privadas revela um aspecto mais profundo das relações que organizam o funcionamento da economia brasileira. Na verdade, a pergunta levantada pela Lava Jato é outra. É o grau de aproximação do Brasil com o chamado “capitalismo político”.

O termo não é novo, mas voltou à moda devido ao sucesso do livro Capitalism, Alone (assim mesmo, com vírgula), de Blanko Milanovic, um intelectual de origem iugoslava atualmente na City University de Nova York e com longa passagem por instituições multilaterais como o Banco Mundial – experiência que o ajudou a escrever outra obra recente de sucesso, sobre o desequilíbrio global. A tese central dele é a de que pela primeira vez na História da humanidade um só sistema econômico prevalece – o capitalismo – e a ele pertence o futuro. Mas a qual capitalismo?

O tipo que se revela de grande êxito é o “capitalismo político”, em oposição ao capitalismo liberal meritocrático. Seus grandes expoentes são China, Rússia, Índia e vários asiáticos e, entre suas características principais, segundo Milanovic, destacam-se a ausência da aplicação uniforme das regras legais e a imensa autonomia do Estado. Nesse modelo, prossegue o autor, não são as elites econômicas que tomam as decisões em função de seus interesses, mas uma elite política que as coopta e as dirige em função de seus objetivos políticos – o paralelo com o PT e os “campeões nacionais” é evidente.

A corrupção num sistema desses é endêmica, pois os códigos legais são usados para favorecer amigos ou punir inimigos. Nesse sentido, a Lava Jato revelou as entranhas do “capitalismo político” à brasileira, incluindo o entusiasmo com que elites empresariais abraçaram o programa de um partido político que parecia haver encontrado no favorecimento de setores da economia a chave para se perpetuar no poder. Ao destruir o esquema petista, a Lava Jato afastou o Brasil do “capitalismo político”?

As elites empresariais empolgadas com os aspectos “liberais meritocráticos” dos planos da equipe de Paulo Guedes e, ao mesmo tempo, entusiásticas apoiadoras de Sérgio Moro e do que ele significa ainda não se deram conta totalmente de que os dois “modelos” estão em choque. Parte fundamental do embate entre setores do STF e expoentes da Lava Jato, por exemplo, se dá em torno do controle de quem investiga, dos limites de quem pune – por último, de quem controla a esfera da política.

Hoje empresários honestos temem mais a Receita Federal do que os homens vestidos de preto de Curitiba, sem perceber que a margem de ação que se atribuíram órgãos investigativos é uma demonstração da autonomia do Estado e de corporações que dele se apropriaram (como o alto funcionalismo público, entendido como elite política também). Não são grupos que aplaudem o “capitalismo meritocrático”. Seu viés ideológico, ainda que não petista, é claramente da permanência do controle do Estado sobre a iniciativa privada.

A empolgação (justa e legítima, importante assinalar) de elites econômicas pelo binômio Guedes-Moro turva a percepção básica de que o capitalismo meritocrático, ao contrário do capitalismo político, depende da aplicação estrita da “rule of law” (aqui o STF tem dado péssimo exemplo). São elites que olham para a eficiência administrativa de regimes sob o capitalismo político (como a China) e sonham com um grau de autoritarismo que permita destravar os óbvios obstáculos à expansão da economia brasileira, muitos deles localizados num Estado balofo e perdulário.
 
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo
 
 
 
 

Milanovic sugere que o capitalismo político tem mais chances de sobrevivência. Nesse sentido, com forte dose de ironia, o Brasil está abraçando a modernidade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

E assim (não) vai a AL - Carlos Alberto Sardenberg

Depois de anos na fila, a esquerda ganhou no México com Andrés Manuel Lopez Obrador Amlo, como se apresenta – e que prometeu crescimento anual de 4%, simplesmente o “dobro do período liberal”. Passado um ano de governo, o crescimento do PIB se arrasta perto de zero, com baixa perspectiva de aceleração.

