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segunda-feira, 3 de abril de 2023

Sobre punks, PANCs e beldroegas - Evaristo de Miranda

Revista Oeste

Essas plantas reúnem tesouros nutricionais ainda pouco conhecidos (altos teores de ômega 3, proteínas, vitaminas e minerais). Muitas têm virtudes medicinais

Flores e plantas comestíveis, também conhecidas como Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) | Foto: Madeleine Steinbach/Shutterstock

 Flores e plantas comestíveis, também conhecidas como Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) | Foto: Madeleine Steinbach/Shutterstock 

“Beldros nem beldroegas se não semeiam,
porque nascem na infinidade de uns e de outros,
sem os semearem, nas hortas e quintais
e em qualquer terra que está limpa de mato.”
Tratado Descritivo do Brasil, 1587
Gabriel Soares de Sousa

Qual a diferença entre punks e pancs? A cultura punk é conhecida por sua aparência agressiva, estilo musical, sarcasmo niilista e busca de subversão do elitismo cultural. A cultura das PANCs é um patrimônio vegetal, genético, culinário e gastronômico. O acrônimo PANC significa “Plantas Alimentícias Não Convencionais”, sobretudo fruteiras e hortaliças. O interesse por essas plantas tão especiais não para de crescer.

A sigla PANC foi criada pelo doutor em agronomia Valdely Kinupp. No livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, ele catalogou 351 espécies, uma pesquisa de 12 anos, em parceria com Harri Lorenzi. Em seu trabalho pela conservação da flora brasileira, Lorenzi percorreu o Brasil, por mais de 40 anos, em expedições científicas. Levantou, catalogou e coletou plantas, sobretudo as com potencial econômico e ameaçadas de esquecimento e extinção.

Livro Plantas limentícias Não Convencionais (PANCS) no Brasil, de Valdely Ferreira Kinupp e Harri Lorenzi
Livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, de Valdely Ferreira Kinupp e Harri Lorenzi | Foto: Divulgação

Para o pesquisador de hortaliças PANCs da Embrapa, Nuno Madeira, existem pelo menos 10 mil espécies de plantas com partes comestíveis e alimentícias, não convencionais. “Apenas” umas 150, no máximo, em todo o Brasil, são comerciais, em maior ou menor escala. Dentre elas, algumas são consideradas PANCs, possuem uso tradicional e são encontradas em mercados e feiras livres, como bertalha, serralha, jambu, vinagreira, taioba, mostarda, almeirão-roxo, cariru e ora-pro-nóbis.

Sugestão de receita com a planta major gomes (cariru, joão-gomes)
 publicada pelo site da Embrapa | Foto: Divulgação

Entre hortaliças PANCs existem perto de duas dezenas mais conhecidas: almeirão-de-árvore; amaranto; anredera; araruta; azedinha; beldroega; bertalha; capuchinha; cará-moela; cariru (joão-gomes); caruru (bredo); dente-de-leão; físalis; jambu; mangarito; maxixe-do-reino; muricato; ora-pro-nóbis; peixinho; serralha; taioba e vinagreira. Boa parte delas pode ser cultivada em casa, em jardins e vasos. A Embrapa Hortaliças oferece cursos de produção de PANCs e manuais. As PANCs são encontradas cada vez mais em feiras livres, lojas de produtos naturais, supermercados com produtos raros e sofisticados e em sites para consulta, compra e entrega na internet. 

Existem milhares de espécies vegetais com alguma parte comestível de interesse para a culinária e a alimentação humana

A vinagreira é a base do arroz de cuxá, prato tradicional sobretudo no Maranhão. 
O jambu é ingrediente essencial do tacacá, muito consumido na Região Norte. 
O ora-pro-nóbis, a carne do pobre, é comum na culinária do interior de Minas Gerais e São Paulo, com diversidade de receitas a se comer de joelhos. 
O caruru, também conhecido como bredo, comum na culinária do Nordeste, na Bahia, dá nome a um dos pratos típicos do Estado, o caruru (sic), apesar de em geral nem ser mais usado neste. 
Ora-pro-Nóbis
Ora-pro-nóbis | Foto: Reprodução/Embrapa
Partes consideradas não convencionais de plantas alimentícias comuns também podem ser categorizadas como PANC. 
O consumo do “umbigo” ou “coração” (mangará) da bananeira é saboreado em muitas receitas. A flor de abóbora e abobrinha, a célebre fiore di zucca, empanada ou em sopa, tão apreciada na Itália e por seus milhões de descendentes no Brasil, além de dar nome a tantos restaurante no Brasil, é uma delícia PANC. 
As partes terminais de hastes e brotos de cucurbitáceas (abóboras, abobrinhas e chuchus) são utilizados como cambuquira na preparação de tortas, sopas ou omeletes, refogadinhos, cozidos e até como recheio de pastéis. 
Cambuquira, nome até de um município mineiro, é termo de origem tupi (ka’aumbykyra) e significa extremidade, rabadilha, grelo ou talo de folhas. A utilização da medula do caule do mamoeiro ou o consumo das folhas da batata doce e da mandioca são outros exemplos. O uso das folhas de mandioca na multimistura para ajudar a superar carências alimentares de crianças pela Pastoral da Criança (mesmo se não elimina a anemia) é um exemplo de PANC, valorizada no combate à desnutrição e à mortalidade infantil. licitados — passam a fornecer PANCs, surpresos pelo interesse dos consumidores por essas “verduras”. 

(...)

A beldroega é um exemplo. 

