Por Bernardo Mello Franco
Sabatina amistosa
O Senado assinou um cheque em branco para Kassio Nunes Marques, que substituirá Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira, o desembargador passou dez horas na Comissão de Constituição e Justiça. Poderia ter passado dez minutos, e o resultado seria o mesmo. Culpa dos senadores, que abriram mão de escrutinar as credenciais e as ideias do futuro ministro.
Ao abrir a sessão, a emedebista Simone Tebet disse que a sabatina “não é, nunca será e não pode parecer ser mero ato protocolar”. Faltou combinar com os colegas. A maioria estava ali para gastar tempo e cortejar o indicado. Ele ouviu mais elogios do que perguntas de quem deveria inquiri-lo.
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Apesar das inconsistências no currículo, Kassio foi chamado de “culto”, “ilustre” e “dedicado”. “O orgulho que nos enche hoje não é só do Piauí, é do Nordeste como um todo”, desmanchou-se Ciro Nogueira, o poderoso chefão do PP. “É uma grande e oportuna indicação, que elevará a nossa Corte Superior”, emendou o emedebista Renan Calheiros, também investigado na Lava-Jato.
A oposição poderia apertar o sabatinado, mas preferiu destacar suas virtudes. O líder do PDT, Weverton Rocha, informou que não faria nenhuma pergunta. “O Piauí está feliz, o Maranhão, o Nordeste, o Norte”, empolgou-se. O líder do PT, Rogério Carvalho, ignorou os indícios de plágio e felicitou Kassio por seu currículo. Na segunda-feira, ele já havia oferecido um jantar para o desembargador.
Em meio ao clima de confraternização, alguns senadores ficaram à vontade para tratar de assuntos particulares. Soraya Thronicke, do PSL, reclamou de uma condenação por litigância de má-fé. Ela disse discordar da multa imposta pela Justiça. “Por isso eu me nego a depositar uma parte do valor”, acrescentou.
Questões que poderiam provocar embaraço foram deixadas de lado. Ninguém quis saber se o futuro ministro vai se declarar impedido de julgar Flávio Bolsonaro, que fez lobby por sua indicação. Questionado sobre os padrinhos políticos, Kassio desconversou. “Ninguém interferiu na escolha do presidente”, disse, sem que ninguém o contestasse. Em outro momento, ele alegou não saber o que sua própria mulher faz como assessora do senador Elmano Férrer, do PP. “Realmente eu não tenho essa informação”, embromou. Mais uma vez, ficou por isso mesmo.
O indicado recorreu a um truque conhecido para se esquivar de polêmicas. Disse que não poderia opinar sobre casos que poderão ser julgados no Supremo. Como quase tudo pode passar pela Corte, o artifício serve para que os sabatinados não digam nada de relevante. Os senadores aceitaram a desculpa sem protestar. Kassio só deixou o figurino escorregadio para acalmar a base bolsonarista, que esperava a nomeação de um juiz “terrivelmente evangélico”. Ele citou trechos da Bíblia e prometeu “valorizar a vida, a família e os valores morais e cívicos brasileiros”.
Na prática, quem resistiu às dez horas de sabatina continuou sem saber o que pensa o futuro ministro. Com o cheque em branco do Senado, ele deverá permanecer no Supremo até 2047.
Bernardo M. Franco, colunista - O Globo
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