Pode-se dizer que um ano é muito pouco e que o mundo todo está desacelerado. Verdades, mas ocorre que Amlo não apresentou nada de novo, nenhuma virada. Cortou mordomias e salários de funcionários, inclusive dele próprio, cancelou obras que achou muito caras, sem qualquer base em números, e tocou o barco. Cancelou leilões de petróleo, mas a melhor esperança de algum crescimento de base está justamente na maturação dos investimentos em campos leiloados no governo anterior.
Nada na corrupção, e especialmente nada no combate ao narcotráfico, que se tornou ainda maior e mais violento.

Já no Uruguai, pode acontecer o contrário. A Esquerdista Frente Ampla, no governo nos últimos 15 anos, está perto de perder as eleições de 24 próximo. O candidato de centro-direita, Luis Lacalle Pou, lidera as pesquisas de segundo turno.  O problema da Frente é também o baixo crescimento. Como toda América Latina, o Uruguai pegou o boom das commodities, chegou a ter uma expansão de 8% do PIB em 2010. Acabada a festa, desacelerou forte e neste ano está crescendo menos de 1%. Tem um baita déficit nas contas públicas.

Na Argentina, outra inversão. Depois de apenas quatro anos de centro-direita liberal, volta o peronismo, protagonista de um dos maiores desastres econômicos de todos os tempos. Conseguiu empobrecer um país que estava entre os mais ricos do mundo no século passado.
Na Bolívia, também passado o boom das commodities, o país desacelerou, vai devagar, o que retirou a popularidade e a força política de Evo Morales.
No Chile, ao contrário, é um governo de centro-direita que está em apuros. Mas é preciso notar a população contesta uma política econômica que era quase uma unanimidade. Depois de Pinochet, direita e esquerda alternaram-se no poder e o país manteve o mesmo curso – por sinal bem sucedido.

Números: iniciada a década de 90, a Venezuela tinha um Pib per capita, no método de Paridade de Poder de Compra, de US$ 8.500; Brasil, 7.500; e Chile, 7.000. Fechadas as contas de 2018, o Chile apresentava PIB per capita de quase rico, US$ 26 mil, expansão de quase quatro vezes; o Brasil tinha US$ 16,1 mil (dobrando em relação em 90) e a Venezuela mal alcançava os US$ 11 mil. De certo modo, a bronca dos chilenos é de uma classe média que, passado o boom das commodities, sente os efeitos da desaceleração do crescimento e da renda. O país vai melhor que a média latino-americana – expansão anual em torno de 2% – mas não resolveu a questão clássica da região: desigualdade.

O que FHC disse uma vez a respeito do Brasil, se aplica ao Chile de hoje: não é um país pobre, mas tem muitos pobres. Quem visita a AL regularmente percebe que há muitas coisas melhores no Chile: economia mais eficiente, alguma inovação, organização, menos corrupção, democracia eleitoral mais consistente. Mas, tudo considerado, falta o que falta a toda América Latina: um capitalismo dinâmico, com um setor privado gerador de riqueza para a maioria da população, indústrias de ponta, inovadoras, máquinas exportadoras de bens de alto valor agregado, escolas de primeira. E um setor público muito ativo para remover as falhas de mercado e promover distribuição de renda via impostos, ricos pagando mais, todos recebendo mais serviços.

