A instituição
do school board, de par com a do júri, é seminal para o estabelecimento
da soberania do povo nas democracias de DNA saxônico. Nem cultura, nem
estágio de desenvolvimento econômico são obstáculos para a compreensão
da sua importância a quem é oferecida a oportunidade de adotá-las. Elas
existem, firmes e fortes, em todos os países de colonização inglesa, dos
africanos aos asiáticos, passando pela Índia, pela Austrália e o mais.
Mas, como sói
acontecer em tudo, deus ou o diabo estão é nos detalhes. A "democracia
brasileira", aquela que parece mas não é, por exemplo, inclui um pedaço
da instituição do júri, exclusivamente para processos criminais.
Tocqueville, que mesmo antes de visitar os Estados Unidos em 1830, já
louvava a importância da instituição do júri na educação do povo inglês
para a democracia, conhecia bem a diferença.
O júri nos
processos criminais só exige julgamentos sobre questões primárias,
dizia. E, além do mais, quase todas as pessoas esperam passar a vida
inteira sem sofrer um processo criminal. Quando no juri julgam "os
outros". Nos julgamentos civis ocorre o contrário. Todo mundo espera, na
vida, enfrentar processos civis. E eles envolvem conceitos muito mais
sutis. O juri nesses julgamentos faz com que o direito privado tenha de
ser expresso numa linguagem acessível a todos os mortais e que os
advogados especializem-se em traduzir as nuances de cada caso para o
jurado nas suas argumentações.
Assim, cada
membro de cada júri considera, ao exercer esse papel, que amanhã pode
estar ele sentado na cadeira de quem está julgando hoje. "O júri, e
sobretudo o júri civil serve para dotar todo e qualquer cidadão da
experiência de ser juiz, e essa experiência é a que melhor o prepara
para ser livre. Ela reafirma, em todas as classes sociais, o respeito
pela coisa julgada e pela idéia do Direito. É a maneira mais eficaz de,
ao mesmo tempo, fazer o povo exercer o seu poder e aprender a exercer o
seu poder numa democracia. Sem essas duas coisas, o amor pela
independência transforma-se numa paixão destrutiva".
O juri, mais que uma ferramenta da Justiça, é portanto, para Tocqueville, sobretudo uma instituição política.
Cabe melhor
ainda nessa categoria a instituição do school board. Ele é a
representação eleita da menor célula do sistema de voto distrital puro, a
única maneira de instituir a verdadeira democracia representativa, e a
mais direta e explícita das ferramentas de submissão do Estado à vontade
do povo. Refere-se a cada bairro que elege, obrigatoriamente entre seus
residentes, os 7 membros do conselho de pais de alunos que controlará,
pelos 4 anos seguintes, sempre sujeitos a recall, a escola pública nele
instalada. É ele, e não o político de plantão ou o partido que
"aparelhou" o sistema quem contrata e demite o diretor de cada escola,
aprova ou não os seus orçamentos, os seus programas curriculares, as
suas metas anuais e o desempenho de seus professores.
Neste
particular momento a esfera dos school boards está francamente
conflagrada nos Estados Unidos. A fronteira que separa os contendores é a
dos que negociam suas questões com os professores através de sindicatos
e os que não aceitam esse sistema e negociam diretamente com seus
funcionários, professores incluídos.
Lá, como em
toda parte o setor da educação é o primeiro dos alvos visados pela luta
ideológica e os sindicatos de professores os mais abertamente
comprometidos com partidos e movimentos radicais. Seu principal
argumento de expansão como contrapartida dos school boards é o de toda
entidade corporativa: a sua "especialização" em formular e fazer
tramitar projetos de educação. O seu principal ponto fraco o de toda
representação corporativa: a incoercível tendência de desviar-se da
finalidade alegada para a satisfação dos interesses dos encarregados de
atingi-la, que faz com que todo o sistema acabe "apropriado" pelos
professores em detrimento dos alunos das escolas públicas.
A National
School Board Association (NSBA), instituição criada em 1940 para zelar
pela qualidade da educação pública transformou-se, com o tempo, na
grande impulsionadora dos sindicatos de professores como contraparte
dos school boards na gestão das escolas públicas. Suas bandeiras vão na
linha de extrair salários e aposentadorias cada vez mais altos e menos
dependentes de critérios de mérito e banir todas as tarefas paralelas
impostas aos professores pelos school boards. Além desse viés para a
"insustentabilidade", e do conflito subjacente à ação de sindicatos de
funcionários públicos que disputam, com o concurso de outros
funcionários públicos, fatias crescentes de dinheiro de impostos e não
participações maiores em lucros que contribuíram para que fossem
obtidos, seus antagonistas apontam, também, a crescente contaminação do
currículo escolar por material e discursos ideológicos.
Nada, portanto, a que um ouvido brasileiro não esteja totalmente acostumado. No ambiente
de extrema polarização que desaguou na derrota de Donald Trump e na
eleição de Joe Biden, entretanto, a NSBA cruzou, num rompante, a sagrada
fronteira da soberania do povo. E foi só aí que quebrou fragorosamente a
cara.
Enviou uma
carta aberta ao presidente eleito em que, alegando "ameaças à segurança
dos alunos e dos professores nas escolas públicas", afirmava que "alguns
pais deveriam ser considerados como terroristas domésticos" e pedia
"legislação federal e outras providências" para impor decisões a todas
as escolas públicas independentemente do que pensassem os pais de
alunos. O resultado foi que, mesmo tendo-se retratado do erro, e apesar
das greves de professores em alguns locais, desde outubro de 2021 (a
carta foi publicada em 29 de setembro daquele ano) 20 associações
estaduais de school boards já romperam seus contratos de adesão à NSBA.
Por grave que
seja a doença que a afeta a partir do âmbito federal, esta é uma
importante medida da saúde da democracia americana, essa ilustre
desconhecida de populações isoladas pela língua e submetidas a séculos
de "censura estrutural" como a brasileira. Suas raízes estão solidamente
plantadas nos equipamentos de materialização dos poderes do povo nas
instâncias estadual e municipal. São quase dois países. E pelo menos num
deles o debate sobre o que fazer é livre, infindável, inconclusivo e
sujeito às intempéries da conjuntura como deve ser em toda democracia.
Mas o preceito de que só o povo tem o legitimo direito à decisão final é
sagrado. Pela mesma razão que quem escolhe a comida é quem está pagando
por ela e vai comê-la e não o garçom, quem escolhe o que as escolas
públicas e o sistema judiciário vão servir, na democracia americana
ainda são o júri popular e os pais dos alunos.
O Vespeiro - Fernão Lara Mesquita