Blog do Josias
Acordão da cueca passa sujeira a sujo no Senado
De tanto ser brasileiro contemporâneo, o cidadão nascido nesta terra de palmeiras vai adquirindo certa prática. A contragosto, adapta-se à lógica do lugar, pois há método na desfaçatez. O Brasil deixou de ser imprevisível. Tornou-se um país absurdamente previsível.
De tanto ser brasileiro contemporâneo, o cidadão nascido nesta terra de
palmeiras vai adquirindo certa prática. A contragosto, adapta-se à lógica do
lugar, pois há método na desfaçatez. O Brasil deixou de ser imprevisível. Tornou-se
um país absurdamente previsível. O Senado alcançou uma façanha: passou a sujo o
escândalo da cueca endinheirada. Fez isso num instante em que há no ar uma fome
de limpeza. Davi Alcolumbre, presidente da Casa, tricotou um acordão que
acomodou a imundície em baixo do tapete —com o Supremo, com tudo.
Todos saíram ganhando, exceto a moralidade, que continua perdendo. Empurrado
para uma licença de 121 dias, o dono da cueca trancou-se em seus rancores sem
abrir mão das prerrogativas de parlamentar. Assume a poltrona de senador o
"cueca júnior". Filho e suplente do "cueca sênior", ele
passará a desfrutar de todas as regalias que o déficit público pode pagar -de
moradia a motorista, de médico a dentista. A banda corporativa do Senado pode
exercitar o seu espírito de corpo —ou de porco— sem precisar gravar as digitais
no painel eletrônico.
O ministro Luís Roberto Barroso, que afastara a cueca do mandato por 90
dias, sentiu-se à vontade para dar meia-volta. Livrou-se de sofrer uma derrota
no plenário do Senado. Armava-se ali uma emboscada contra a sanção cautelar. O
presidente do Conselho de Ética, Jayme Campos, pode colocar no freezer o pedido
de cassação do mandato da cueca. O DEM, partido coabitado por Chico Rodrigues,
Davi Alcolumbre e Jayme Campos, deputado Rodrigo Maia, continuará se fingindo de morto, como se nada
tivesse sido descoberto pela polícia. O maior inconveniente de toda essa
movimentação é o convívio com políticos e autoridades que agem no pressuposto
de que vivem num país de bobos. Essa gente parece decidida a acordar o asfalto.
Ao sabatinar Kassio Marques nesta quarta-feira, os membros da Comissão de Constituição e Justiça do Senado serão submetidos a dois relatórios. Num, o relator oficial, senador Eduardo Braga, enaltece o indicado de Jair Bolsonaro para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Noutro, o senador Alessandro Vieira, relator paralelo, recomenda a rejeição do nome. Sustenta que o candidato não preenche dois requisitos constitucionais exigidos para ocupar uma poltrona na Suprema Corte. Faltam-lhe o saber jurídico e a reputação ilibada. Esse texto foi preparado para constranger, não para ser aprovado. [sequer será votado]
Antes mesmo de a assessoria de Eduardo Braga (MDB-AM) redigir o relatório oficial, sabia-se que o documento prevaleceria na CCJ. Dias depois da indicação de Kassio sua aprovação já era considerada como favas contadas —na Comissão de Justiça e também no plenário do Senado. O texto paralelo de Alessandro Vieira (Cidadania-SE) constrange porque, além de iluminar os calcanhares de vidro do futuro ministro, expõe os interesses dos que se julgam representados por ele. Formou-se ao redor de Kassio uma aliança pós-ideológica e suprapartidária. "A presente indicação é a mais perfeita materialização do sistema de cruzamento de interesses que impera no Brasil há décadas", anota o relatório alternativo. "Não surpreende o fato de a indicação angariar apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo". Numa alusão aos encontros em que Bolsonaro submeteu o seu escolhido ao aval de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, o relator paralelo acrescentou: tampouco surpreende "a recepção expressiva por parte de ministros da Suprema Corte que confundem costumeiramente o republicano dever de urbanidade com a condenável confraternização efusiva com investigados poderosos e seus representantes."
Alessandro Vieira evocou Ruy Barbosa, o patrono do Senado: "De
tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver
crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser
honesto." Valendo-se de um linguajar nada sutil, o relator alternativo
insinuou que os apoiadores de Kassio nutrem interesses inconfessáveis:
"Nesse esboroamento da Justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta
de penalidade aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta
um crime que envolve um nome poderoso, apontado, indicado, que todos
conhecem." Integrante do grupo Muda Senado, Alessandro Vieira realçou que
o artigo 101 da Constituição exige do candidato a ministro do Supremo
"notável saber jurídico" e "reputação ilibada." O documento
sustenta que o preferido de Bolsonaro não preenche os requisitos. "A
notabilidade do saber jurídico pode ser aferida de modo bastante
concreto", afirma o senador. "A aprovação em concursos públicos para
carreiras jurídicas é boa métrica, mas não consta notícia de tais aprovações na
carreira do indicado, toda ela construída com lastro em indicações
políticas."
Outra forma de aferir os conhecimentos do magistrado seria a exibição de "uma carreira acadêmica sólida, com títulos regularmente conquistados e publicações reconhecidas." Entretanto, Kassio Marques "tem sido amplamente questionado acerca da higidez do seu currículo, especialmente quanto à regular obtenção dos títulos e à legítima produção de seus trabalhos acadêmicos." O senador menciona as contestações aos "cursos de pós-graduação" e "estágios pós-doutorais" em universidades estrangeiras. Cita os trechos da dissertação de mestrado de Kassio Marques que foram copiados de texto de autoria de um amigo, o advogado Saul Tourinho Leal. Reproduziram-se inclusive "os mesmos erros de "os mesmos erros de ortografia." Namíbia virou "Naníbia" nos dois textos.
Blog do Josias - Josias de Souza, jornalista - UOL
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