Falta o que um estudo do FMI chamou de Política de Tecnologia e Inovação, que arranca o país e o coloca no grupo de alta renda, de modo permanente. Exemplos ao longo dos séculos: Estados Unidos, Alemanha, Japão, Hong Kong, Cingapura e Coréia do Sul, o campeão mais recente.
A AL continua apresentando níveis de crescimento sempre inferiores ao dos asiáticos, não produziu nenhum verdadeiro milagre econômico. Nem conseguiu se livrar do capitalismo de amigos, aquele dos empresários amigos do governo. A Lava Jato pegou esse pessoal em toda a AL, mas parece que se está perdendo embalo até nisso.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista - Transcrito em 20 novembro 2019 

 

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

A preservação da Amazônia - O Estado de S.Paulo

Denis Lerrer Rosenfield

Os grandes poluidores somem de cena e surge o Brasil como culpado pelos males ambientais

O Brasil é figurante do desmatamento em nível planetário como se os problemas do mundo estivessem concentrados na falta de controle do desmatamento em nosso país. Segundo essa opinião, a agricultura e a pecuária nacional são as grandes responsáveis. Grandes poluidores desaparecem de cena e aparece o Brasil como culpado dos males ambientais. Parece a hipocrisia não ter limites, quanto mais não seja também pelos interesses do agronegócio em outros países, que querem prejudicar nossa competitividade.

Comecemos pelo nosso alto grau de preservação ambiental. Toda propriedade no Brasil, ao contrário de outros países do mundo, é obrigada a preservar a vegetação nativa, segundo a região em que estiver localizada. Na Amazônia, por exemplo, a reserva legal é de 80% da propriedade. Na área de Cerrado o porcentual chega a 35% e nos Campos Gerais, como no Sul, 20%. Note-se que o direito de propriedade é relativizado em função da preservação, fazendo os agricultores andar de mãos dadas com o meio ambiente.

Se pensarmos em termos gerais, 25,6% da área do território nacional é preservada pelos próprios agricultores. Isso equivale a 218 milhões de hectares, o que corresponderia, para efeitos de comparação, segundo a Embrapa Territorial, a dez países europeus, dentre os quais os maiores, como França, Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha. Observe-se ainda que nenhum outro país, mormente os que mais acusam o Brasil de destruição ambiental, tem um instituto semelhante. Por que não começar, se são tão responsáveis ambientalmente, por introduzir a reserva legal? Poderiam iniciar por um módico índice de 20%. Porque, muito provavelmente, a grita seria geral: “Atentado ao direito de propriedade”, “redução da competitividade”, “mudança da cultura rural” e assim por diante. Será que tudo isso não lhes antepõe um problema de ordem moral? De onde vem essa arrogância, essa posição de superioridade?


Ainda conforme a Embrapa Territorial, validada pela Nasa, em termos de preservação ambiental, somem-se a isso 13,8% de terras indígenas, 10,4% de unidades de conservação integral, as duas ascendendo a 206 milhões de hectares, correspondentes a 24,2% do território nacional. Ou seja, a preservação ambiental somaria já aqui 49,8% do Brasil. Deve-se ainda acrescentar a esse número as terras devolutas, militares e ainda não cadastradas, chegando, então, ao impressionante número de conservação da vegetação nativa em 66,3% do território nacional. Qual é a autoridade moral dos que nos criticam? Os detratores do País têm algum índice equivalente? Por que não seguem esse exemplo?

As ONGs, boa parte financiada pelos países mais desenvolvidos, poderiam fazer um trabalho equivalente nos Estados Unidos e na Europa, além dos países asiáticos, numa prova de sua imparcialidade e genuína preocupação com o planeta. Se não o fazem, terminam por trazer à tona a questão da parcialidade na sua atuação. Acabam corroborando a máxima da maior instituição patronal americana do agronegócio: farms here, forests there! [clique e terá acesso ao documento: “Farms Here, Forests There”, que defende que os países ricos, especialmente aos EUA, devem desenvolver a agricultura, cabendo aos países tropicais, especialmente o Brasil, preservar as florestas. Essa seria a nossa missão. Não só isso.] O Brasil seria um parque ecológico, os outros países produziriam alimentos sem a concorrência brasileira.

