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terça-feira, 5 de abril de 2022

A terceira via e o povo bestializado - Revista Oeste

Caio Coppolla 

O que une o sonhador indeciso e o jogador egoísta 

 O povo assistiu àquilo bestializado…”, a citação passou à história como retrato da Proclamação da República, um movimento alheio aos anseios populares e à participação das massas. Num país dado a conchavos de furna e acertos de gabinete, a frase permanece atualíssima e agora descreve com primor a reação do já minguado eleitorado da terceira via: “…atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”.
 
João Doria anunciou nesta quinta-feira (31) que deixa o cargo de governador do Estado de São Paulo e segue na disputa pela Presidência | Foto: Governo do Estado de São Paulo
João Doria anunciou nesta quinta-feira (31) que deixa o cargo de governador do Estado de São Paulo e segue na disputa pela Presidência | Foto: Governo do Estado de São Paulo

Palavras que desmoronam

Verba volant, o brocardo latino nos ensina que as palavras voam. Mas os romanos não conheciam nossos artefatos tecnológicos de registro de som e imagem. Como tijolos, nossas palavras capturadas têm peso, e, uma vez empilhadas da maneira certa, podem até construir algo belo. Às palavras e aos tijolos, então: “Desistir da minha candidatura seria desistir de mudar o Brasil, o que é o meu sonho. Não existe qualquer possibilidade disso vir a acontecer” — tocante, mas o autor dessa fala acordou do seu sonho; ou será que sonhava acordado? Pouco importa, dias depois, publicou por escrito (scripta manent):  “Abro mão, nesse momento, da pré-candidatura presidencial e serei um soldado da democracia para recuperar o sonho de um Brasil melhor” — parece que o indeciso sonhador desistiu de sonhar grande e suas palavras, como pesados tijolos mal-arranjados, desmoronaram sobre ele. E por falar em desistência…


Desistir de desistir
O anedotário do futebol não é estranho à licença poética e já estamos familiarizados com a ginga do boleiro que “fez que foi, não foi e acabou fondo” — mas quem disse que político não sabe driblar? A “finta do fondo” foi o drible escolhido por um certo artilheiro que, sabendo que seria substituído por mau desempenho em campo, enganou até a comissão técnica do próprio time ao cavar uma falta na área e colocar a única bola da partida debaixo do braço: O dia foi de vitória pro artilheiro sem gols que desistiu de desistir.  — A gente só continua se eu bater o pênalti, se não desisto do jogo e sumo com a redonda!

O treinador, que já tinha escalado outro jogador pra cobrança, tentou desconversar: — Devolve a bola, querido! Todo mundo sabe que você é o batedor oficial…

Mas até artilheiro que não marca gol é esperto, e o atacante cobrou seu técnico: — Então, só pra garantir, avisa aí pra toda essa várzea, em alto e bom som, que eu, só eu!, vou bater esse pênalti…

E, assim, a cobrança foi anunciada pelo alto-falante. Só que a torcida estava distraída — de olho no outro jogador no aquecimento — e pouca gente comemorou… Acontece, mas o dia foi de vitória pro artilheiro sem gols que desistiu de desistir: ganhou aquele abraço do técnico na lateral do campo e recebeu dos companheiros de equipe vários tapinhas nas costas quando entrou no gramado segurando a bola do jogo.

Os protagonistas do sonho e do jogo
Há um denominador comum entre o sonhador indeciso de palavras que não se escrevem (nem se cumprem) e o jogador egoísta que sequestra a partida pra si e nunca joga pelo time: eles esquecem que os verdadeiros protagonistas do seu sonho e do seu jogo estavam lá, assistindo a tudo isso, bestializados. Aos eleitores desencantados, nossa solidariedade na torcida de que eles não percam a esperança no Brasil. Este país é muito maior do que as fantasias de uns e os estratagemas de outros.

