O Estado de S. Paulo
Um país está seriamente doente quando todos os seus
sistemas de governança, e a maioria absoluta das forças que têm
influência real na condução das questões públicas, aceitam como
perfeitamente normal que a lei seja usada para permitir que os marginais
violem a lei – o tempo todo, e cada vez mais. Essa aberração não é
apenas aceita; é ativamente incentivada pelo Congresso Nacional
e pelas prateleiras mais altas do Poder Judiciário. Também não é uma
exceção – é o estado normal das coisas. O resultado prático é que o
Brasil vive sob um regime de vitória permanente do crime, como ficou
claro mais uma vez nessa alucinante libertação de um chefe do PCC de São
Paulo, condenado em segunda instância e com sentença confirmada no STJ
por tráfico de drogas em escala mundial.
Estamos, aí, em plena demência. O traficante, considerado pela polícia e pelo Ministério Público como um delinquente perigoso e que ameaça a segurança social, não foi solto por um juizinho qualquer do interior, mas por ninguém menos que o mais alto tribunal de Justiça da nação brasileira. Mais: o homem foi solto, acredite se quiser, contra a vontade de nove dos dez atuais juízes do STF; bastou a decisão de um único ministro para reduzir a zero a autoridade do Supremo num episódio que ficou escancarado aos olhos de toda a população como uma fratura exposta. Se isso não é uma injustiça em estado puro, qual seria, então, a definição de justiça?
A história fica ainda pior. Como revelou o repórter Vinícius Valfré em O Estado de S. Paulo, o ministro Marco Aurélio, que mandou soltar o peixe graúdo do PCC paulista, já tinha colocado em liberdade, só neste ano de 2020, pelo menos 92 outros criminosos – também beneficiados pelas liminares que concedeu nos habeas corpus solicitados junto a ele. Não há erro neste número: são 92 mesmo, numa média de dez bandidos soltos por mês, ou um a cada três dias. Não existe nada parecido com isso em lugar nenhum do planeta.
A justificativa é a mesma: uma trapaça legal contrabandeada para dentro do recente “pacote anticrime”, em sua passagem pela Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados. Por este dispositivo de proteção explícita aos criminosos e ao crime, são consideradas ilegais todas as prisões preventivas que não forem “reavaliadas” e “justificadas” a cada 90 dias. É praticamente impossível, desse jeito, manter na cadeia qualquer marginal que tenha dinheiro para pagar advogados caros, desses que conseguem agir nas alturas do STF e sabem como utilizar o atual sistema de sorteios para fazer os seus casos caírem – por exemplo – com ministros como o dr. Marco Aurélio.
O sistema de Justiça que existe hoje no Brasil tornou-se simplesmente incompreensível para os cidadãos; faz sentido para congressistas, a OAB e o STF, e para ninguém mais. É um convite permanente ao desastre.
J.R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo
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