O pano de fundo consiste em que o País se tornou o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, devendo logo ocupar a segunda posição e rumando para a primeira se as condições logísticas (estradas, portos, navegação pluvial, entre outras) forem equacionadas. Trata-se de uma guerra comercial travestida de luta pela preservação ambiental. Poderiam preocupar-se em preservar lá, conforme os critérios estabelecidos aqui!

[aproveitando o gancho e sendo até recorrente, voltamos a citar a Noruega - não por ser a única e sim por ser a mais agressiva na questão do meio ambiente = agride o meio ambiente quando mata baleias e explora petróleo no Ártico e agride os países (caso do Brasil) que não aceitam obedecer ao Farms Here, Forests There” em nível mundial;

outra curiosidade, que cabe aqui,  apesar de haver alguma sintonia entre o Brasil e os EUA - sintonia que existirá, enquanto convier a eles - se refere aos índios.
No Brasil se alguém fizer alguma crítica ao comportamento de um índio por ser enquadrado no crime de racismo, já os Estados Unidos mataram milhões de índios, apenas para ocupar a terra deles.
E hoje tem ONG americana que dar palpites sobre a forma que os indígenas devem ser tratados no Brasil.] 

Os países mais poluidores do mundo são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Japão; alguns europeus vêm logo a seguir. Suas fábricas, seus automóveis, seu modo de vida e suas fontes de energia emitem gases o tempo todo. Apesar de algumas promessas recentes de redução da emissão, consubstanciadas em acordos internacionais, o progresso é lento e em alguns desses países, praticamente inexistente. Pretendem fazer hoje o que os países de Primeiro Mundo fizeram antes. O problema é que o planeta é finito e não comporta uma competição desenfreada desse tipo. Agora, quererem culpar o Brasil por aquilo que fazem não faz o menor sentido. Acontece que os países europeus e os desenvolvidos em geral não pretendem abdicar minimamente do seu padrão de vida - que é, sim, poluente -, preferindo transferir a outros uma responsabilidade sua. E tudo isso sob a máscara de uma “consciência moral”.

As consequências políticas começam a aparecer. A Amazônia já passa a ser considerada “patrimônio da humanidade”, como se não estivesse submetida à nossa soberania. Outros falam de um parque ecológico nacional, porém, na verdade, internacional, que seria financiado pelas maiores potências do mundo. Quem paga, contudo, termina por decidir. Seria o início da renúncia à soberania. O fato é que os problemas ambientais não cessam de se multiplicar, seja pela ação dos países mais poluidores, seja pela explosão demográfica, e os Estados evitam conter esta última por motivos religiosos e outros. Em décadas o problema poderá ser explosivo. O lema “patrimônio da humanidade” poderia vir a ser a justificação militar de uma intervenção em nosso país, em nome precisamente da “humanidade”. Seria a “guerra justa”!

Por que não se pensa, inversamente, numa intervenção militar internacional nos países mais poluidores? Por uma razão simples: eles possuem a força militar, econômica e diplomática para se opor a quaisquer iniciativas desse tipo. O Brasil, por sua vez, não tem uma força militar correspondente ao seu tamanho e à sua posição no mundo. Precisará, certamente, estar pronto para se defender. Exibir capacidade de dissuasão torna-se uma questão central. Ela nos colocaria numa posição de negociação e respeito.

O mundo não é constituído por anjos!

Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS - Publicado em O Estado de S. Paulo. 

 

 

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Qual será o novo modelo? - Nas entrelinhas:

“A modernização das relações trabalho-capital nunca teve uma correlação de forças tão favorável no Congresso, a favor da desregulamentação, é claro”


A grande mudança debatida ontem pela Câmara dos Deputados sobre a legislação trabalhista, com a chamada MP da Liberdade Econômica, foi o fim da remuneração em dobro do dia trabalhado aos domingos, que agora poderá ocorrer por até três fins de semana consecutivos, se houver compensação com uma folga correspondente no decorrer da semana, negociada individualmente. A aprovação da mudança é mais um avanço na desregulamentação das relações trabalhistas regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Em outras circunstâncias, haveria grande mobilizações sindicais para evitar que isso ocorresse, mas não é o que acontece. Com o fim do imposto sindical, os sindicatos entraram em colapso, e os trabalhadores estão muito acuados pelo desemprego. Só se mobilizam em situação de desespero, como, agora, na greve dos motoristas do Espírito Santo, por causa dos ônibus que começariam a circular sem trocadores, quando em todo o mundo já começam a circular caminhões e ônibus sem sequer motorista.