Leia também “3 anos de “fake news”: o STF não é o Judiciário”
 

Caio Coppolla é comentarista político e apresentador do Boletim Coppolla, na Jovem Pan


sábado, 8 de agosto de 2020

'Posso não mais seguir com vocês', escreveu técnico de enfermagem morto pela Covid-19 ao se despedir da mulher



Hiran Rodrigues Lima e seu irmão morreram em um intervalo de menos de 30 horas no início de julho 

Irmãos, piauienses, funcionários públicos, Hiran e Ivaldo Rodrigues Lima perderam a batalha para a Covid-19. Os dois morreram em um intervalo de menos de 30 horas no início de julho. Técnico de enfermagem do pronto-socorro no hospital de referência para o novo coronavírus em Brasília, Hiran, de 47 anos, deixou duas filhas, Ana Júlia, de 4 anos, e Angela, de 13 anos, além da esposa, Rosecleia, de 28 anos.

O técnico em enfermagem Hiran Rodrigues Lima, de 47 anos. Foto: Arquivo PessoalO técnico em enfermagem Hiran Rodrigues Lima, de 47 anos. Foto: Arquivo Pessoal
INFOGRÁFICO:  Histórias das vítimas da Covid-19 no Brasil


Ivaldo, de 43 anos, professor da rede municipal em Águas Lindas, cidade goiana vizinha ao Distrito Federal, era solteiro e não tinha filhos, mas uma legião de alunos que lamentaram a perda. O pai dos dois, Luiz Lima, de 85 anos, avisou não ter ainda condições de falar da morte dos filhos. Hiran sucumbiu à doença no dia 1° de julho, quando o Brasil ultrapassou a marca dos 60 mil mortos. Rosecleia custa a acreditar que o marido, que embora diabético tinha uma boa saúde, não resistiu.

Ela relembra a última conversa, por telefone, quando o marido ligou avisando que seria entubado. A esposa fez uma chamada de vídeo para as filhas verem o pai.  Em mensagem, o marido se despediu: "Amor, o (exame de) raio-x não está bem, me perdoe pela minha falta de paciência, por não ter sido um bom marido, minha preocupação era apenas no sustento da casa, posso não mais seguir com vocês. Amo todas vocês".
Hiran, segundo ela, era um homem tranquilo, o que até provocava piadas sobre a lentidão ao dirigir o carro ou a calma com que encarava situações difíceis."Era um profissional atencioso com os pacientes, um pai e marido amoroso", conta ela.


Está chegando o Dia dos Pais e eu vou ser o pai e a mãe agora. A Ana Júlia ainda é muito pequena e não entendeu quando eu disse que o pai virou uma estrelinha. Ela fica na porta esperando por ele, dizendo que ele está demorando —, diz Rosecleia.
Quando recebeu uma ligação sobre a morte do cunhado, Rosecleia não acreditou. "Eu falei: 'vocês estão enganados porque os dois são parecidos, foi meu marido que morreu'". Para acabar com as dúvidas, Rosecleia foi ao hospital de campanha onde Ivaldo, também com o novo coronavírus, estava internado, perto de sua casa.
Me vi preenchendo outra certidão de óbito, um dia depois de enterrar o meu marido. Até agora estou sem acreditar no que aconteceu —, diz ela.

Rosecleia se lembra com carinho da alegria do cunhado, que não apresentava nenhuma comorbidade:
Ele tinha uma gargalhada alta. A gente já sabia de longe que ele estava no ambiente. Era muito sonhador, solidário, ajudava as pessoas.
Pouco antes de sentir os sintomas da Covid-19, Hiran passou uns dias com o irmão, quando ele pode ter se infectado, explica Rosecleia. Ela disse que conversava muito com o marido sobre os riscos, porque ele estava na linha de frente do atendimento aos pacientes, e que Hiran tentou ser removido para outra área do hospital, por ser diabético, mas não conseguiu.

O Globo