Beldroega
Plantação de beldroega | Foto: Reprodução/Embrapa

A beldroega é uma hortaliça herbácea anual, da família Portulacaceae, com 115 espécies e um único gênero: Portulaca. Possui folhas suculentas, espessas e pecioladas, com até 3 centímetros, flores solitárias amarelas e sementes pretas diminutas. Aparece em áreas de cultivos em todo o país como erva daninha, e poucos conhecem seu uso culinário. É uma planta rica em ômega 3, vitaminas, minerais (zinco e magnésio) e usada no preparo de saladas, sopas, bolinhos, chás e produtos cosméticos e medicinais. 

No conto O Luzeiro Agrícola, de Monteiro Lobato, o funcionário ministerial recém-contratado Sizenando Capistrano, inspetor agrícola, recebe como primeira demanda direta do ministro da Agricultura a elaboração de um relatório sobre a beldroega. “Sizenando deitou mãos à tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre (…) beldroega e sua aplicação na culinária.” Após “rever as provas do calhamaço, a modo de escoimá-lo dos mínimos vícios de linguagem (…) saiu obra papa-fina, em ótimo papel e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do ministro…”. Impresso pela gráfica oficial, o relatório foi entregue ao ministro da Agricultura. Este sugeriu a Sizenando a incineração imediata de todos os exemplares no forno da Casa da Moeda, antes de qualquer leitura. 

“Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu. — Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a beldroega? Que o pusesse à venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha vossa senhoria que é o mais razoável? Retire o que quiser e forno com o resto. 

— E depois, que devo fazer? indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial. 

— Escrever outro relatório, respondeu sem vacilar o ministro. 

— Para ser queimado novamente?, atreveu-se a murmurar o poeta-inspetor.” 

Beldroega
Beldroega - Foto: Shutterstock

A agricultura brasileira, seu ministério, ministros e funcionários mudaram muito desde o tempo dos personagens de Monteiro Lobato, como o Jeca Tatu e os do Luzeiro Agrícola. A bem da verdade, não todos. As PANCs não terão destino semelhante ao relatório de Sizenando, graças à valorização das tradições culinárias, à gastronomia sofisticada, ao movimento vegano, às oportunidades de negócio e renda para pequenos agricultores, às lojas e aos empórios de produtos naturais e ao trabalho de conservação, seleção e melhoramento das espécies e ao desenvolvimento de seus sistemas de cultivo por pesquisadores. 

O que é uma erva daninha? É uma planta cujas virtudes ainda são desconhecidas. E, talvez, candidata ao patrimônio culinário brasileiro. 

Leia também “Equinócio de outono, tempo de refletir”

Evaristo de Miranda, colunista - Revista Oeste 

 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Nas ceias de fim de ano, cuidado ao falar da uva passa - VEJA

Coluna da Lucilia

A pequena notável

O cardápio das ceias de Natal e de Ano Novo não deveria ser alvo de polêmica. As ocasiões pedem conciliação, não desarmonia. Mas os pratos podem, de repente, virar o centro das atenções, provocando opiniões divergentes, para apreensão de quem pilotou o jantar – quem cozinha sabe o que estou falando. O chester costuma passar ileso pelos convivas. A farofa em geral faz figuração discreta. O arroz, se for soltinho, também não preocupa a anfitriã

Eliminados os candidatos do grupo principal, o pomo da discórdia é quase sempre a enrugadinha uva passa. Pomo, como se sabe, é aquela maçã que, segundo a mitologia grega, foi oferecida pela deusa Discórdia, dando início a uma acirrada disputa entre as divindades que orbitavam o rei de Troia. Pois da mesma maneira que a fruta da Antiguidade, a moderna e ressecada uva passa tem potencial desagregador.

Tão pequena e tão polêmica! Com presença clássica em pratos como panetone, manjar, arroz e farofa, ela pode causar sérios problemas durante a ceia. Geralmente, quem abomina a frutinha não se contenta com a possibilidade de ciscá-la discretamente, empurrando-a para um canto do prato, como se a colocasse no “cantinho da reflexão”. O pessoal que vota contra a uva passa quer bani-la definitivamente de qualquer menu desta época do ano – e até do ano inteiro. Fora da mesa e diante da tela do smartphone, alguns se comportam como verdadeiros haters de uva passas, como se elas representassem o que há de pior na culinária.

Os comensais, da direita esclarecida à esquerda democrática, podem aparar arestas partidárias. Veganos e carnívoros podem se tolerar momentaneamente. Se a religião surgir como um tópico de conversa, crentes e descrentes, movidos pelo espírito de confraternização das festas de fim de ano, podem se dar as mãos. O que parecem irreconciliáveis são os pareceres discrepantes sobre a uva passa. Quem gosta, adora. Quem não gosta, odeia. E não se fala mais nisso!

Diante dos mais radicais, não adianta argumentar com base nos benefícios que a uva passa traz para a saúdeela é antioxidante, rica em fibras e tem alto teor de vitaminas e minerais. Nada disso, no entanto, é suficiente para convencer quem quer se livrar da frutinha. A uva passa pode ser feinha, coitada, mas, como diz o sábio provérbio, “beleza não se põe à mesa”. Mais importante do que a aparência é a fartura, algo que, segundo a tradição, a uva passa atrai para aqueles que a consomem em dias de festa. O aspecto ritualístico não pode ser simplesmente descartado, mesmo que hoje em dia não seja mais levado ao pé da letra.

A uva passa, em vez de desagregadora, deveria ser vista como um pequeno monumento à tolerância. Nos próximos dias, portanto, antes de criar caso por causa da uva passa, pense na sua saúde e no espírito de paz e concórdia que, sobretudo nestes tempos de provação, deve prevalecer no período natalino.

Lucilia Diniz - Coluna da Lucilia - VEJA