A propósito, vem do Espírito Santo um “causo” que ilustra bem a situação, que me foi contado pelo ex-governador Artur Carlos Gerhardt Santos, que governou o estado no começo dos anos 1970 e foi o grande artífice da industrialização capixaba, cuja economia é a única do país voltada para o comércio exterior. Quando a ponte rodoferroviária Florentino Ávidos, também conhecida como Cinco Pontes, toda fabricada em aço e trazida da Alemanha, foi inaugurada, em 1927, um português de Vila Velha logo inaugurou uma linha de lotação ligando as duas cidades. Em protesto, os catraieiros (barqueiros cujos remanescentes até hoje fazem transporte de passageiros de um lado para outro do canal que separa a ilha de Vitória do continente) resolveram fazer uma greve. “Não tinha a menor chance de dar certo”, ironizou o ex-governador. A ponte existe até hoje, foi um marco da expansão e modernização da economia capixaba, possibilitando a chegada ao Porto de Vitória dos trens da Vitória-Minas.

A modernização das relações trabalho-capital, premissa para a retomada do crescimento, nunca teve uma correlação de forças tão favorável no Congresso, a favor da desregulamentação, é claro. Essa é uma das consequências do fracasso petista no comando do país, depois do naufrágio do modelo de capitalismo de Estado adotado a partir do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva e, principalmente, durante o governo Dilma Rousseff. É jogo jogado. A estagnação da economia, com aumento acelerado da miséria e desemprego em massa, induz mudanças profundas na estrutura produtiva do país, com o uso de novas tecnologias, principalmente robotização e inteligência artificial, que tornam obsoletos dispositivos de uma legislação criada quando o Brasil se urbanizava e se industrializava. A Era Vargas, cujo fim já foi tantas vezes proclamado, parece realmente moribunda.

Sem paradigma
A lógica da velha política classista dos sindicatos, que tinha como eixo a garantia e a ampliação de direitos trabalhistas para reduzir a taxa de exploração de mais-valia, como no caso dos catraieiros de Vitória, não tem a menor chance de dar certo. A velha indústria e os serviços estão passando por mudanças irreversíveis, que fazem da velha legislação letra morta. É um processo que exige soluções novas e criativas para garantir novos direitos aos trabalhadores, sem criar entraves ao funcionamento da economia. Além disso, setores que não conseguem acompanhar o aumento de produtividade pela inovação, recorrem à superexploração do trabalho para manterem sua competitividade.

O paradigma taylor-fordista da grande indústria mecanizada como referência para a organização e a luta dos trabalhadores já era. A crise é tão profunda que o próprio “ser operário”, que Marx classificava como a classe geral que, ao se libertar da exploração e opressão, libertaria todas as demais classes subalternas, hoje é uma espécie em extinção. A nova economia coloca em xeque até mesmo valores herdados da Revolução Francesa e que estão no cerne da democracia liberal: os direitos humanos.  A universalização do direito à saúde e à educação, que já foram essenciais, por exemplo, perderam a funcionalidade para a reprodução ampliada do capital. Não há necessidade de exércitos industriais de reserva e até mesmo de exércitos de massa. Para que tantos operários qualificados e oficiais e soldados diante dos novos artefatos de produção e bélicos guiados por inteligência artificial?

A economia brasileira passa, no plano institucional, por um novo ciclo de modernização. Indiscutivelmente, com a derrota da esquerda, ou seja, dos modelos nacional-desenvolvimentista e social-democrata, o Brasil vacila entre o velho americanismo e os novos paradigmas asiáticos. A contradição principal é o fato de que a modernização terá que ser feita com capital estrangeiro, sem um setor produtivo estatal e grandes grupos industriais nacionais. No século passado, os cafeicultores paulistas e seus banqueiros enfrentaram situação parecida, mas renegaram o velho patrimonialismo e financiaram a industrialização. Hoje, não sabemos se o nosso agronegócio e o mercado financeiro têm capital acumulado e vontade política para investir pesadamente num novo ciclo de modernização fora dos marcos da agricultura, ou seja, na economia do conhecimento: educação, ciência, tecnologia e inovação.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB


 

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Na poeira da ruína



Corrupção e má gerência deixaram em agonia o projeto mais ambicioso dos governos Lula e Dilma. Na Sete Brasil há algo insólito: conseguiram desmoralizar o ‘conteúdo nacional’
 
Um legado de corrupção e má gerência deixou em agonia o projeto industrial mais ambicioso dos governos Lula e Dilma Rousseff: um empreendimento de US$ 89 bilhões (R$ 240,3 bilhões) para construção e operação de 23 navios-sonda e seis plataformas vitais à Petrobras na exploração da camada pré-sal. 

Lula mobilizou empresários com o privilégio da reserva de mercado. Uniu a mão invisível do Estado à calculadora do banqueiro André Esteves, do BTG Pactual. O presidente recebeu a confirmação do nascimento da Sete Brasil na quarta-feira 22 de dezembro de 2010, uma semana antes de passar a faixa presidencial a Dilma Rousseff.
A reunião inaugural aconteceu no número 228 da Praia de Botafogo, no Rio, sob o comando de João Carlos de Medeiros Ferraz e Pedro José Barusco Filho, saídos da estatal de petróleo. Era um conglomerado com mais de três dezenas de subsidiárias e um só ativo (29 contratos)tudo com um único cliente, a Petrobras. 

Oficialmente, o grupo é privado, controlado pelo fundo FIP-Sondas (95%) e Petrobras (5%).  Na vida real não é bem assim. O governo determinou a fundos de pensão (Previ, Petros, Funcef e Valia) que comprassem metade do FIP-Sondas. Junto com a Petrobras têm 59% das cotas. 

O BTG de Esteves lidera o bloco privado (com 20%), seguido pelo Bradesco e Santander (12%, somados). O restante (9%) está fracionado entre EIG Global, Lakeshore e Luce Venture Capital.   Antes de fechar seu primeiro balanço, em 2011, a Sete Brasil já acumulava US$ 75 bilhões (R$ 202,5 bilhões) em contratos com a Petrobras. Para cada um criou uma sociedade com grupos nacionais (Camargo Correa, Engevix, Queiroz Galvão, Odebrecht, UTC e OAS) e asiáticos (Keppel Fels, Jurong, Kawasaki e Cosco).
A Petrobras topou pagar US$ 720 milhões (R$ 1,4 bilhão) por cada sonda

E mais US$ 500 mil (R$ 1,3 milhão) por diária de operação. Tudo acertado, no final de 2011 os principais executivos, João Carlos Ferraz (presidente) e Barusco Filho (diretor financeiro), desembarcaram em Milão para jantar com gerentes do Banco Cramer, de Lugano (Suíça). Com eles estava Renato Duque, diretor de Serviços da Petrobras. 

Quem os ajudou foi Julio Camargo, que já lhes intermediava propinas da OAS, Setal e Toyo Engeneering (Japão). Depois, uniu-se ao grupo Eduardo Musa, também diretor da Sete Brasil. No seu último balanço, de 2013, a Sete Brasil revelou dívidas não pagas de US$ 3,1 bilhões (R$ 8,5 bilhões). Indicou promessas de US$ 4,1 bilhões (R$ 11,2 bilhões) do BNDES, que exigia vários documentos. Auditores anotaram: “A situação indica uma incerteza material que pode suscitar dúvidas significativas sobre a continuidade operacional da companhia.” 

Na semana passada, 19 meses depois, a empresa ainda negociava a documentação com o banco estatal, quando se tornou pública parte da confissão de Barusco sobre US$ 97 milhões (R$ 261,9 milhões) em subornos que ele e outros receberam.
A lenta agonia da Sete Brasil deixa transparecer algo insólito: conseguiram desmoralizar até o “conteúdo nacional".  O que era construção dissipa-se na poeira da ruína. E uma nova conta vai sobrar para os cofres públicos, via Petrobras e fundos de pensão estatais. 

Fonte: José Casado,  jornalista

sábado, 29 de novembro de 2014

Policial branco que tentou prender assaltante negro e teve que matá-lo, foi inocentado - nos Estados Unidos. Fosse no Brasil, o policial já seria condenado antes mesmo de disparar

Quando os fatos não têm vez

A sensação de que a polícia é injusta com os negros nos EUA ofusca o fato de que, no caso da morte de Michael Brown, não houve crime

Em seu poema Burnt Norton, o americano T.S. Eliot (1888-1965) escreveu que “a espécie humana não pode suportar tanta realidade”. Diante de fatos concretos que desafiam uma ideia preconcebida, a saída mais comum é alterá-los e reduzi-los, em vez de mudar de opinião. Foi essa a reação que predominou na semana passada depois do anúncio, na segunda-feira 24, de que o policial Darren Wilson, branco, não iria a julgamento por ter matado a tiros, em agosto, o jovem Michael Brown, negro, em Ferguson, na região metropolitana de Saint Louis — cidade natal de Eliot. O episódio foi visto como uma confirmação da percepção de que a polícia americana é racista e injusta e provocou protestos, em alguns casos violentos, em mais de 100 cidades americanas. Dezenas de carros policiais foram destruídos. Lojas foram saqueadas e incendiadas. Na Califórnia, mais de 130 pessoas foram presas. As multidões indignadas preferiram ignorar as 4799 páginas com provas materiais, depoimentos de testemunhas e o relato do policial divulgados pela promotoria e que serviram de base para a decisão de não levar Wilson a julgamento.
 EVIDÊNCIAS - À esquerda, o rosto inchado do policial após enfrentar Brown (à direita). Ao fundo, imagem de vídeo mostra Brown agredindo o dono da loja que ele roubou

Aos fatos: em 9 de agosto, Darren Wilson, de 28 anos, fazia a patrulha com sua viatura quando avistou dois homens caminhando no meio da rua. Pela janela do carro, pediu a eles que fossem para a calçada. Dorian Johnson, amigo de Michael Brown, respondeu que já estavam quase chegando em casa e continuaram no asfalto. Naquele momento, Wilson se deu conta de que o biotipo e as roupas dos jovens coincidiam com a descrição dos bandidos que haviam roubado uma loja de conveniência minutos antes. Ele chamou reforço pelo rádio, engatou a ré e atravessou o carro na pista, impedindo a passagem dos suspeitos. Ao tentar abrir a porta para sair do automóvel, Wilson foi impedido por Brown, que deu socos em seu corpo e em sua cabeça. A agressão foi confirmada por fotografias do rosto de Wilson feitas pela perícia. Em algum momento da refrega, Brown entregou ao amigo uma caixa de cigarrilhas, o que confirmou a suspeita de que eram eles os ladrões procurados. Em seguida, Brown, de 18 anos e 1,98 metro, a mesma altura de Wilson, debruçou-se para dentro do carro e tentou tirar a arma do policial. A pistola Sig Sauer P229 escorregou. Quando Wilson a alcançou, ele apertou o gatilho uma, duas vezes, e nada. Na terceira tentativa, a arma disparou. A bala atravessou a porta do carro e atingiu Brown. 

O sangue encontrado dentro do carro confirmou a versão. Após o tiro, Brown fugiu. Wilson foi atrás dele com a pistola em punho, dando ordem para que se deitasse no chão. Depois de tentar, sem sucesso, entrar em um automóvel cheio de passageiros, Brown deu meia-volta e caminhou — ou correu (as testemunhas deram versões diferentes sobre isso) na direção do policial. Wilson disparou sua arma dez vezes para tentar detê-lo, sem sucesso. A bala fatal entrou pela parte de cima do crânio de Brown. Embora algumas testemunhas tenham dito que ele levantou as mãos, implorando para que Wilson não atirasse, os rastros de sangue encontrados pelos técnicos forenses corroboram o relato do policial: não houve esboço de rendição

Outra versão que evaporou com a coleta de provas foi a narrada por Johnson. Ele disse que Wilson, ainda sentado no carro, levantou seu amigo pela gola. Brown pesava 131 quilos, 35 a mais que o oficial. Diante de tais evidências e de tantos testemunhos desencontrados, o grande júri, formado por cidadãos comuns, decidiu que não havia elementos para indiciar Wilson. A versão do policial, de que atirou porque se sentiu ameaçado por Brown, era crível.

As minúcias da investigação, porém, são irrelevantes para os manifestantes que tomaram as ruas americanas, porque a narrativa de tensão permanente entre a polícia, predominantemente branca, e a população negra, em geral mais pobre, já estava posta. Embora os negros constituam 63% da população de Ferguson, só há três deles entre os 53 policiais da região. “A verdade é que a maioria dos negros não quer trabalhar na segurança pública. Precisamos da ajuda deles para diminuir essa grande discrepância”, disse o prefeito da cidade, James Knowles. A questão é que, nos Estados Unidos, ainda que as leis raciais tenham desaparecido há cinco décadas, os cidadãos infligem a si mesmos uma segregação baseada na cor.

Pelas regras do mercado imobiliário americano, por exemplo, vizinhos podem vetar a chegada de um novo morador. Isso leva à formação de bairros só de negros, asiáticos, brancos ou latinos. A maioria dos crimes é intrarracial: 84% das vítimas brancas foram mortas por criminosos brancos e 93% dos negros foram assassinados por negros. Mas, como as escolas são financiadas pelos distritos, áreas mais pobres acabam tendo os piores professores, o que resulta num ciclo vicioso que preserva as desigualdades e deixa algumas comunidades mais expostas ao crime. Em Ferguson, os negros representam 86% das pessoas abordadas pelas viaturas e 92% dos que terminam na cadeia. Embora aviltantes, esses números são condizentes com a proporção dos crimes atribuídos a negros pelas próprias vítimas. Isso se reflete no estereótipo que os policiais têm dos criminosos e leva ao tratamento injusto de pessoas que não devem nada à lei. 

Uma pesquisa mostra que cerca de 70% dos negros dizem se sentir injustiçados, enquanto entre brancos esse desconforto só existe para 37%. O número é menor que o de 2009, quando 86% dos negros tinham essa percepção. “A concentração de negros nas áreas pobres, de alta criminalidade, é um problema maior do que o racismo na polícia”, diz o sociólogo John Logan, da Universidade Brown, na Califórnia. Ainda que Darren Wilson não seja um racista dedicado a matar negros apenas por serem negros, uma parcela da população americana já o condenou a esse papel simbólico. Trata-­se de uma manipulação dos fatos amparada em episódios reais, como o espancamento de Rodney King, um operário negro, por quatro policiais em Los Angeles, em 1992. Em Burnt Norton, T.S. Eliot escreveu: “O que poderia ter sido e o que foi / Convergem para um só fim, que é sempre presente”.

Com reportagem de Paula Pauli
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